Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3278/17.7T8FNC-A.L1-6
Relator: MARIA MANUELA GOMES
Descritores: IMPEDIMENTO DO JUIZ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE/REVOGADA
Sumário: O segmento normativo contido no artigo 115.º, n.º1, alínea c) do CPC Revisto, relativo ao impedimento do Juiz, reporta-se às situações de pronúncia do juiz fora do âmbito das suas funções, já que situações há em que o mesmo julgador é, legalmente, obrigado a voltar a pronunciar-se e se espera até que, eventualmente, decida em sentido contrário.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


1. AF, sócio gerente da sociedade Euronetworks, Lda, na sequência da declaração de insolvência daquela sociedade, veio deduzir oposição de embargos à sentença declaratória da insolvência da dita sociedade
Ordenadas as notificações a que alude o nº 2 do art. 41ºdo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), os requerentes da insolvência - PC e AC- vieram contestar.
E arrolaram testemunhas.

Seguidamente, por despacho proferido com data de 7.11.2017 foi designado o dia 21 desse mesmo mês e ano para a realização da audiência.
E simultaneamente foi logo indeferida a prova solicitada pelo embargante, relegando-se, todavia, a respectiva fundamentação para a “selecção dos temas de prova, na data da realização da audiência de julgamento” (cfr. fls. 203)

Entretanto, veio o Embargante requerer a declaração de impedimento da Sra. Juiz, invocando, essencialmente, que tendo sido essa julgadora quem proferiu a sentença que visa “atacar”, constituiria negação do direito a uma decisão isenta a apreciação dos Embargos pela mesma juiz que proferira a decisão embargada, tanto mais que aquela, antecipadamente, já rejeitara a apresentação da prova documental que contraria a sua decisão.
Terminou pedindo o recebimento do requerimento “de impedimento da Mma Juiz de direito, com a consequente remissão para o Tribunal da Relação de Lisboa dos presentes autos” (fls. 204 verso e 205).

Sobre este requerimento foi proferido o seguinte despacho:

“De acordo com o requerimento que antecede, o embargante conclui nos seguintes termos:
“Em face do exposto, requer-se o recebimento do presente requerimento de impedimento da Mma Juiz de direito, com a consequente remissão para o Tribunal da Relação de Lisboa dos presentes autos, nos termos do Código de Processo Civil”.
Ora, atendendo a todo o teor do requerimento apresentado considera-se que deve o requerente/embargante, com urgência, elucidar se pretende desta forma desistir dos embargos apresentados e prosseguir com o recurso apresentado.
Para o efeito contacte pela forma que considerar mais célere o requerente/embargante, lavrando-se quota nos autos, se necessário, para informar se pretende prosseguir com os presentes embargos, e/ou apenas com o recurso já interposto. (art. 6º do CPC, por referencia ao art. 17º do CIRE) “ (fls. 206)

Chegado o dia designado para a audiência, encontrando-se presentes os mandatários dos Embargados, bem como as testemunhas por eles arroladas, antes de ser produzida qualquer prova foi proferido despacho com o seguinte teor:
“AF, sócio gerente da sociedade Euronetworks Lda, requerida no processo de insolvência de pessoa colectiva, à margem referenciado, na sequência da sentença declaratória da insolvência proferida nos autos, não se conformando com a mesma, veio deduzir oposição de embargos à sentença, ao abrigo do disposto nos artigos 40º nº 1 al. f); nº 2 e 41º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Alegou diversos pontos com os quais não concorda com a decisão proferida, sendo que nos embargos, se fundem as alegações de recurso com os pontos que efectivamente, salvo melhor entendimento podem ser fundamento de novo julgamento.

Na verdade, considera-se que os únicos factos invocados pela embargante que merecem atenção, nesta fase processual, são os contidos em síntese nos artigos 9º, 10º, 11º, 12º, 13º e 14º do requerimento inicial, ou seja:
A Agente de execução, no extinto processo 2352/15.9T8FNC, em que figurou no final como exequente a sociedade Oitante SA, procedeu à devolução dos valores penhorados, sendo evidente que os requerentes no processo de insolvência terão recebido as quantias que alegam terem sido penhoradas;
Os dados constantes do IES;
A requerida não está fechada apenas suspendeu a actividade em sede de o IVA, situação permitida por lei;
A empresa requerida Euronetworks Lda, sempre cumpriu com as obrigações fiscais e entrega de IRC como também pagou os devidos impostos ate a data da cessão em sede de IVA, em 2016;
A sociedade Requerida possui dois seguros para cobertura dos prejuízos decorrentes do sinistro sofrido um seguro na empresa Generali apólice 031610070799000 com um valor de 210 mil euros, o qual conjugado com o seguro multirriscos apólice 043/00955226/001 no valor de 289.615,43;
A sociedade requerida tem a receber das seguradoras quinhentos mil euros;
Situação da sociedade requerida no Banco de Portugal.

Considera-se que quanto aos restantes factos invocados, como não são factos novos que possam ser objecto dos presentes embargos, mas tão só de recurso, conforme disposto no art. 40º, nº2, do CIRE. Ressalva-se que o ónus da solvência sempre coube à requerida quer no âmbito do processo principal, quer nestes embargos.

Nestes termos, os presentes embargos apenas podiam contemplar o supra determinado, em conjugação com os factos já considerados no processo principal, uma vez que os restantes pontos alegados não são mais do que meras conclusões que não podem ser alvo de nova apreciação por este Tribunal.

No entanto,
Acresce que o embargante no requerimento apresentado com a ref.ª2384284, mencionou o seguinte: “Em face do exposto, requer-se o recebimento do presente requerimento de impedimento da Mma. Juiz de direito, com a consequente remissão para o Tribunal da relação de Lisboa dos presentes autos, nos termos do Código de Processo Civil”.

Assim, determinou-se a notificação do requerente/embargante para, com urgência e da forma considerada mais célere, elucidar se pretendia desta forma desistir dos embargos apresentados e prosseguir com o recurso apresentado.

Apesar dos esforços, cujas cotas se encontram lavradas, a verdade é que não houve qualquer forma de resposta, nem o embargante se encontra representado neste Tribunal, nesta data.
Nestes termos, apenas se pode concluir que o embargante pretendia com o requerimento apresentado desistir da instância e prosseguir com o recurso instaurado, porque conforme decorre da lei é perfeitamente admissível a pendência simultânea de embargos à insolvência, com o recurso, conforme disposto no art. 42º, nº1, do CIRE.

Face ao exposto declara-se extinta a presente instância, atendendo ao teor do requerimento apresentado pelo embargante e por manifesta inutilidade superveniente da lide, face ao pedido de prosseguimento do recurso. (cfr. artigos 277º, al. e), 283º e ss., 549º, nº1 do CPC, por referência ao art. 17º do CIRE).

Custas pela embargante. (art. 539º, do CPC, por referência ao art. 17º do CIRE)
Fixa-se ao presente incidente o valor da acção fixado na acção principal (art. 306º do CPC, por referência ao art. 17º do CIRE)
Notifique e registe. (artigos 153º, n.º 4, 220º, n.º 1, e 253º, do CPC, por referência ao art. 17º do CIRE).” (fls. 209 verso e 210).

O Embargante, embora apodando o acto de “reclamação”, veio deduzir pedido de reforma do despacho proferido no acto da audiência, antes transcrito, alegando que, contrariamente ao invocado pelo Tribunal, não interpusera qualquer recurso e que deveria ter sido, previamente, apreciado o impedimento da Mma Juiz suscitado.

E, passados dias – a 11.12.2017 – veio interpor recurso do mesmo despacho.

O Embargante alegou e, a final, concluiu o seguinte:
a)- A Mma. Juiz do tribunal recorrido violou o disposto no artigo 115º do Código civil, porquanto ignorou o incidente de impedimento que a obriga a remeter a questão para o tribunal da Relação de Lisboa.
b)- Não poderia a Mma. Juiz proferir o despacho, nem ter dado início e fim à audiência.
c)- A Mma. Juiz decidiu, com manifesta confusão, decidindo da inutilidade superveniente da lide com absoluta falta de fundamento legal e factual. Não poderia a Mma. Juiz chegar a seguinte conclusão: “Nestes termos, apenas se pode concluir que o embargante pretendia com o requerimento apresentado desistir da instância e prosseguir com o recurso instaurado, porque conforme decorre da lei é perfeitamente admissível a pendência simultânea de embargos à insolvência, com o recurso, conforme disposto no art. 42º, nº1, do CIRE. “
d)- O requerimento de impedimento da Juiz de direito, não tem como objetivo legal ou fundamento a desistência da instância, outrossim, a sua continuidade, com outro juiz que de forma imparcial decida com justiça.
e)- A conclusão da juiz consubstancia uma denegação de justiça, grave por violar o disposto na lei, que determina a apreciação pelo Tribunal da Relação de Lisboa do incidente do Impedimento.
f)- Não compete ao juiz concluir o que pretende o embargante, se este não requereu a desistência da instância.
g)- A Mma. Juiz ao afirmar que o embargante “pretende prosseguir com o recurso instaurado, labora em total confusão, pois o embargante não apresentou nenhum recurso e como tal não pode pretender prosseguir com o que nunca apresentou.
h)- A Mma. Juiz do tribunal recorrido violou o seu dever de submissão do requerimento de impedimento ao Tribunal da Relação de Lisboa.
i)- A Mma. Juiz do tribunal recorrido está sujeita a lei, pelo que a violação da lei deve determinar a revogação do seu despacho ilegal, determinando-se a apreciação dos embargos por outro juiz, declarando-se a mesma impedida
Terminou pedindo a revogação da decisão recorrida e que se determinasse o prosseguimento dos autos, com outro juiz.

Não houve contra alegação e foram dispensados os vistos.

2. Para o conhecimento do recurso importa a factualidade resultante do relatório que antecede e, particularmente os actos (ou omissões) de tramitação processual subsequente ao requerimento de declaração do impedimento da julgadora.
3. Vistas as conclusões da alegação do recurso, a questão a apreciar prende-se essencialmente com o pedido de declaração de impedimento da julgadora que, omitindo total pronúncia sobre essa pretensão, veio em sede de audiência, e sem mais, a declarar extinta a instância.

Vejamos.
O embargante, terminada a fase dos articulados de oposição à declaração de insolvência da requerida Euronetworks, Lda, de que foi sócio gerente, e designado dia para a audiência veio, nos termos do nº 1 do artigo 116º, parte final, do CPC, requerer a declaração de impedimento da Sra. Juiz, que proferira a sentença de declaração de insolvência da dita sociedade.
Invocou que aquela, por ter declarado a insolvência da sociedade em contrário da prova produzida, pronunciara-se já em termos que comprometiam a finalidade da sua oposição – a revogação dessa decisão - o que colocava “em causa a necessária isenção e imparcialidade”
E fundou juridicamente essa sua pretensão no disposto no art. 115º nº 1, al. c) do CPC.

Mas sem razão.
Como é sabido, os tribunais são independentes, estando sujeitos apenas à lei, devendo para tanto os magistrados judiciais julgar somente segundo a Constituição e a lei ordinária.

E foi com vista a garantir, subjectiva e objectivamente, a imparcialidade daqueles magistrados que o legislador elencou, no nº1 do art. 115º do CPC (como já fizera em diplomas anteriores), as causas em que, para ser (e parecer) imparcial, nenhum juiz pode exercer funções.

Para a apreciação do recurso releva o estatuído na alínea c) daquela norma, onde se dispõe nenhum juiz poder exercer as suas funções, em jurisdição contenciosa ou voluntária “Quanto tenha intervindo na causa como mandatário judicial ou perito ou quando haja que decidir questão sobre que tenha dado parecer ou se tenha pronunciado, ainda que oralmente”.

É manifesto que a situação em apreciação tem unicamente a ver com o estabelecido no segmento final – ter o julgador de decidir questão sobre a qual já se tenha pronunciado – já que o recorrente, ao fim e ao cabo, invoca que, tendo a Sra. Juiz, no exercício da sua função, já declarado a insolvência da requerida, não estaria disponível para afastar essa decisão, em sede de Embargos.

Indubitável se nos afigura que o dito segmento normativo de impedimento só pode reportar-se a situações de pronúncia do juiz fora do âmbito das suas funções, já que situações há em que o mesmo julgador é, legalmente, obrigado a voltar a pronunciar-se e se espera até que, eventualmente, decida em sentido contrário.
Era o caso dos primitivos agravos, em que o juiz podia reparar o decidido; é o caso da reforma da decisão consagrada no nº 2 do artigo 616º do CPC, para além das situações de reforma do decidido quanto a custas ou multas.

E é a hipótese, ainda mais flagrante, de o juiz, nessa sua qualidade, já ter decidido determinada questão em sede de procedimento cautelar e, nem por isso, estar impedido de decidir a mesma questão na acção de que aquela é instrumental (neste sentido se pronunciaram já diversos tribunais, inclusive o Tribunal Constitucional que, em caso equiparável, através do seu Acórdão nº 324/06, de 17.05.2006, não julgou inconstitucional norma idêntica à do actual art. 115º nº1 c) (então a alínea c) do nº 1 do art. 122º do CPC vigente) - interpretada, no caso, no sentido de não considerar impedido de intervir na repetição do julgamento o juiz que decidiu a matéria de facto por decisão parcialmente anulada e proferiu sentença consequentemente julgada sem efeito; na doutrina, v, entre outros, Salvador da Costa, “Os Incidentes da Instância”, 6ª edição, pág. 314/315.

Em face do exposto, dúvida não subsiste relativamente à não verificação do impedimento da Sra. Juiz suscitado, sendo que cabia aquela proferir, em primeira linha, decisão sobre essa questão, só depois se justificando o recurso para esta Relação do inevitável indeferimento (art. 116º nº 5 do CPC).

Todavia, por razões de economia processual e sobretudo de celeridade, particularmente justificada no caso, dado o carácter urgente do processo de insolvência e seus apensos, entendemos ser de tomar conhecimento da questão do impedimento e, consequentemente, julgar desde já improcedente o recurso, quanto a essa questão.

No mais, porque os autos não evidenciam qualquer manifestação de vontade do Embargante de desistir da instância, nem dos mesmos resultam quaisquer factos susceptíveis de determinar a extinção da instância por inutilidade superveniente da mesma, impõe-se a revogação do despacho recorrido.

Procede, assim, nesta parte o recurso.

Decisão.
4. Termos em que, na procedência parcial do recurso, se acorda em:
- Julgar improcedente o incidente de impedimento;
- Revogar a decisão recorrida, ordenando o prosseguimento dos autos.
- Condenar o Embargante nas custas do incidente de impedimento, em cinco UC, sendo que, as custas do recurso serão suportadas pela massa insolvente.



Lisboa, 19 de Abril de 2018.



(Maria Manuela B. Santos G. Gomes)
(Gilberto Jorge)
(Teresa Soares)