Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8778/2004-8
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: PACTO DE PREENCHIMENTO
AVAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/03/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I- No domínio das relações imediatas não havendo que proteger terceiros de boa fé, é admissível a prova de que  o aval foi dado a pessoa diferente do sacador, ainda que esta vontade se não encontre expressa no texto da letra.
II- Constando, por isso, do verso da letra “ por aval ao subscritor” pode recorrer-se ao pacto de preenchimento convencionado entre os intervenientes no título a fim de se determinar por quem foi dado o aval.
III- O dador do aval não se pode valer das eventuais excepções oponíveis pela pessoa por ele afiançada salvo se a obrigação por ele garantida for nula por vício de forma ou se tiver extinguido pelo pagamento (artigo 32º da L.U.L.L.)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:


1.  TottaRent-Sociedade de Aluguer de Veículos, SA propôs execução para pagamento de quantia certa contra Umiolo-Comércio de Frutos Secos Ldª, (P), (J) e (M) para deles haver a quantia de 2.386.744$00 e juros, valor de letra sacada pela exequente, aceite pela Umiolo, avalizada pelos restantes executados.

Os executados (J) e (M) deduziram embargos que foram julgados improcedentes.

2. Nas alegações de recurso sustentam os executados que se impõe considerar que o aval é nulo por caducidade do contrato (contrato de aluguer de veículo) a que respeita a obrigação avalizada, caducidade resultante da perda total do veículo.

Ora, segundo os recorrentes, a alegada inviabilidade de reparação do veículo que sofreu sinistro em 12-9-1997 equivale à respectiva perda (artigo 33º da petição de embargos). Importa, segundo eles, considerar a matéria de facto controvertida no sentido de apurar se a reparação do veículo não se mostra viável dado o custo exceder largamente o seu valor venal só restando do veículo salvados.

O aval foi dado ao subscritor. No caso vertente tem de se considerar que o aval foi dado à sacadora e não ao aceitante. Abonam-se em jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça segundo a qual, dado aval ao subscritor, impõe-    -se concluir que, avalizado, foi o sacador.

Mais referem os embargantes/recorrentes que o princípio da literalidade obsta à integração probatória contra e para além do título valendo este pelas assinaturas que contiver e pelas cláusulas que nele estão materialmente expressas. Assim sendo, e tendo os embargantes dado o aval ao subscritor, figura inexistente na letra, impõe-se concluir pela nulidade do aval dado a favor de uma figura (a do subscritor) inexistente na letra.

Dá-se aqui por reproduzida a matéria de facto constante da decisão (artigo 713º/6)


3. As questões a resolver são estas:

1ª- Tendo sido aposto no verso de letra uma assinatura sob os dizeres “ bom por aval ao subscritor” se esse aval deve considerar-se nulo dada a inexistência de tal figura naquele título de crédito

2ª- Se não é possível recorrer-se a elementos extra-cartulares (princípio da literalidade) para se concluir que o aval foi prestado a favor do aceitante e não do sacador

3ª- Se pode o dador do aval eximir-se ao pagamento da quantia por ele afiançada valendo-se da eventual caducidade do contrato que esteve na origem da relação cartular.


4. Quanto à primeira questão podemos ter por assente, de acordo com a matéria de facto provada, que “ no verso da letra constam as assinaturas dos embargantes, antecedidas dos seguintes dizeres: ‘ por aval ao subscritor’ e que na base da letra houve um pacto de preenchimento assinado pela ora exequente, pela aceitante (Umiolo-Comércio de Frutos Secos Ldª) e pelos embargantes que, como avalistas, assinaram esse pacto sob os dizeres “ por aval ao subscritor”.

Desse pacto consta o seguinte:



Com a assinatura do presente contrato, Umiolo-Comércio de Frutos Secos Ldª e sócios e cônjuges (avalistas) entregam à Tottarent uma letra por aquela aceite e por estes avalizada, em benefício da Tottarent, encontrando-se por preencher o local e data de emissão, a data do vencimento e respectiva importância, os quais a serem preenchidos, deverão sê-lo em correspondência com o disposto na cláusula seguinte



Qualquer letra que seja aceite por Umiolo-Comércio de Frutos Secos Ldª e avalizada por sócios e cônjuges (avalistas) não integralmente preenchida, para garantia do cumprimento do contrato em epígrafe, poderá ser livremente preenchida pela Tottarent, designadamente no que se refere à data de emissão, data de vencimento e à importância, não podendo, porém, esta ser superior aos montantes em dívida do que em cada momento o Umiolo-Comércio de Frutos Secos Ldª seja devedor, por força do contrato em epígrafe”.



A Tottarent poderá também endossar e/ou descontar essa letra e utilizar o seu produto para pagamento dos seus créditos.


Face à junção deste pacto de preenchimento esclareceram os embargantes que “ ao deduzir os embargos, os embargantes estavam plenamente convencidos de que não tinham assinado qualquer documento em que autorizavam o preenchimento da letra e em que se referisse que a mesma visava garantir negócio em que era interessada a Umiolo.

Embora continuem sem se recordar de o ter feito, não podem questionar o documento nº3 junto com a contestação de embargos”.

Podemos, assim, considerar assente o seguinte:

- Os embargantes apuseram o seu aval na referenciada letra
- Os embargantes, de acordo com o pacto de preenchimento, deram o seu aval “ em benefício da Tottarent”.

Não há, portanto, nenhuma dúvida, movendo-nos no plano das relações imediatas, de que a subscritora à qual os executados deram o aval não é a sacadora, mas a aceitante da letra.

O aval não é nulo; porventura sê-lo-ia limitado que fosse à mera assinatura no verso da letra.

A referência, na letra, ao subscritor como a pessoa por quem se dá o aval, não implica a nulidade do aval; pode levar a considerar-se, na falta ou na impossibilidade de recurso a outros elementos, que há indeterminação da pessoa por quem se dá o aval.

Então, assim sendo, deveria recorrer-se à presunção constante do artigo 31º/4 da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças que diz: “ o aval deve indicar a pessoa por quem se dá. Na falta de indicação, entender-se-á pelo sacador”.

Não seria então nulo o aval, antes válido, dado pelo sacador.

Aquela presunção legal adviria da indeterminação da pessoa por quem se dá o aval, por ser o subscritor aquele que passa a livrança (artigo 75º/5), mas não aquele que passa a letra. Quem passa a letra é o sacador (artigo 1º/8 da L.U.L.L.).

5.  Sobre a impossibilidade de se recorrer por força do princípio da literalidade a elementos atinentes à relação subjacente - segunda questão suscitada - uma tal afirmação vale no plano das relações mediatas, já não no das relações imediatas que é aquele em que nos situamos.

Assim, não se vê que haja qualquer inconveniente em recorrer à relação que esteve na base da emissão dos avales (pacto do preenchimento) para se determinar a vontade real das partes (artigo 238º do Código Civil);  ora, como se verifica, quando os embargantes se referiam “ao subscritor” estavam sem sombra de dúvida a referir-se à aceitante Umiolo-Comércio de Frutos Secos Ldª sociedade de que os executados/avalistas eram sócios.

Se não estivéssemos no âmbito das relações imediatas, o princípio da literalidade, segundo o qual “ a existência, validade e prevalência da obrigação cambiária não podem ser contestados com o auxílio de elementos estranhos ao título e o conteúdo, extensão e modalidades da obrigação cartular são os que a declaração objectivamente define e revela” (Lições de Direito Comercial, Ferrer Correia, 1975, pág. 41), constituiria obstáculo a que, em sede de interpretação da declaração negocial, se pudesse recorrer a elementos de auxílio estranhos ao próprio título.

No entanto, já assim se não deve entender situando-nos no plano das relações imediatas.

Isto tem interesse porque a primeira parte do artigo 31º/4 da L.U.L.L. quando prescreve que “ o aval deve indicar a pessoa por quem se dá”  não obsta a uma tal indagação interpretativa no seio das relações imediatas.

A segunda parte do preceito que diz “ na falta de indicação, entender-se-á pelo sacador” impõe, essa sim, uma presunção que o assento do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Fevereiro de 1966 considerou valer também no domínio das relações imediatas, presunção que actua pressupondo-se que o aval não indique o avalizado.

Se o aval não indica o avalizado, situação que claramente se dá quando pura e simplesmente o avalista apõe a sua assinatura omitindo qualquer referência à pessoa por quem o deu, não há dúvida de que o aval se entende dado pelo sacador.

Mas se o aval referencia o avalizado, então do que se trata é de saber se uma tal indicação é suficiente para se saber por quem o aval foi dado ou se é insuficiente. Neste último caso tudo se passará obviamente como se não tivesse havido indicação alguma.

Assim, mesmo que se defenda que continua a valer a regra ditada pelo assento, hoje com o valor de jurisprudência uniformizada, não fica vedado ao tribunal recorrer aos elementos extracartulares tendo em vista a determinação do avalizado quando se está no domínio das relações imediatas:  vejam-se os Acs. do S.T.J. de 20-2-2001 (Azevedo Ramos) in Boletim dos Assessores ,nº 48,Fevereiro 2001 e de 10-1-2002 (Araújo Barros) C.J.,1, pág.  25 com sumário parcialmente diferente na C.J. assim sumariados:

I - Mantém-se válida a doutrina do Assento de 01-02-66, agora com o valor de acórdão uniformizador de jurisprudência, nos termos da qual "mesmo no domínio das relações imediatas, o aval que não indique o avalizado é sempre prestado a favor do sacador".
II - O Assento e a previsão do art.º 31, IV, da LULL, só são aplicáveis na falta de indicação acerca da pessoa por quem se deu o aval.
III - Sendo equívoca essa indicação - como sucede com a referência à "firma subscritora" no aval de letras de câmbio - há que interpretar a declaração do avalista com vista a alcançar-se o sentido com que deve valer juridicamente.
IV - No domínio das relações imediatas, constitui matéria de facto apurar, de acordo com as circunstâncias do caso, por qual das sociedades (sacadora ou aceitante) o avalista deu o seu aval.

I - Mantém-se actual, não obstante as críticas de que tem sido objecto, o entendimento emergente do Assento do STJ de 01-02-1966 de que a presunção do art.º 31, IV, da LULL foi estabelecida iuris et de iure, não admitindo prova em contrário, ainda que no domínio das relações cambiárias imediatas.
II - Não ocorre, porém, falta de indicação do avalizado, pressuposto da aplicação da citada doutrina, se no verso da letra as assinaturas dos avalistas constam apostas debaixo da expressão “dou o meu aval à firma subscritora”.
III - Trata-se, contudo, de indicação imperfeita, ou equívoca, já que, não estando prevista para as letras a figura do subscritor, tanto se pode considerar como subscritora a sacada como a sacadora.
IV - Uma tal situação, não equivalendo à da falta de indicação da pessoa do avalizado, apenas exige que, através da actividade interpretativa, se averigúe da vontade negocial das partes e, em consequência, se conclua a favor de quem, em concreto, os avales foram prestados.
V - É aos embargantes (avalistas) que compete provar, como facto impeditivo do direito invocado pela exequente (sacadora), que o aval prestado o fora a favor da sacadora, pelo que, se através do julgamento de facto se chega a uma situação de non liquet - pois que não se prova que o aval foi dado à sacadora, nem se prova que o foi à aceitante - os embargos de executado têm que ser decididos contra aqueles.

É evidente que em si a referência ao “subscritor” é insuficiente, tal como seria a referência a um nome próprio “ José” ou a uma alcunha “ o raposão”; mas tais indicações são susceptíveis de determinação com apoio de elementos extracartulares o que só é possível no plano das relações imediatas.

No entanto se, no âmbito da acção, as partes se limitam a pretender que essa referência ao “subscritor” chega para se considerar que o aval é dado ao aceitante, é claro que o tribunal não pode decidir dessa forma. E foi  o que aconteceu no Ac. do S.T.J. de 5-2-1998 (Cardona Ferreira) pois o tribunal estava vinculado aos termos em que a questão lhe fora suscitada como teve o cuidado de referir: “ se há, ou não, outro enquadramento jurídico porventura responsabilizador da embargante, isso é algo que ultrapassa este processo”, ou ainda: “ repetimos que nos cingimos, como não pode deixar de ser, a esta instância, tal como a própria exequente-embargada-recorrente a delineou, pelo que não pode deixar de assumir a responsabilidade do que fez ou deixou fazer”.

A doutrina do assento foi, no entanto, afastada pelo Supremo Tribunal de Justiça - Ac. de 14-10-1997 (Costa Soares) B.M.J. 470-637 -  e, por isso, a seguir-se tal orientação, hoje vale este entendimento: “ sendo a letra um título de crédito e, por isso, um título dominado pela característica da literalidade, e sendo esta destinada à protecção de terceiros adquirentes de boa fé, segue-se que, em relação a terceiros que tenham adquirido a letra confiados em que, nos termos da al. 4 do artigo 31º o aval se considera dado pelo sacador, não é admissível ter em conta circunstâncias exteriores ao documento cambiário, e que, por conseguinte, não pode provar-se ter o aval sido dado a pessoa diversa do sacador.

Nas relações imediatas, pelo contrário, não havendo que proteger terceiros de boa fé, é admissível a prova de que  o aval foi dado a pessoa diferente do sacador, ainda que esta vontade se não encontre expressa no texto da letra.

Então, se se prova que o aval foi dado pelo aceitante, e não pelo sacador, o sacador que tenha pago a letra pode demandar cambiariamente o avalista” (Vaz Serra, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 108º, pág. 80). Veja-se o Ac. do S.T.J. de 18-5-1999 (Sousa Inês) B.M.J. 487-334, o Ac. do S.T.J. de 9-5-2002 (Ferreira de Almeida) C.J.,2, pág. 48, o Ac. do S.T.J. de 03-10-2002, Revista n.º 2609/02 - 7.ª Secção (Quirino Soares), o Ac. do S.T.J. de  21-01-2003 (Lopes Pinto)  Revista n.º 4266/02 - 1.ª Secção, o Ac. do S.T.J. de 30-10-2003 (Quirino Soares) (P. 3334/2003) onde se refere: 1. O aval ao subscritor, dado numa letra, tem o significado normal de aval ao aceitante; 2. Mesmo no domínio das relações imediatas, não é permitido ao devedor cambiário opor ao credor a nulidade da relação subjacente, por vício de forma, o Ac. do S.T.J. de 25-3-2004 (Bettencourt Faria) (P. 287/2004), o Ac. da Relação de Lisboa de 4-2-1999 (Ferreira Mesquita) in Actualidade Jurídica, Ano II, nº 24 (Março de 1999), o Ac. da Relação de Lisboa de 20-1-2000 (Silva Pereira) C.J.,1, pág. 88.

6. A última questão é mais singela visto que o artigo 32º da L.U.L.L. prescreve que a obrigação do dador do aval se mantém, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma e a excepção invocada prende-se com matéria que não corresponde a qualquer vício de forma;  por outro lado os recorrentes não alegam que pagaram.

Assim, no Ac. do S.T.J. de 19-3-2002 (Miranda Gusmão) C.J., 1, pág.  147 (e também no Ac. do S.T.J. de 1-7-2003 (Azevedo Ramos) revista 03A 1942) refere-se que a inexistência da obrigação do avalizado não é um vício de forma para os efeitos do artigo 32º §2º da L.U.L.L. e sumariava o Boletim dos Assessores do S.T.J. de Março de 2002 o seguinte:

I - A obrigação do avalista mantém-se no caso de a obrigação do avalizado ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.
II - Só existe “vício de forma” para os efeitos do art.º 32, al. 2), da LULL quando a assinatura vinculativa do avalizado não é aposta no local prescrito por lei.

De facto, como referimos no Ac. da Relação de Lisboa de 1-6-2000 (P. 2797/2000), CJ, Ano XXV, 3, pág. 109 e B.M.J. 498-268, o vício de forma a que alude o artigo 32º II da LULL há-de respeitar à própria obrigação cambiária ou, pelo menos, por meio dela tem de se evidenciar.  Nem o sacado nem o avalista podem invocar com sucesso a nulidade do mútuo não comercial para se eximirem ao pagamento da quantia que foi efectivamente entregue, e não restituída, reclamada cambiariamente.

Por isso sempre seria inútil prosseguir a causa para averiguação da matéria de facto tendo em vista saber se, nos termos do contrato firmado (como se vê quanto a este ponto aqui já os próprios recorrentes pretendem valer-se da relação subjacente), a inviabilidade da reparação do veículo por causa de sinistro significa que houve perda de veículo nos termos e para os efeitos da cláusula 2.4. do contrato de aluguer.

Decisão: nega-se provimento ao recurso confirmando-se a decisão recorrida.


Custas pelos recorrentes


Lisboa, 3/3/05


(Salazar Casanova)
(Silva Santos)
(Bruto da Costa)