Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7688/16.9T8SNT-J.L1-1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
EXECUÇÃO
RENDAS
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. A declaração de insolvência do locador não suspende a execução do contrato de locação e a sua denúncia por qualquer das partes é apenas possível para o fim do prazo em curso, sem prejuízo dos casos de renovação obrigatória (artigo 109.º do CIRE).
2. As rendas devidas pelo locatário após a declaração de insolvência, enquanto frutos civis, são penhoráveis (penhora de créditos), não se enquadrando nos pressupostos do artigo 738.º do CPC, por não terem natureza alimentícia como têm os rendimentos e prestações referidas no preceito, pelo que, integram a massa insolvente nos termos previstos no artigo 46.º, n.º 1 e 2, do CIRE, passando a sua administração para o administrador da insolvência. 3. Tendo os insolventes após a declaração de insolvência continuado a receber as rendas, sem as entregarem à massa insolvente, encontram-se obrigados a restituí-las à massa insolvente, pelo correspondente valor líquido, caso tenham procedido ao cumprimento das obrigações fiscais que incidem sobre tal rendimento, desde a data da declaração de insolvência até ao termo do contrato.
4. As rendas em causa englobam o rendimento disponível em termos de exoneração do passivo restante não estando na disponibilidade dos insolventes, requerentes desse benefício, disporem, para si, do valor do correspondente rendimento.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
No processo de insolvência de C… e M.. foi proferida sentença de declaração da insolvência em 14-11-2016, já transitada em julgado.
Por despacho de 10-09-2019 (Ref.ª 120942286) foi proferido inicial de exoneração do passivo restante, iniciando-se o período de cessão no 1.º dia útil do mês seguinte ao da notificação do despacho inicial.
No Apenso D (Liquidação), na sequência do despacho proferido em 16-06-2020 (Ref.ª 125429332) que ordenou a notificação dos insolventes «para esclarecerem o alegado contrato de arrendamento, que referem no seu requerimento [Requerimento de 25-05-2020, Ref.ª 35620963], bem como a situação das referidas rendas e reposição do seu valor por conta do mesmo à MI», os insolventes vieram responder, em 29-06-2020 (Ref.ª 35910214), juntando o contrato de arrendamento, alegando que «No despacho que aprecia o pedido de exoneração do passivo formulado pelos Insolventes estão descritos, entre outros rendimentos, os rendimentos prediais relativos ao contrato de arrendamento mencionado no despacho» e que, em face dos rendimentos do ano de 2019 e do decidido no referido despacho, «receberam a mais e são obrigados a transferir à ordem da massa insolvente, a quantia global de €1.775,50 (…), a qual corresponde à quantia de €591,83 (…) referente aos meses de Outubro, Novembro e Dezembro de 2019», requerendo que a Administradora da Insolvência lhes indique o IBAN da massa insolvente a fim de «procederem à transferência do montante indicado.»
No requerimento de 03-07-2020 (Ref.ª 35968184), a Administradora da Insolvência pronunciou-se nos seguintes termos: «(…) está em causa as rendas de um imóvel que integra a massa insolvente (…) não se tratam de rendimentos dos insolventes, mas antes, de frutos dos bens que integram a massa insolvente, ou seja, de rendimentos gerados por bens que integram a massa insolvente e, como tal, devem ser devolvidos na sua totalidade à massa insolvente.»
Em 13-07-2020 (Ref.ª 36064461), o credor reclamante DEUTSCHE BANK AKTIENGESELLSCHAFT – SUCURSAL EM PORTUGAL, pronunciando-se sobre o requerido pelos insolventes, e, considerando que no períodos entre a declaração de insolvência e o despacho inicial de exoneração do passivo, os insolventes não entregaram os valores das rendas à massa insolvente, requereu que o tribunal:
«1 - Ordene aos Insolventes que devolvam o valor recebido por conta das rendas desde a declaração de insolvência, até à data da publicação do despacho de exoneração do passivo inicial, no prazo máximo de 10 dias;
2 – Em caso de recusa dos Insolventes em devolver o valor das rendas, que reaprecie o pedido de exoneração do passivo restante, tendo em conta a violação do disposto no artigo 238.º n.º 1, alínea g), do CIRE.»
Os insolventes pronunciaram-se através dos requerimentos, respectivamente, de 20-07-2020 (Ref.ª 36094952) e de 22-07-2020 (Ref.ª 3638093) aos requerimentos da Administradora da Insolvência e do credor reclamante acima referido, requerendo que seja indeferida «a pretensão do CREDOR, por não existir qualquer fundamento legal para o efeito, determinando-se, de acordo com o anterior requerimento apresentado pelos insolventes, a transferência daquele montante para a conta da massa insolvente.»
Em 20-10-2020 (Ref.ª 127253550) foi proferido o seguinte despacho:
«O valor fixado como excluído de cessão, considerando que o mesmo se destina a garantir o sustento condigno dos insolventes e do seu agregado familiar durante os doze meses que compõe o ano, é um valor mensal, pelo que, sempre que o valor recebido num determinado mês ultrapassar o montante excluído de cessão, terá o excedente que ser entregue para cessão.
Assim, caso o rendimento mensal dos insolventes exceda o valor mensal excluído de cessão, qualquer que seja o título a que o recebem, deverão proceder à entrega ao Sr. Fiduciário do valor mensal recebido que exceda o valor excluído de cessão.
Por outro lado, estando em causa rendas provenientes de arrendamento de imóvel apreendido para a massa insolvente é evidente que tal rendimento pertence à massa e não aos insolventes, por força do disposto no artigo 46º, n.º 1, do CIRE, nos termos do qual a massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.
Assim, deverão os insolventes entregar à massa as quantias recebidas a título de rendas, desde a data de declaração de insolvência e 13/02/2020 (data em que terá cessado o contrato de arrendamento a que se refere a Senhora AI no requerimento de 16.06.2020).
Notifique.»
Deste despacho, recorreram os insolventes apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
a. O objecto do presente recurso de apelação é o despacho proferido pelo Tribunal “ a quo”, o qual decidiu, como se segue:
b. Por outro lado, estando em causa rendas provenientes de arrendamento de imóvel apreendido para a massa insolvente é evidente que tal rendimento pertence à massa e não aos insolventes, por força do disposto no artigo 46º, n.º 1, do CIRE, nos termos do qual a massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo. Assim, deverão os insolventes entregar à massa as quantias recebidas a título de rendas, desde a data de declaração de insolvência e 13/02/2020 (data em que terá cessado o contrato de arrendamento a que se refere a Senhora AI no requerimento de 16.06.2020).
c. Ora, o despacho de que se recorre, decide contrariamente àquela que a interpretação possível, do regime jurídico aplicável ao concreto caso.
d. Com efeito,
e. À data da apreensão de bens dos Insolventes, a verba quatro que integra a massa insolvente, descrita como “Fração autónoma designada pela letra B do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito na ……concelho de Cascais, inscrito na matriz predial urbana sob o nº 00000 da mesma freguesia e concelho e descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº 0000 da freguesia e concelho de Cascais” encontrava-se arrendada, conforme informação e cópia do contrato que os Insolventes forneceram à Sra. Administrador de Insolvência.
f. A renda, recebida pelos insolventes, era de €1.000,00 (mil euros) ilíquidos e €750,00 (líquidos) – retenção de IRS obrigatório à taxa de 25%.
g. Conforme consta das declarações de IRS que foram sendo sucessivamente solicitadas pela Exma. Senhora Administradora de Insolvência e fornecidas pelos Insolventes, a renda recebida por estes, era efectivamente declarada como rendimentos auferidos por estes.
h. Aquando da apreciação pelo Tribunal “ a quo” do rendimento garantido pelos insolventes e daquele que deveria ser cedido à ordem da massa insolvente, o Tribunal assentou a sua convicção e decisão, nas diversas declarações de rendimento dos insolventes, nos quais, conforme se disse anteriormente, se encontravam declarações as rendas por estes recebidas.
i. Ora, os rendimentos declarados no IRS são todos os rendimentos auferidos pelas pessoas singulares, sejam estes, rendimentos resultantes de uma actividade profissional, rendimentos prediais ou outros.
j. De facto, o artigo 239º, nº 3, do CIRE determina que “Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor”.
k. Aliás, este entendimento decorre também, como não podia deixar de ser, do artigo 1º do Código do IRS.
l. Assim, não há quaisquer dúvidas de que os rendimentos prediais – rendas – integram os rendimentos dos insolventes, tudo, sem prejuízo do facto do bem imóvel se encontrar apreendido à ordem da massa insolvente.
m. São dois direitos independentes.
n. Integrando o rendimento dos insolventes, estes poderão dispor do mesmo até ao limite do montante que foi indicado pelo Tribunal “ a quo”, sendo certo que, no despacho que determinou os rendimentos garantidos aos Apelante, o Tribunal “ a quo” não fez qualquer destrinça entre a categoria dos rendimentos que pode ser auferida pelos Insolventes e aquela que não pode ser auferida por estes.
o. O que há, e bem, uma vez que respeita integralmente os citados artigos 239º, nº 3, do CIRE e artigo 1º do CIRS é a fixação do montante global dos rendimentos auferidos pelos insolventes de que os mesmos podem dispor e o montante a partir do qual deverão ceder os seus rendimentos à massa insolvente.
p. Todavia, e sem prejuízo do que acima fica escrito, vem agora o Tribunal “ a quo” inverter aquele que parecia ser o seu entendimento inicial, para decidir, a requerimento do Credor hipotecário, que nos termos do disposto no artigo 46º, nº 1 do CIRE, os rendimentos que advenham de rendas, devem ser integralmente devolvidos à ordem da massa insolvente e isto, porquanto, os mesmos tenha, sido percebidos pelos Apelantes.
q. Ora, com o devido respeito, que é muito por entendimento diferente, o artigo 46º do CIRE, não se esgota no seu número um, devendo, aliás, a sua leitura ser efectuada conjuntamente com os artigos 737º e 738º, ambos do Código de Processo Civil.
r. Com efeito, o nº 2, do artigo 46º do CIRE determina que: “ Os bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta”.
s. Assim, relativamente aos bens cuja impenhorabilidade é absoluta – artigo 737º do CPC – parece entender-se, que ainda que o devedor apresente voluntariamente esses bens para integração na massa insolvente, tal não pode suceder,
t. Devendo, deste modo, o nº 2, do artigo 46º do CIRE ser interpretado por remissão, apenas, para o artigo 738º do CPC, cuja epígrafe é Bens parcialmente penhoráveis.
u. Ora, a leitura do nº 1, do mencionado artigo 738º do CPC esclarece, se dúvidas ainda houvesse quanto à interpretação de rendimentos dos insolventes, que: são impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer outra natureza que assegurem a subsistência do executado”.
v. Ora, de tudo quanto fica dito, e sendo clara a interpretação do legislador relativamente ao significado de rendimentos do insolvente, designadamente, por referência aos invocados artigos 239º, nº 3, do CIRE, 1º do Código do Imposto sobre Pessoas Singulares e 738º, nº 1, do CPC, conjugado com os números 1 e 2, do artigo 46º do CIRE, facilmente se extrai que o despacho proferido pelo Tribunal “a quo “ decide de forma contrária àquela que decorre da interpretação possível, de acordo com as leis em vigor.
w. De facto, os rendimentos dos Apelantes são aqueles declarados nas duas declarações de IRS, devendo o cálculo do rendimento garantido para a sua sobrevivência ser efectuado por reporte a esses rendimentos líquidos, devendo o excedente ou sobrante, ser entregue à fiduciária, para integração na massa insolvente.
x. Ainda relativamente ao mesmo despacho lê-se que, as rendas deverão ser devolvidas pelos insolventes à fiduciária desde a data da declaração da insolvência até 13 de Fevereiro de 2020.
y. Ora, falta rigor ao despacho, nesta parte.
z. Desde logo, porque ao referirmo-nos a rendimentos temos, forçosamente, que distinguir entre rendimentos líquidos e ilíquidos.
aa. Conforme já resulta anteriormente alegado, o legislador, ao referir-se a rendimentos penhoráveis, fá-lo expressamente aos rendimentos líquidos, o que no caso concreto, determinaria que o despacho proferido pelo Tribunal “ a quo”, e do qual ora se recorre, previsse, expressamente, a devolução da renda no valor mensal de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros).
bb. Ademais, quando o despacho refere a data da declaração de insolvência deveria, a fim de evitar plúrimas interpretações, identificar a data a partir da qual a obrigação que é imposta aos Apelantes nasce na sua esfera jurídica, isto é,
cc. Determinar que os Apelantes se constituem nessa obrigação, a partir da data do trânsito em julgado da sentença que os declarou insolventes.
Face ao exposto, tudo com o mui douto suprimento de V.Exa. deve o despacho de que ora se recorre ser revogado e, sem sua substituição, ser proferido acórdão, que determine a integração do montante das rendas auferidas pelos Apelantes como rendimentos dos insolventes, revogando deste modo a obrigação destes entregarem à fiduciária a quantia global das rendas auferidas.
Mais, se assim não se entender, deverá de todo o modo o despacho de que ora se recorre ser corrigido, por forma a que nele conste, que as rendas a devolver o são, livres de impostos, isto é, líquidas e a data a partir da qual a obrigação de devolução das rendas nasceu é a do trânsito em julgado da sentença que decretou a insolvência dos insolventes, isto é, em 15/12/2016.
Não foi presentada resposta ao recurso.
O recurso foi admitido por despacho de 16-12-2020 (Ref.ª 128305964), como apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos.
II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do Recurso
Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões apresentadas, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), as questões a decidir são as seguintes:
- Se os insolventes devem entregar à massa insolvente as quantias recebidas a título de rendas, desde a data de declaração de insolvência e 13-02-202020, data da cessação do contrato de arrendamento;
- Se a resposta for positiva, se devem entregar o valor líquido e apenas o recebido após o trânsito em julgado da sentença que decretou a insolvência.
B- De Facto
Os factos e ocorrências relevantes para o conhecimento do recurso constam do antecedente Relatório, a que se acrescentam os seguintes factos colhidos no processo de insolvência:
- Foi aprendida para a massa insolvente, entre outras (que, ora não relevam), a VERBA QUATRO, correspondente à «Fração autónoma designada pela letra B do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito na …….e concelho de Cascais, inscrito na matriz predial urbana sob o nº 00000 da mesma freguesia e concelho e descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº 0000 da freguesia e concelho de Cascais» (Auto de Apreensão de 14-05-2018, Ref.ª 29126151, no Apenso C);
- A fracção encontrava-se arrendada por contrato de Arrendamento para Habitação por tempo Determinado para Utilização Temporária e Transitória, celebrado em 14-02-2013, pelos ora insolventes como locadores e F..., LDA, como arrendatária, mediante o pagamento da renda de €1.000,00 mensais, com início em 15-02-2013 e terminus em 14-02-2020 (contrato de arrendamento junto pelos insolventes, em 29-06-220, Ref.ª 35910214, no Apenso D).
- Do auto de apreensão não consta a existência do referido contrato de arrendamento.
C- De Direito
Está em causa neste recurso apreciar o despacho recorrido na parte em que determinou que os insolventes devem entregar à massa insolvente as quantias recebidas a título de rendas, desde a data de declaração de insolvência e 13-02-2020.
Em suma, entendem os insolventes, ora apelantes, que a decisão recorrida deve ser revogada porque à data da apreensão de bens o imóvel ainda se encontrava arrendado; os respetivos rendimentos (rendas) constam dos rendimentos dos insolventes declarados em sede de IRS, documentados nos autos, constituindo rendimentos dos mesmos, independentemente de o imóvel se encontrar apreendido à ordem da massa insolvente, pelo que, podem dispor desse rendimento até ao limite do montante indicado no despacho inicial e exoneração do passivo restante, tanto mais que no mesmo não foi feito qualquer destrinça entre a categoria dos rendimentos que pode ser auferida pelos insolventes e aqueles que não o podem ser.
De qualquer modo, se assim não se entender, defendem que o valor a devolver é o valor líquido recebido após o trânsito em julgado da sentença que declarou a insolvência.
Apreciando.
À data da declaração de insolvência (14-11-2016), bem como à data da apreensão do imóvel para a massa insolvente (14-05-2018) e à data do despacho inicial de exoneração do passivo restante (10-09-2019), o contrato de arrendamento em causa nos autos ainda se encontrava em vigor, pois o seu terminus ocorreu em 13-02-2020.
Assim, a primeira questão a resolver é se o valor das rendas provenientes de um contrato de arrendamento no qual o devedor outorgou como locador deve ser apreendido para a massa insolvente após a declaração de insolvência.
Como prescreve o artigo 109.º, n.º 1, do CIRE, «A declaração de insolvência não suspende a execução do contrato de locação em que o devedor seja o locador, e a sua denúncia por qualquer das partes é apenas possível para o fim do prazo em curso, sem prejuízo dos casos de renovação obrigatória.»
Assim, por força deste preceito, manteve-se em vigor até ao seu terminus (13-02-2020) o contrato de arrendamento em causa nos autos, não obstante a declaração de insolvência dos locadores.
Por conseguinte, dada a manutenção em vigor do contrato de arrendamento, igualmente se mantiveram em vigor as obrigações de ambas as partes: os locadores continuaram a estar obrigados a assegurar o gozo da coisa para os fins a que se destina (artigo 1031.º, alínea b), do Código Civil) e o locatário continuou obrigado a pagar a renda nas condições acordadas (artigo 1038.º, alínea a), do Código Civil).
As rendas são frutos civis que a coisa (imóvel) produz periodicamente em consequência de uma relação jurídica, que não afeta a substância do imóvel, como decorre do artigo 212.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil.
Dele beneficia o titular do direito de fruição sobre a coisa que os produz (artigo 213.º, n.º 2, do Código Civil).
O que significa que o direito à percepção das rendas vincendas após a declaração de insolvência, enquanto bens/créditos futuros integravam o património dos insolventes.
O processo de insolvência é um processo universal (abrange, em regra, todos os bens do devedor) e concursal (todos os credores são chamados ao processo), visando a satisfação dos credores através massa insolvente, depois de pagas as suas dívidas (artigos 1.º e 46.º, n.º 1, do CIRE).
A massa insolvente é um património autónomo, e como estipula o n.º 1 do artigo 46.º do CIRE, destina-se «à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas própria dívidas e, salvo, disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como bens e direitos que ele adquira durante a pendência do processo», estipulando o n.º 2, do preceito que «Os bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta.»
Como refere MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, a massa insolvente é um «conjunto de bens atuais e futuros do devedor, os quais, a partir da declaração de insolvência, formam um património separado, adstrito à satisfação dos interesses dos credores», sendo que, em relação aos bens futuros, «revertem para a massa insolvente, de forma automática, sem necessidade de qualquer iniciativa do administrador da insolvência (automatismo que é determinado pelo carácter universal da processo de insolvência).»[1]
No que concerne à identificação dos bens e direitos do insolvente que integram a massa insolvente, como explica a mesma autora, é necessário levar em conta três preceitos fundamentais: (i) o artigo 601.º do Código Civil que consagra o princípio de que «pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora» (o património do devedor constitui a garantia geral dos credores); (ii) o artigo 46.º, n.º 2, do CIRE, que só admite a integração na massa insolvente dos bens isentos de penhora se o insolvente os apresentar voluntariamente (renunciando ao carácter impenhorável); (iii) o artigo 735.º, n.º 1, do CPC que estipula que «Estão sujeitos à execução todos os bens do devedor susceptíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondam pela dívida exequenda».
Assim, em face do referido princípio vertido no artigo 601.º do Código Civil, são penhoráveis os bens móveis (artigo 755.º e ss do Código Civil), como também os bens imóveis (artigos 764.º e ss do Código Civil) e os direitos (artigos 773.º e ss do Código Civil), exceto os seguintes bens: (i) os bens absolutamente impenhoráveis (artigo 736.º do Código Civil); (ii) os bens relativamente impenhoráveis (artigo 737.º do Código Civil); e (iii) os bens parcialmente penhoráveis (artigo 738.º do Código Civil).
Consequentemente, em função destas limitações, conclui a autora que vimos citando: «os bens de que o insolvente não pode dispor e os bens que não pode administrar são aprendidos pelo administrador da insolvência (art. 149º) e, deste modo, separado do património geral, por forma a constituir um património autónomo – a massa insolvente
Assim, encontrando-se aprendido para a massa insolvente um imóvel dado de arrendamento pelos insolventes, deveria ter sido apreendido não apenas o imóvel, mas também o seu rendimento (direito ao recebimento das respectivas rendas), uma vez que a apreensão, tal como a penhora em sede de processo executivo, abrange não só o prédio como todas as suas partes integrantes e os seus frutos, naturais ou civis, devendo as rendas vincendas após a declaração de insolvência (enquanto créditos futuros que revertem automaticamente para a massa insolvente, como acima dito) ser entregues à Administradora da Insolvência[2] que é quem passou, após a declaração de insolvência, a administrar a massa insolvente, como previsto nos artigos 36.º, n.º 1, alínea d), 81.º, n.º 1 e 4, e 233.º, n.º 1, alínea a), do CIRE (cfr., ainda, artigos 773.º e 779.º do CPC em relação ao agente de execução).
Defendem, contudo, os insolventes a impenhorabilidade/isenção de penhora das citadas rendas por aplicação do artigo 738.º do CPC conjugado com o artigo 46.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE.
O artigo 738.º, n.º 1, do CPC, sob a epígrafe «Bens parcialmente penhoráveis» estipula que «São impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia ou prestação de qualquer natureza que assegure a subsistência do executado.»
As rendas pagas pelos arrendatários nos contratos de locação não se enquadram nesta previsão normativa. São efetivamente prestações periódicas, mas não comungam das características das prestações a que se reporta o preceito que têm natureza alimentícia por assegurarem a subsistência do titular do direito ao recebimento[3], pelo que são penhoráveis (penhora de créditos) e, consequentemente, em face do artigo 46.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE, integram a massa insolvente, devendo ser objeto de apreensão pelo Administrador da Insolvência (artigos 36.º, n.º 1, alínea g), 149.º e 150.º do CIRE).
Resulta, pois, do exposto que o valor das rendas do contrato de arrendamento vencidas após a declaração de insolvência e até ao fim do contrato de arrendamento integram a massa insolvente dos ora recorrentes e deveriam ter sido depositadas à ordem da Administradora da Insolvência enquanto depositária dos bens que integram a massa insolvente (artigo 150.º, n.º 1, do CIRE e artigo 756.º do CPC) ao invés de terem sido recebidas pelos insolventes
Contrapõem os recorrentes que as referidas rendas integram o seu rendimento (independentemente do imóvel se encontrar aprendido à ordem da massa insolvente) e que no despacho inicial que determinou o valor do rendimento indisponível o tribunal a quo não fez qualquer destrinça entre tipologia de rendimentos que poderiam e não poderiam ser auferidos pelos insolventes, o que respeita integralmente o artigo 1.º e 239.º, n.º 3, do CIRE.
Os recorrentes não têm razão.
O artigo 239.º do CIRE regula a cessão do rendimento disponível caso seja deferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e seja proferido despacho inicial, que, sublinha-se, não concede ao insolventes qualquer exoneração do passivo restante, mas apenas desencadeia o período de cessão, se simultaneamente for declarado o encerramento do processo, pelo menos para esse efeito, caso os autos prossigam para liquidação, como sucede no caso presente, e fixa as condições que os insolventes, em concreto, devem observar, definindo, ainda, os rendimentos excluídos da cessão e necessários para uma vida condigna dos mesmos e do seu agregado familiar.
O n.º 3 do artigo 239.º do CIRE determina que «Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor», porém logo de seguida excluiu alguns desses rendimentos, ficando excluídos, nos termos da alínea a) do mesmo n.º 3, os «créditos que se refere o artigo 11.5.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz».
O artigo 115.º, n.º 2, do CIRE, contempla as situações das rendas devidas por contratos de locação previstos no artigo 109.º do CIRE, que o Administrador da Insolvência não possa denunciar, estipulando que a cessão ou penhor de créditos futuros a terceiros apenas são eficazes no «período anterior à data de declaração de insolvência, ao resto do mês em curso nesta data e ao mês subsequente.»
Da conjugação destes normativos decorre que as rendas dos contratos de locação em que os insolventes são locadores e que tenham cedido ou dado em penhor a terceiros antes da declaração de insolvência, são excluídas do rendimento disponível dos insolventes no resto do mês em curso àquela data e no mês subsequente, ou seja, apenas nesta situações e por aquele período as rendas não integram o rendimento disponível.
Nas outras, ou seja, não havendo cessão e penhor a terceiros (como sucede no caso dos autos), as referidas rendas integram, efetivamente, o rendimento disponível dos insolventes.
Porém, esta conclusão não significa que os insolventes possam dispor desse rendimento, ou seja, ainda que tais quantias integrem os rendimentos dos insolventes, logo o seu património, não detendo estes, após a declaração de insolvência, a administração do seu património, tais créditos futuros, após a declaração de insolvência e, independentemente de ter sido pedido a exoneração do passivo restante, devem ser entregues ao Administrador da Insolvência para integrarem a massa insolvente nos termos supra referidos e para serem pelo mesmo administrados.
Assim, quer antes do despacho inicial de exoneração do passivo restante, quer após a prolação deste despacho, as rendas dos contratos de locação nos quais os insolventes sejam locadores, integram a massa insolvente, não se encontrando na disponibilidade de administração e de disposição dos insolventes.
No caso em apreço, verifica-se que, para além do direito ao recebimento das rendas não ter sido aprendido para a massa insolvente, nem os insolventes as terem entregado à Administradora da Insolvência, no despacho inicial de exoneração do passivo restante, o tribunal considerou, na ponderação dos rendimentos e das despesas, para além dos rendimentos do trabalho do ano de 2018, os «rendimentos prediais» de 2018, no montante bruto de €11.000,00, que se presumem reportar-se às rendas do referido contrato de locação, para fixar o valor do rendimento indisponível (aquele que os insolventes se encontram obrigados a entregar ao fiduciário), no caso, o valor de três salários mínimos nacionais, doze vezes por ano.
Este despacho não integra o objeto do presente recurso, pelo que não cabe, nesta sede, apreciar o seu teor.
Aquilo que apenas compete aferir em face do teor do despacho recorrido é que, independentemente, dos fundamentos do despacho inicial, não se descortina no mesmo que se tenha pronunciado no sentido do valor das referidas rendas integrarem o rendimento indisponível dos insolventes correspondente aos três salários mínimos nacionais, ou seja, aquele despacho não produziu caso julgado formal ou material quanto à questão em discussão neste recurso (cfr. artigos 619.º, 620.º e 621.º do CPC), que se traduz em saber se os valores das rendas recebidos pelos insolventes devem, ou não, ser devolvidos à massa insolvente.
E a resposta a esta questão, em face de tudo o que vem sendo dito, não pode deixar de ser afirmativa, por tais valores serem bens que deviam ter integrado a massa insolvente à medida que as rendas se foram vencendo e foram sendo pagas pela locatária, pelo que à mesma massa insolvente devem retornar.
Defendem os recorrentes que os valores a devolver à massa insolvente devem ser os valores líquidos e não ilíquidos por as rendas estarem sujeitas a tributação em sede de IRS.
Nesta parte, afigura-se-nos que os recorrentes têm razão, caso tenham efetivamente pago a devida tributação sobre esse rendimento, o que não se descortina nos autos. Donde, compete aos mesmos demonstrarem o valor pago à autoridade tributária referente aos valores das rendas recebidas no período em referência, descontando-o, então, ao valor a entregar à massa insolvente.
Quanto à questão do momento a partir do qual esses valores devem ser contabilizados, entendeu o despacho recorrido que se reportava à data da sentença da declaração de insolvência enquanto os recorrentes defendem que é apenas a partir da data do trânsito em julgado da mesma, que situam em 15-12-2016.
De acordo com a consulta dos autos, foi interposto recurso da sentença que declarou a insolvência dos recorrentes, ao qual foi atribuído efeito meramente devolutivo (despacho de 19-01-2017, Ref.ª 10457507, proferido no processo principal), tendo a sentença sido confirmada por Acórdão desta Relação de Lisboa proferido em 16-01-2018.
Assim, considerando o efeito do recurso e a confirmação da sentença recorrida a mesma produziu efeitos desde a data da sua prolação, ou seja, 14-11-2016, donde decorre que os valores a devolver pelos insolventes referentes às rendas a que se vem aludindo, nos moldes supra referidos, se situam entre 14-11-2016 e 14-02-2020.
Nestes termos, procede, em parte, a apelação.
III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar parcialmente procedente apelação e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida na parte em que ordenou a devolução das rendas referentes ao contrato de arrendamento referido nos autos, desde a data da sentença de declaração de insolvência (14-11-2016) até 13-02-2020, alterando-a na parte referente ao valor a entregar que deverá ser o valor líquido, caso os insolventes demonstrem que procederam ao pagamento das responsabilidades tributárias incidentes sobre o valor recebido a título de rendas no período correspondente supra referido.
Custas pela massa insolvente, na proporção do vencimento (artigos 303.º e 304.º do CIRE).

Lisboa, 09-02-2020
Maria Adelaide Domingos
Fátima Reis Silva
Vera Antunes
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[1] MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Manual de Direito da Insolvência, Almedina, 7.ª edição, 2019, p. 302-303.
[2] MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, ob. cit., p. 225.
[3] Veja-se, assim, RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, 2018, p. 534-535 (I e II).