Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2176/18.1T9FNC.L1-9
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
DESCRIÇÃO CIRCUNSTANCIADA DOS FACTOS
FACTOS NÃO INDICIADOS
FALTA DE ENUMERAÇÃO DE FACTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I-Verifica-se “in casu”, ausência de descrição dos factos indiciados no despacho de não pronúncia proferido a qual constitui irregularidade que influi na decisão da causa e que impede uma correta apreciação do recurso, designadamente sobre a existência ou não de indícios quanto aos crimes imputados no RAI apresentado pelas assistentes (art.º 123.º do C.P.P.);
II-Com efeito, para poder fazer uma valoração lógica da gravidade, precisão e concordância dos indícios por forma a considerá-los suficientes ou insuficientes para sujeição do arguido a julgamento, tem o Tribunal da Relação de conhecer quais os factos, dentro do objeto da instrução, considerados indiciados e não indiciados pela 1ª Instância, bem como a fundamentação que subjaz a tal decisão, para poder decidir se os primeiros são ou não suficientes para a sujeição do/a(s) arguido/a(s) a julgamento pelo crime imputados no RAI, de molde a poder confirmar ou não o despacho de pronúncia ou de não pronúncia;
III-E, influindo na decisão da causa, já que impede o reexame da causa pelo Tribunal de recurso, tal irregularidade poderá ser conhecida oficiosamente e sanada, nos termos previstos no art.º 123.º, n.º 2, do C.P.P., no qual se determina: pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado, que neste caso, pelo que constatando-se a apontada irregularidade, impõe-se, por conseguinte a revogação, nesta parte, da decisão recorrida, a qual deverá ser substituída pelo tribunal a quo, por outra que supra aquela irregularidade, enumerando todos os factos indiciados e não indiciados por referência ao requerimento de abertura de instrução apresentado.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

No Juízo de Instrução Criminal do Funchal, por despacho de 24/11/2021, decidiu-se não pronunciar a Arg.1 AA, com os restantes sinais dos autos, nos seguintes termos:
“... Findo o inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento relativamente à denúncia apresentada por ……………….., na qualidade de procurador de ………………. na qual imputava a AA, a prática de factos susceptíveis de integrar a prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1 e n.º 4, alíneas a) ou b) do Código Penal.
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Por discordar do teor do despacho de arquivamento ……………. e de ………………. requereram a abertura de instrução, nos termos do disposto no art.º 287.º n.º 1 al. b) do Código de Processo Penal, alegando, em síntese, que …………………. faleceu na madrugada (04:00h) do dia 12/12/2017, em Erongo, República da Namíbia após o que, as assistentes se deslocaram a Portugal para tratar de questões burocráticas.
Refere que as assistentes sabiam que a sua tia tinha património imobiliário na RAM, bem como de contas bancárias e um cofre tendo deixado documentos referentes às jóias que se encontravam no interior do mesmo.
Menciona que tentaram saber junto da CGD como poderiam proceder à abertura do cofre, tendo-lhes sido comunicado que o dito cofre havia sido esvaziado, resultando do apurado em inquérito, que a arguida no dia 13 de Dezembro de 2017 esvaziou o cofre e o encerrou.
Afirma que ao contrário do que refere no seu interrogatório, a arguida sabia da existência de todos os bens dentro do cofre, sabia não ser herdeira da falecida e não ter direito a qualquer dos bens existente.
Descreve que a arguida menciona a existência de um testamento na Namíbia e que entregou bens à herdeira da falecida, mas esse testamento apenas se refere ao património na Namíbia e a arguida nunca foi confrontada com a existência do testamento feito em Portugal, do qual resulta que as assistentes são as herdeiras da falecida.
Requereram que seja proferido despacho de pronúncia da arguida pela prática de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1 e n.º 4, alíneas a) e b) do Código Penal.
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Em sede de instrução procedeu-se a inquirição de uma testemunha e análise dos documentos juntos, bem como daqueles cuja junção se determinou.
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Realizou-se o debate instrutório com observância do formalismo legal.
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O tribunal é competente.
O Ministério Público tem legitimidade para exercer a acção penal.
Não existem outras nulidades ou questões prévias ou incidentais de que cumpra, conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
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Segundo o disposto no art.º 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
O art.º 283.º, n.º 2, ex vi art.º 308.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, estipula que “consideram-se suficientes os indícios, sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Sobre este conceito legal escreve o Prof. Figueiredo Dias - os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando já em face dela, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição. Acrescenta este autor que logo se compreende que a falta delas (provas) não possa de modo algum desfavorecer a posição do arguido: um “non liquet” na questão da prova..., tem de ser sempre valorado a favor do arguido. - Direito Processual Penal,1º, 1974, 133, citado no Ac. da Rel. de Coimbra, de 31.3.93, in C.J., T. II, p. 65.
Na jurisprudência, a interpretação desse conceito é resumida pela Relação de Coimbra (Ac. da Rel. de Coimbra, de 31.3.93, in C.J., T.II, p.65) da seguinte forma - para a pronúncia, não é preciso uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que é imputado.
Neste sentido se pronunciou o S.T.J. (Ac. de 10.12.92, citado no Código de Processo Penal Anotado, de Manuel Silva Santos e outros, Ed. de 1996, p.131), que definiu “indiciação suficiente” como aquela que resulta da verificação suficiente de um conjunto de factos que, relacionados e conjugados, componham a convicção de que, com a discussão ampla em audiência de julgamento, se poderão vir a provar em juízo de certeza e não de mera probabilidade, os elementos constitutivos da infracção porque os agentes virão a responder.
Deve assim o juiz de instrução compulsar os autos e ponderar toda a prova produzida em sede de inquérito e de instrução e fazer um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, consequentemente, remeter ou não a causa para a fase de julgamento.
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As assistentes imputam à arguida a prática, como autora material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1 e n.º 4, alíneas a) e b) do Código Penal.
Nos termos do disposto no art. 205.º, n.º 1 do Código Penal, quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
Conforme ensina Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 94, “Abuso de confiança é, segundo a sua essência típica, apropriação de coisa móvel alheia que o agente detém ou possui em nome alheio; é, vistas as coisas por outro prisma, (...), violação da propriedade alheia através de apropriação, sem quebra de posse ou detenção (...).”
São, deste modo, elementos do tipo: a) a apropriação ilegítima; b) de coisa alheia móvel; c) entregue por título não translativo da propriedade.
O abuso de confiança consiste em o agente fazer sua (apropriar-se) uma coisa móvel alheia que já detém. A apropriação não acompanha a posse ou detenção da coisa, sucedendo antes a essa mesma posse ou detenção. Com efeito, o agente começa por receber a coisa validamente, passando a possuí-la ou a detê-la de forma lícita, embora a título precário ou temporário, só que, a posteriori, vem a alterar, arbitrariamente, o título de posse ou detenção, passando a dispor dela ut dominus. Deixa, pois, de possuir em nome alheio, fazendo entrar a coisa no seu património ou dispondo dela como se fosse sua, em qualquer dos casos com o propósito de não a restituir.
Com efeito, como salientam Simas Santos e Leal-Henriques, “de início, o agente recebe validamente a coisa, passando a possuí-la ou detê-la licitamente, a título precário ou temporário, só que posteriormente vem a alterar, arbitrariamente, o título de posse ou detenção, passando a dispor da coisa ut dominus” (In Código Penal Anotado, Vol. II, 3.ª ed., Rei dos Livros, 2000, p. 686.)
Assim, a verificação do crime de abuso de confiança pressupõe uma entrega válida de coisa móvel, sendo que esta entrega terá, forçosamente, de ser realizada por título que não implique a transferência da propriedade nos termos previstos no artigo 1316.º do Código Civil.
Apropriar-se significa, então, fazer a coisa sua, integrá-la no seu património, tornar-se o seu proprietário, exigindo-se que tal se revele por actos concludentes (Cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, II, Coimbra Editora, 1999, p. 104).
É a apropriação “o elemento típico que exprime por excelência o bem jurídico protegido”: “o agente, que recebera a coisa uti alieno, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela - naturalmente, através de actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais - uti dominus”; é “exactamente nesta realidade que se traduz a ‘inversão do título de posse e detenção’ e é nela que se traduz e se consuma a apropriação” (In Comentário...cit., p. 103.).
Um dos “actos concludentes” de que se pode deduzir “que o agente inverteu o título de posse e passou a comportar-se perante a coisa como proprietário” é - para além da “disposição (da coisa) de forma injustificada” - a sua dolosa “não restituição no tempo e sob a forma juridicamente devidos” (In Comentário...cit., e neste sentido, v. igualmente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/05/2003, Processo n.º 3P852, in wwwÁgsi.pt.)
Com efeito, o crime de abuso de confiança pressupõe a inversão do título de posse ou detenção, i. e. exige que o agente passe a comportar-se relativamente à coisa como seu proprietário e isto terá, inequivocamente, de resultar de actos objectivamente idóneos e concludentes.
No que diz respeito ao tipo subjectivo, importa referir, como faz Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 107, que se exige o dolo relativamente à totalidade dos elementos do tipo objectivo de ilícito, “tratando-se pois de crime de congruência total.”
Ora, da conjugação da prova produzida em sede de inquérito e de instrução não resultam indícios suficientes da prática pela arguida do crime que lhes foi imputado pelas assistentes.
Na verdade, ainda que considerando o teor do depoimento prestado em sede de instrução e o teor dos documentos juntos, não é possível afirmar que aquando do falecimento ………………….. se encontravam no cofre a que a arguida acedeu quaisquer bens que não aqueles que a arguida descreve no seu interrogatório, designadamente jóias, que aliás não foram concretamente descritas no requerimento de abertura de instrução ou indicado o seu valor.
Com efeito, a arguida afirmou que o cofre apenas continha documentos e uma chave que entregou a quem considerou ser a herdeira da falecida, ……………………………., a qual, no seu depoimento confirmou a versão da arguida.
Por sua vez, a testemunha ouvida em instrução, embora afirmando que a falecida lhe disse que as jóias que tinha em Portugal eram para as suas sobrinhas e lhe tenha entregue uma lista relativa ao seu conteúdo, nunca viu o conteúdo do cofre, podendo apenas confirmar que se deslocou com aquela ao banco – juntamente com a arguida – ficando a aguardar em zona exterior.
Muito embora a testemunha tenha sido peremptória quanto a estas afirmações, foi notório no seu depoimento que tomou posição no litígio referente à validade do testamento efectuado na Namíbia pela falecida e ao facto de ……………………………. ser beneficiária do mesmo.
Do teor dos documentos juntos resulta assim e apenas que a arguida acedeu ilegitimamente ao cofre da falecida, porquanto a procuração usada caducou com o falecimento daquela e que entregou documentos e uma chave a ………………………….. na convicção de que os entregavam a quem a eles tinha direito.
Assim, considero que não existe uma probabilidade razoável de condenação da arguida pelos factos descritos no requerimento de abertura de instrução, não devendo, por isso, a arguida ser pronunciada.
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Pelo exposto e ao abrigo do disposto nos arts. 283.º, n.º 2, 307.º e 308.º do Código de Processo Penal, decido não pronunciar a arguida ………………………….. pela prática, como autora material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1 e n.º 4, alíneas a) ou b) do Código Penal.
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Custas a cargo das assistentes fixando a taxa de justiça em 3 UC (arts 515.º, n.º1, alínea a) do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais por referência à tabela III anexa ao mesmo). ...”.
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Não se conformando, as Assistentes ……………… e ………………………, id. a fls. , interpuseram recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. , com as seguintes conclusões:
“... No entender das Assistentes, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento sobre a matéria de facto e de direito, na douta decisão recorrida, uma vez que:
1. O Tribunal a quo errou ao considerar que existia probabilidade razoável da Arguida não ser condenada;
2. Tanto em sede de inquérito, como em sede de instrução, resulta clara a existência de indícios sérios e suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação à arguida de uma pena em sede de julgamento, pelo crime de abuso de confiança, p. e p. no art. 205.º do CP;
3. Ficou provado que …………………………. faleceu na madrugada (04:00h) do dia 12/12/2017, em Erongo, na República da Namíbia;
4. Ficou demonstrado que as Recorrentes sabiam que a sua falecida tia era detentora de alguns imóveis, contas bancárias e de um cofre bancário (n.º 5) contendo diversas jóias e dinheiro na Madeira;
5. Se comprovou que a falecida tia havia deixado vários documentos, escritos por si, com a identificação de todas as peças de joalharia que estavam dentro do referido cofre n.º 5;
6. A testemunha ……………… ……….. confirmou ao Tribunal a quo que aqueles documentos haviam sido escritos pela falecida ……………. (pelo menos duas das páginas apresentadas que foram devidamente indicadas);
7. A testemunha ……………… referiu que na última visita que a falecida ……………. efetuou à Madeira, juntamente consigo, aquela confiou-lhe um caderno de notas pequeno, onde estavam aqueles escritos, referindo que o mesmo deveria ficar escondido até
regressarem à Namíbia;
8. Se provou que a falecida ……….. referiu à testemunha ……….. que se tratava da identificação das joias do cofre existente na Madeira de que aquela era detentora;
9. No decorrer das diligências realizadas pelo douto MP, em sede de inquérito, é possível verificar que o cofre foi esvaziado no dia 13/12/2017 e encerrado nessa mesma data pela Arguida;
10. Ficou provado que a Arguida tinha conhecimento da existência de todos os bens constantes no referido cofre, daí que fosse logo no dia após a morte da falecida aceder ao cofre, tendo levantado e esvaziado o cofre;
11. A Arguida sabia não ser herdeira da sua falecida prima e não ter direito a nenhum dos bens ali existentes;
12. A Arguida alega a existência de um testamento namibiano e que os bens do cofre deveriam ser entregues a uma alegada herdeira, de nome ………..;
13. Ora, se a Arguida sabia quem era a herdeira, se sabia que teria apenas de entregar os bens àquela herdeira, para quê tanta pressa em aceder e encerrar o cofre?
14. Se o cofre não tinha nada de valor, porque foi a Arguida a correr, logo após a morte da falecida e usando uma procuração caduca, encerrar o cofre?
15. É evidente que a Arguida sabia da existência das joias e quis precaver o destino a dar àqueles bens!
16. A Arguida justifica ainda saber que o imóvel a que pertenciam as chaves constantes do cofre pertenciam a uma empresa;
17. Acontece que, ficou provado que, embora o imóvel estivesse registado no nome de uma empresa, o mesmo pertencia à Sra. ………… que sempre usufruiu e utilizou o dito imóvel;
18. A Arguida tinha pleno conhecimento que a procuração de que era detentora caducava com a morte da falecida tia, por força da sua formação profissional (Notariado);
19. Os bens constantes do cofre estavam identificados nos documentos juntos aos autos (confirmados pela testemunha …………..), como também foram vistos pela testemunha ………….. (ouvida em sede de inquérito), responsável pela abertura do cofre no Banco
Nacional Ultramarino;
20. Foi aquela testemunha ………… quem auxiliou a falecida ……………. na abertura daquele cofre, no já extinto Banco Ultramarino Português.
21. Foi provado documentalmente pela Caixa Geral de Depósitos que o cofre, inicialmente criado no Banco Nacional Ultramarino em 1978 foi transferido para a Caixa Geral de Depósitos posteriormente, com o encerramento daquele BNU;
22. A testemunha ………….., ouvida em sede de instrução, foi a última pessoa com quem a falecida …………. viajou para a Madeira pela última vez e foi quem acompanhou a Sra. ………….. para todo o lado, durante essa estadia;
23. Ficou provado que a testemunha ………. acompanhou a falecida …………., juntamente com a Arguida à CGD, com o pretexto da Arguida visitar o cofre juntamente com a …………, já que esta passaria a ser procuradora da falecida na Madeira;
24. Ficou demonstrado que, naquela visita, tanto a Arguida, como a …………. não retiraram qualquer bem do cofre;
25. Ficou comprovado que a falecida …………….. havia confidenciado à testemunha ………. que eram ali que estavam depositadas as joias identificadas nos escritos que a própria fez;
26. A testemunha …………… afirmou ainda em tribunal que em momento algum viu a falecida ……………. com as joias;
27. Se comprovou que, na última viagem feita à Madeira pela falecida ……….., esta fez-se acompanhar da testemunha ………………, sua grande amiga, tendo ambas ficado no apartamento da falecida durante essa estadia;
28. Se demonstrou que a testemunha …………….. saberia se a falecida …………… tivesse efetuado nova visita ao cofre durante essa estadia;
29. A testemunha …………. afirmou saber que era intenção da falecida deixar os seus bens de Portugal às aqui Recorrentes (filhas da sua irmã já falecida que seria a sua única herdeira);
30. Existem indícios suficientes da prática do crime de abuso de confiança pela Arguida no caso em concreto;
31. As joias estão todas identificadas nos escritos da falecida, conforme foi confirmado pelas testemunhas ………. e ……………..;
32. Ficou demonstrado que a Arguida visitou o cofre, esvaziou-o e encerrou-o um dia após a morte da falecida ……….. sem apresentar motivo válido para o ter feito de forma tão apressada;
33. A conduta da Arguida foi premeditada, estando apenas a aguardar a notícia da morte da Sra. ………………. para proceder ao levantamento dos bens que integravam o cofre n.º 5;
34. A conduta da Arguida provocou, também, graves danos patrimoniais às Recorrentes e aos demais herdeiros da falecida tia que se viram privados das referidas joias e dinheiro existentes no cofre;
35. De acordo com o teor do documento junto a tis. 30 a 34, as recorrentes sabiam que o valor das joias ascendia a milhares de euros;
36. A Arguida agiu de má-fé, de forma deliberada, voluntária, livre e consciente;
37. A Arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei e mesmo assim não se coibiu de a concretizar;
38. A Arguida queria causar um prejuízo patrimonial efetivo às Recorrentes.
39. É entendimento das Recorrentes que a Arguida cometeu assim o crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1 e 4, alíneas a) e b) do Código Penal, devendo por isso ser pronunciada por esse crime;
40. Entendem as Assistentes que a decisão do Tribunal a quo é errada e injusta, razão pela qual deve a decisão instrutória recorrida ser revogada por V. Exas., com todas as consequências legais, designadamente, pronunciando a arguida pelo crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelo artigo 205.0 , n.º 1 e 4, alíneas a) e b) do Código Penal, tudo nos termos e com os fundamentos acima indicados.
Termos em que, dando-se provimento ao presente recurso e com o douto suprimento de V. Exas., deve a decisão instrutória ora recorrida ser revogada e, consequentemente, ser a Arguida pronunciada pelo crime de abuso de confiança agravado, com todas as consequências legais, assim se fazendo a tão acostumada JUSTIÇA!!! ...”.
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O Exm.º Magistrado do MP2 respondeu ao recurso a fls., concluindo nos seguintes termos:
“... 1. A decisão recorrida mostra-se devidamente fundamentada de facto e direito.
2. Da conjugação da prova produzida em sede de inquérito e de instrução, não é possível afirmar que, aquando do falecimento ……………………………., se encontravam no cofre a que a arguida acedeu quaisquer bens que não aqueles que a arguida descreve no seu interrogatório, i.e., documentos e uma chave que entregou a quem considerou ser a herdeira da falecida, ………………………………….
3. Acresce que, a testemunha ouvida em instrução nunca viu o conteúdo do cofre, podendo apenas confirmar que se deslocou com aquela ao banco - juntamente com a arguida - ficando a aguardar em zona exterior.
4. Por último e como bem se aponta na decisão em recurso, os documentos juntos autos apenas demonstram que a arguida acedeu ilegitimamente ao cofre da falecida, porquanto a procuração usada caducou com o falecimento daquela e que entregou documentos e uma chave a ……………………. na convicção de que os entregavam a quem a eles tinha direito.
5. Ou seja, ao contrário do que alegam as recorrentes, os indícios recolhidos, quer em sede de inquérito, quer em sede de instrução, são manifestamente para sustentar uma pronúncia da arguida pelo crime de abuso de confiança p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1 e n.º 4, alíneas a) ou b) do Código Penal, devendo, pois, manter-se a decisão de não pronúncia da arguida.
Assim e em face do exposto, deverão ser mantidas as decisões em recurso. ...”.
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Neste tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer de fls. , em suma, subscrevendo a resposta do MP na 1ª instância e pugnando pela improcedência do recurso.
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É pacífica a jurisprudência do STJ3 no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação4, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.
Da leitura dessas conclusões e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as questões fundamentais a decidir no presente recurso são as seguintes:
I – Irregularidade do despacho recorrido, por falta de descrição dos factos que considera indiciados e não indiciados;
II – Suficiente indiciação da prática, pela Arg., dos crimes que lhe foram imputados.
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Cumpre decidir.
I - Verificamos que o despacho recorrido não especifica quais dos factos constantes do requerimento para abertura da instrução que considera indiciados e não indiciados.
Como se afirmou no acórdão da RG de 09/07/2009, relatado por Cruz Bucho, no processo 504/07.4GBVVD-A.G1, in www.gde.mj.pt, “...analisando o despacho recorrido o que desde logo dele se retira é que omite a especificação de todos os factos que se consideram suficientemente indiciados e dos que não o estão, sempre por referência à "acusação" deduzida pelo assistente no seu requerimento de abertura de instrução e à semelhança da exigência imposta pelo artigo 374°, n.º 2, do CPP para a sentença (enumeração dos factos provados e dos factos não provados).
O cumprimento dessa exigência é, por conseguinte, essencial para a fixação dos referidos efeitos do caso julgado da decisão de não pronúncia, ficando o valor deste despacho, consequentemente, afectado por via de tal omissão.
Na verdade, só após esta actividade processual se poderia seguir a tarefa de decidir se os factos indiciados, de entre os enumerados na acusação, eram ou não suficientes para a sujeição do arguido a julgamento pelos crimes imputados.
Esta é, efectivamente, a posição seguida maioritariamente nesta Relação como se colhe nomeadamente dos acórdãos de 27-9-2004, proc.º n.º 1008/04, rel. Heitor Gonçalves, de 6-4-2004, proc.º n.º 1823/04, rel. Nazaré Saraiva, de 6-12-2004, proc.º n.º 1823/04, rel. Nazaré Saraiva, de 17-10-2005, proc.º n.º 1457/05, rel. Miguez Garcia, de 6-11-2006, proc.º n.º 725/06, rel. Estelita de Mendonça, de 18-6-2007, proc.º n.º 978/07, rel. Tomé Branco, de 12-2-2007, proc. n.º 224/07, rel. Estelita de Mendonça, de 15-6-2009, proc.º n.º 453/07.6TABCL, rel. Cruz Bucho, nos quais se defende que o cumprimento dessa exigência é essencial para a fixação dos referidos efeitos do caso julgado da decisão de não pronúncia, ficando o valor deste despacho, consequentemente, afectado por via de tal omissão, a qual consubstancia irregularidade que pode ser conhecida oficiosamente, por aplicação ao caso do disposto no n.º 2 do art. 123º do Código de Processo Penal.
Não se vislumbra nenhuma razão para alterar este entendimento.
Note-se que também os acs da Rel. de Évora de 1-3-2005, proc.º n.º 1481/04-1, rel. Orlando Afonso e da Rel. de Lisboa de 10-7-2007, proc.º n.º 1075/07-5, rel. Margarida Blasco, ambos in www.dgsi.pt e o Prof. Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Lisboa, 2007, pág. 769, se pronunciaram-se, igualmente, pela necessidade de o despacho de pronúncia ou de não pronúncia conter descrição dos factos que possibilitam chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência dos indícios, embora divirjam na qualificação do vício, que o primeiro daqueles arestos classifica de nulidade insanável.
Como impressivamente se salientou no citado acórdão da Rel. de Évora de 1-3-2005:
«Não compete ao Tribunal da Relação concatenar os factos apurados e substituir-se à Mmª Juiz de Instrução na prolação de despacho de pronúncia ou não pronúncia mas tão somente, por força do recurso, em vista de factos indiciários descritos, corroborados ou não por outros elementos dos autos, decidir se todos eles são suficientes ou insuficientes para o proferimento de um despacho de pronúncia ou não pronúncia a levar a efeito sempre em primeira instância. A ausência de factos descritos impede a análise pelo Tribunal "ad quem" da bondade da solução encontrada em sede de instrução (...)
Com efeito, não faz sentido que o Tribunal de recurso deva apreciar um despacho de pronúncia ou não pronúncia se o mesmo for omisso quanto à narração dos factos indiciários. E, se nenhum facto resulta provado o Juiz deve dizê-lo expressamente.»
Constatando-se a apontada irregularidade, impõe-se, por conseguinte a revogação, nesta parte, da decisão recorrida, a qual deverá ser substituída pelo tribunal a quo, por outra que supra aquela irregularidade, enumerando todos os factos indiciados e não indiciados por referência ao requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente....”5.
No mesmo sentido, se pronunciou o acórdão da RP de 14/06/20176.
Subscrevemos inteiramente este entendimento, que tem aplicação directa ao presente caso.
Por isso, nos termos do disposto no art.º 123º/2 do CPP, há que revogar o despacho recorrido, para que seja substituído por outro que supra a apontada invalidade.
Esta conclusão prejudica a apreciação da outra questão suscitada, isto é da existência de indícios do crime que foi imputado à Arg..
*
Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, revogamos o despacho recorrido e determinamos que seja substituído por outro, que enumere os factos que considera indiciados e não indiciados, por referência à acusação do Assistente.
Sem custas.
*
Notifique.
D.N..

Lisboa, 05-05-2022
João Abrunhosa
Cristina Pego Branco

Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP).
_______________________________________________________
1 Arguido/a/s.
2 Ministério Público.
3 Supremo Tribunal de Justiça.
4 “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).” (com a devida vénia, reproduzimos a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt).
5 Contra, vejam-se os 2 acórdãos mencionados por Vinício Ribeiro, in “CPP Notas e Comentários”, Coimbra Editora, 2ª edição, 2011, pp. 841 e 842.
6 Relatado por Eduarda Lobo, no processo 5726/14.9TDPRT.P1, in www.gde.mj.pt, do qual citamos : “... O que dizer, então, se o despacho de não pronúncia for omisso quanto à descrição dos factos considerados indiciados e não indiciados?
Como é sabido, o regime geral das nulidades em processo penal está, basicamente, previsto nos artigos 118.º a 122.º do Cód. Proc. Penal e é dominado pelo princípio da legalidade ou tipicidade das nulidades: só se consideram nulos os atos que, sendo praticados com violação ou inobservância da lei, esta expressamente comine essa consequência (artigo 118.º, n.º 1).
Fora desses casos, se for cometida alguma ilegalidade suscetível de afetar o valor do ato praticado, estaremos perante uma irregularidade (n. º 2 do citado artigo 118.º).
Seguindo o entendimento acima expresso, consideramos que a lei não comina como nulidade (sanável ou insanável) a omissão, no despacho de não pronúncia, da indicação dos factos indiciados e não indiciados, pelo que tal omissão apenas poderá constituir irregularidade.
Importa, porém, determinar se tal irregularidade deve ser conhecida oficiosamente ou deve ser precedida de requerimento do interessado, sob pena de se considerar sanada.
Vejamos:
Como dispõe o nº 3 do artº 287º do C.P.P., o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente deve cumprir três condições essenciais:
a) sintetizar as razões da discordância da acusação ou da não acusação - possibilitando, nesta perspetiva, a fiscalização judicial da atividade do Ministério Público no inquérito;
b) narrar os factos e indicar as normas jurídicas incriminatórias, delimitando o objeto do processo;
c) especificar os meios de prova adequados, quer os que não foram devidamente valorados no inquérito, quer novos meios (de prova), a realizar em sede de instrução.
De notar que, quando a instrução é requerida pelo assistente, na sequência de despacho de arquivamento por parte do Mº Público, o RAI apresentado pelo assistente fixa o objeto do processo, a temática dentro da qual se há-de desenvolver a atividade de investigação do Juiz de Instrução, que fica vinculado ao seu teor aquando da prolação do despacho de pronúncia, não podendo alterar os factos ou aditar novos factos, fora das situações previstas no artº 303º n.º1 do Código de Processo Penal.
Porém, como se realça no Ac. deste Tribunal da Relação do Porto de 15.04.2015[4] «o interesse da fixação da factualidade não se esgota na delimitação dos poderes de cognição do Juiz de Instrução ao proferir o despacho de pronúncia nos termos do art. 308.º do C.P.Penal, nem no dever de fundamentação dos atos decisórios. A sua importância é também fundamental para a determinação dos efeitos do caso julgado da decisão final de não pronúncia, quando esta assenta na não verificação dos pressupostos materiais de punibilidade do arguido, ou seja, quando o tribunal conhece do mérito do requerimento instrutório.
Há aqueles casos em que o tribunal «declara que os autos não fornecem indícios materiais da existência dos factos acusados ou que o arguido os tenha praticado e em consequência não recebe a acusação». Há ainda as situações em que o tribunal declara que os factos descritos no requerimento instrutório, embora indiciados, não são subsumíveis a qualquer tipo legal de crime. «Assim, existe decisão final quando, apesar de indiciados os factos descritos no requerimento instrutório, o Sr. Juiz de Instrução concluir que os mesmos não constituem crime ou que o arguido não pode ser responsabilizado criminalmente pelos mesmos. Nessas situações, transitada em julgado essa decisão, o processo onde foi proferida só pode ser reaberto através do recurso de revisão, nos termos prevenidos nos artigos 449º, nº2, e 450º, nº1, al. b), do Código de Processo Penal (...), podendo o arguido arguir a exceção do caso julgado em qualquer outro processo que seja instaurado pelos mesmos factos.
Existe decisão final quando a não pronúncia do arguido e o consequente arquivamento do processo se deva à não indiciação de todos ou parte dos factos descritos no requerimento instrutório, os quais se apresentavam como essenciais para a integração dos elementos constitutivos do crime. Porém, porque se trata de insuficiência de prova indiciária, o processo pode ser reaberto, assim como instaurado novo processo, se surgirem novos elementos de prova que abalem o fundamento da decisão de não pronúncia. Consequentemente, a reabertura do processo arquivado pelo despacho de não pronúncia depende indubitavelmente dos respetivos pressupostos factuais. É por essa razão que o Sr. Juiz de Instrução, ao proferir despacho de não pronúncia pela não verificação dos pressupostos materiais da punibilidade do arguido, deve descrever e especificar quais os factos que considera indiciados e os que considera não indiciados, indicando os respetivos fundamentos ou motivação, pois só dessa a forma se podem definir os verdadeiros efeitos do caso julgado e se garantem cabalmente os direitos de defesa» - Ac.R.Guimarães de 27/9/2004, proc.n.º1008/04.2, relatado pelo Desembargador Heitor Gonçalves[5].
Como escreve o Cons. Maia Costa[6] «O despacho de não pronúncia por insuficiência de indícios deverá fixar expressamente quais os factos considerados não suficientemente indiciados. É que sobre tais factos forma-se caso julgado, em termos de ser inadmissível a reabertura do processo face à eventual descoberta de novos factos ou meios de prova, ao contrário do que acontece com o inquérito arquivado, que pode ser reaberto se forem descobertos factos novos (artº 279º nº 1)[7]. ... A diferença de tratamento das duas situações radica na diferente natureza das decisões: o despacho de arquivamento constitui uma decisão “unilateral” do Ministério Público, que põe termo a uma fase processual caracterizada pela falta de contraditório. Pelo contrário, a decisão instrutória de não pronúncia é proferida após um debate público, contraditório e tematicamente vinculado. Por isso, a tomada de posição sobre aqueles factos pelo juiz de instrução terá de beneficiar do princípio do caso julgado, como decisão jurisdicional que é».
No caso em apreço, a decisão recorrida é completamente omissa quanto aos factos alegados no requerimento de abertura da instrução que considera suficientemente indiciados e os não suficientemente indiciados, sendo certo que é o RAI que, como se disse, fixa o objeto do processo, a temática dentro da qual se há-de desenvolver a atividade de investigação do Juiz de Instrução, pelo que a referida omissão afeta intrinsecamente o valor daquela decisão.
...
Tendo omitido grande parte dos factos alegados no RAI, bem como a ponderação sobre as provas produzidas no inquérito e na instrução, em especial os documentos bancários, e a análise destas à luz crítica das regras da experiência, não é possível verificar e, consequentemente, sindicar o raciocínio feito pela Mmª Juíza a quo na tomada da decisão de facto, traduzindo-se a decisão recorrida tão só na conclusão decorrente da leitura subjetiva que a Srª. Juíza fez dos factos e questões em causa nos autos.
Ora, como se realça no Ac. do TRE de 01.03.2005[8]: «Não compete ao Tribunal da Relação concatenar os factos apurados e substituir-se à Mmº Juiz de Instrução na prolação de despacho de pronúncia ou não pronúncia mas tão somente, por força do recurso, em vista de factos indiciários descritos, corroborados ou não por outros elementos dos autos, decidir se todos eles são suficientes ou insuficientes para o proferimento de um despacho de pronúncia ou não pronúncia a levar a efeito sempre em primeira instância. A ausência de factos descritos impede a análise pelo Tribunal "ad quem" da bondade da solução encontrada em sede de instrução ... Com efeito, não faz sentido que o Tribunal de recurso deva apreciar um despacho de pronúncia ou não pronúncia se o mesmo for omisso quanto à narração dos factos indiciários. E, se nenhum facto resulta provado o Juiz deve dizê-lo expressamente.»
Verifica-se, assim, ausência de descrição dos factos indiciados no despacho de não pronúncia proferido nos autos, o que, em nosso entendimento, constitui irregularidade que influi na decisão da causa e que impede uma correta apreciação do recurso, designadamente sobre a existência ou não de indícios quanto aos crimes imputados no RAI apresentado pelo assistente (art.º 123.º do C.P.P.).
Com efeito, para poder fazer uma valoração lógica da gravidade, precisão e concordância dos indícios por forma a considerá-los suficientes ou insuficientes para sujeição do arguido a julgamento, tem o Tribunal da Relação de conhecer quais os factos, dentro do objeto da instrução, considerados indiciados e não indiciados pela 1ª Instância, bem como a fundamentação que subjaz a tal decisão, para poder decidir se os primeiros são ou não suficientes para a sujeição da arguida a julgamento pelos crimes imputados no RAI, de molde a poder confirmar ou não o despacho de pronúncia ou de não pronúncia[9].
E, influindo na decisão da causa, já que impede o reexame da causa pelo Tribunal de recurso, tal irregularidade poderá ser conhecida oficiosamente e sanada, nos termos previstos no art.º 123.º, n.º 2, do C.P.P., no qual se determina: «pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado»[10].
Fica, deste modo, prejudicada a análise das restantes questões suscitadas no recurso. ...”.