Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
130/17.0SWLSB-C.L1-9
Relator: MARIA LEONOR BOTELHO
Descritores: CÚMULO JURÍDICO
TRÂNSITO EM JULGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/02/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Tendo sido os factos praticados pelo arguido no âmbito dos presentes autos numa data posterior ao trânsito em julgado de outra decisão anteriormente transitada em julgado, as respectivas penas encontram-se não numa relação de concurso, mas sim numa relação de sucessão.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
1. 1. – Decisão Recorrida
No processo comum colectivo com o n.º 130/17.0 SWLSB do Juízo Central Criminal da Almada – Juiz 19 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi em 04.12.2019 proferido despacho que indeferiu o pedido formulado pelo arguido AA, melhor identificado nos autos, no sentido de ser efectuado o cúmulo jurídico da pena que lhe foi aplicada nestes autos com a que lhe foi aplicada no Procº 55/13.8 SVLSB.
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1. 2. – Recurso
1.2.1. - Inconformado com essa decisão, dela recorreu o arguido, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que proceda ao cúmulo jurídico das duas referidas penas.
Finaliza a sua motivação com as seguintes conclusões:
«1ª - A matéria deste recurso tem em conta que a reapreciação das suas condenações e a liquidação da segunda pena deveria obedecer ao disposto no art° 77 n° 1 do CP por via de uma reapreciação do caso em cúmulo jurídico, estabelecendo-se uma pena única que permitisse usufruir do disposto no art° 78°do mesmo CP.
2ª. - Na verdade, o recorrente suscitou essa questão da fixação da pena única no momento em que foi notificado da liquidação que lhe foi notificada no Estabelecimento Prisional de Sintra onde já cumpriu por inteiro a primeira pena, privado de todos os direitos de recluso, e foi notificado da liquidação promovida pelo Dgnm° Procurador da República em 05.09.2019 que determina o cumprimento sucessivo das seguintes penas
A.- pena de dois anos e 2 meses de prisão à ordem do Processo no 55/13.89VLSB
B.- A pena de 4 anos e 6 meses de prisão à ordem do Processo n° 130/17.0SWESB.
3ª.- Porque entende que o indeferimento do seu pedido viola os seus direitos, liberdades e garantias, envolve uma violação do princípio da igualdade e compromete séria e gravemente o direito a um tratamento como recluso e compromete em que a pessoa do recluso e o futuro da sua ressocialização tem de estar no centro da avaliação do caso entende que estão sendo violados os seus vem interpor o presente recurso,
4ª.- O referido Despacho recorrido de indeferimento fundamenta-se na seguinte alegação (silogismo) :
A.- Os factos praticados no âmbito dos presentes autos datam de 7/11/2017 ao passo que a decisão proferida no processo n° 55/13.8SVLSB transitou em julgado em 16/02/2016 (vide CRC junto a fls. 733 a 736).
B - Ora, tendo os factos praticados no âmbito dos presentes autos uma data posterior ao transito em julgado da decisão proferida no processo n° 55/13.8 SVLSB as respectivas penas encontram-se não uma relação de concurso, mas sim numa relação de sucessão.
Logo
C.- Os dois processos não se encontram numa relação de concurso nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 78° do CP.
5ª.- O recorrente encontra-se a cumprir pena ininterruptamente desde 07.11.2017
6ª.- A pretensão apresentada ao Mº Juiz da 2ª condenação fundamentou-se numa interpretação de o Recorrente possa ver a liquidação de suas penas associadas por um vínculo que não é meramente o temporal (o tempo do transito em julgado) como veio a reconhecer-se no Despacho recorrido.
7ª.- Já a Defesa escreveu que não se ignora que para alguns intérpretes as regras do concurso em abstracto (art 77º  nº 1 do CP) aparentemente não justificam o recurso a aplicação de uma única pena no caso de pluralidade de prática de crimes que tenha ocorrido apos transito em julgado da primeira decisão.
8ª.- O que aqui se suscita é uma outra interpretação em que deve prevalecer uma ponderação obrigatória da análise da pertinência do cúmulo e da aplicação de uma pena única se as circunstancias da pratica do segundo crime ocorre antes do inicio do cumprimento da pena do primeiro crime, como é o caso do AA, e se há uma interconexão objectiva e/ou subjectiva em ambas as acções objecto de cada ou dos dois processos.
9ª.- Na verdade a ideia do trânsito em julgado da primeira sentença condenatória como balizada num cômputo de tempo restrito a um prazo de 30 dias para quem não recorre e esgota as instâncias de recurso, o que pode levar vários anos, cria um sistema de desigualdade na ponderação do tempo, para os diversos condenados.
10°.- Porque todos sabemos que o momento do trânsito é distinto para quem tem condições para recorrer e fazer durar indefinidamente os processos, e para quem não tem essas possibilidades. Então o tempo não é uma medida nem critério absoluto para ajuizar a pertinência da audiência de cúmulo e a fixação da pena única.
11ª. O que por detrás desta relevância do tempo sobressai é a questão do cumprimento de uma pena pelo recluso à luz do seu direito à liberdade como condição primordial do seu SER como pessoa e em que a sua restrição ou privação para ALÉM DO TEMPO DEVIDO obriga o Julgador a reapreciar toda a situação que lhe é suscitada à luz dos princípios da adequação, proporcionalidade, necessidade e mínima restrição de direitos.
12ª.-Estes princípios apontam para um referente que é a PESSOA concreta do cidadão que se apresenta perante o JUIZ e o interesse da JUSTIÇA afigura-se que deva ser, entre os diversos fins das penas, a aplicação da JUSTA PENA a quem comprovadamente delinquiu.
13ª.- É deste modo que a questão da pena única e das penas sucessivas tem uma dimensão muito para além da questão do hiato de tempo processual que ocorre entre dois processos, sobretudo a partir da frágil ideia de transito em julgado.
14ª.- A interpretação pode nem ser maioritariamente seguida pela jurisprudência, mas afigura-se que é bem razoável que o Julgador deva proceder ao cúmulo e ponderação da necessidade de aplicação de uma única pena quando se constata como foi constatado pelo acesso ao Registo Criminal do arguido que há uma pena em execução e cumprimento.
15ª.- O momento da apreciação do cúmulo e do concurso se não tiver ocorrido, devendo sê-lo, impõe-se que seja quando se detecta a matéria da liquidação originária e o ligamento/desligamento do arguido de um ou outro processo ou então da liquidação subsequente, como é agora o caso.
16ª.- Parecendo que se invoca um argumento sem suporte legal ou "ultra leges", só aparentemente assim é. A apreciação da responsabilidade do agente que deve ser actual ou actualizada, no sentido de ser revista à data da nova liquidação quando ocorre uma sucessividade da execução da pena, senão oficiosamente, pelo menos se o recluso suscita a questão
17ª.- E mais pertinente é o caso quando a responsabilidade do agente requerente dessa reapreciação, por via do cúmulo, que foi fixada em cada condenação, tendo em conta as vicissitudes do tempo da realização da justiça que fez coincidir como neste caso com o cumprimento da primeira e segunda pena, impõem o olhar para ambas as condenações e obriga necessariamente, dizemos nós, a um exercício de análise da necessidade de uma pena única que resolva aquela concreta responsabilidade individual.
18ª.- Esta exigência corresponde ainda a dois imperativos do sistema de justiça penal que são (a) a exigência de tratar o condenado na perspectiva ressocializadora sujeitando-o a um plano de recuperação unitário e (b) a exigência institucional, que é o de ocupar o espaço (público!) da prisão sem a indispensável necessidade e justificação, ou seja, sem economizar e optimizar os recursos do Estado afectos à recuperação daquele cidadão.
19ª.- Corolário destas exigências é que quem tem o dever de administrar a justiça (em nome do Povo) tem de olhar a esta tripla dimensão:
- fazer justiça (1)
- recuperar o cidadão (2)
- fazê-lo com economia e optimização de recursos (3).
20ª .- O AA reclama o direito a que lhe seja aplicada urna pena única e louva-se de argumentos que merecem ser ponderados nesta Relação tendo em conta a doutrina de diversos mestres que já se pronunciaram sobre esta matéria.
21ª.- Realçamos aqui a importância de olhar para as conexões entre os factos que estão presentes nos dois crimes que permitirá o cumprimento da pena segundo os parâmetros de uma visão global da actuação do arguido, delimitando uma unidade de sentido e nas palavras de Cristina Líbano Monteiro "a culpa dos factos em relação" ou na de Figueiredo Dias " a gravidade do ilícito global perpetrado"
22ª.- Também a exigência da avaliação da personalidade unitária do AA em que têm relevância a pena que acabou de cumprir e a nova pena e se possa estabelecer com a necessária certeza que a prática dos crimes tem a ver com uma personalidade criminosa ou antes com circunstancias ocasionais e estados de saúde física e mental, designadamente o estatuto de "homeless" á data dos factos da segunda condenação.
23ª.- Esta ponderação não existiu mas impunha-se e louvamo-nos aqui de uma expressão do Senhor Conselheiro Rodrigues da Costa quando exige assim que a liquidação notificada tenha de merecer uma reclamação para dizer que a liquidação só estará ajustada depois do exercício de "uma reapreciação da personalidade unitária do agente".
24ª.- Escrevemos na motivação e repetimos aqui que o sistema prisional faz melhor o seu trabalho se, louvando-nos agora do ensinamento do Prof Figueiredo Dias, quando sublinha a importância da ponderação e valorização das dimensões da prevenção especial e da socialização que devem acompanhar o cumprimento das penas e impor uma atenção especial a quem administra essa execução.
25ª.- Neste caso do AA, tudo isto aflora com demasiada evidência. Alegou-se que no período de "homeless" veio a ser acusado e julgado e condenado num contexto igualmente fragilizado e mentalmente perturbado, que parcialmente pelo menos levou à aplicação de uma pena próxima do mínimo, mas que essa condenação estava intimamente associada a matéria do primeiro processo.
26ª.- Sustentou-se assim que havia a exigência de olhar o caso de novo quando se colocou o problema do cumprimento concreto da pena, liquidando as penas a cumprir, por isso que, no momento da liquidação que é, de facto, posterior ao do trânsito em julgado, não se nega, o AA tinha direito a pedir a apreciação do caso a partir das conexões dos crimes que se têm em presença.
27ª.- Não se entenda que o requerente pretende uma reavaliação dos factos ou alteração das penas. Do que se trata aqui é de uma avaliação particular, enquadrar nesta fase da liquidação, aqueles específicos factores que concorrem nos dois crimes e que decorrem do art° 71° do CP — culpa/prevenção.
28ª.- O presente indeferimento prejudica os direitos do AA seja em termos de igualdade com os que obtém o trânsito em julgado vários anos após a sentença, seja por o deixar preso (!) a uma interpretação que não considera um ponderação do cúmulo quando o cumprimento de uma e outra pena ocorrem em simultâneo e tudo conduziria a unificar numa única pena as penas emergentes dos vários processos.
29ª.- Esta visão unitária resolveria a discriminação que resulta da privação das faculdades inerentes ao normal cumprimento das penas e considerados oportunidades educativas no caminho para o regresso a liberdade, que fica só acessível no momento do cumprimento da segunda pena, saídas precárias, e acesso a liberdade condicional e de que no tempo do cumprimento da primeira pena nunca pôde usufruir.
30ª.- O indeferimento vai permitir a concretização da injustiça de uma liquidação da segunda pena que estabelece e acentua barreiras, e não são só temporais, que se tornam desmesuradas e desproporcionais em relação ao exercício das faculdades já mencionadas de saídas precárias, encontro com família e amigos e gozo da liberdade condicional.
31ª:- Não há razões de prevenção especial ou outra que sejam obstáculo a uma fixação de pena única por via do cúmulo negado, mas a relação familiar e social são elementos que o próprio processo interno seguramente revelará serem de extraordinária relevância, assim como a recuperação mental e da saúde do recluso, estabelecido como está em concreto uma interiorização fantástica do AA do desvalor da sua conduta.
32ª.- Mostram-se violados os artigos 77º, n° 1 e 78° do CP por via de uma interpretação restritiva dos respectivo conteúdo, sentido e alcance, recusando ver "a culpa dos factos em relação" e "a personalidade unitária do agente" e a gravidade global do ilícito".
33ª.- Violados os direitos liberdades e garantias estabelecidas no art° 32º e o da igualdade de tratamento do art° 13º n° 1 e 2 da CRP e ainda os princípios da adequação, proporcionalidade, necessidade e mínima restrição de direitos, prolongando, por via de cumprimento de penas sucessivas, o tempo necessário e ajustado ao cumprimento da pena em termos de culpa e prevenção como estabelece o art° 71° do CP
Termos em que acolhendo os argumentos expostos pede, com o mui douto suprimento de V excelências, seja o D Despacho recorrido modificado no sentido de acolher a realização da audiência para efeito de proceder ao cúmulo jurídico das penas do Processo n° 55/13.8 SVLSB e do Processo n° 130/17.0 SWLSB fixando-se uma pena única.
Assim, na perspectiva da Defesa, se fará melhor JUSTIÇA.».
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1.2.2. – O Ministério Público respondeu, defendendo que deverá ser negado provimento ao recurso e, em consequência, mantida a decisão recorrida, por entender que as penas em questão não se encontram entre si numa relação de concurso, apresentando a seguinte conclusão:
«Concluindo, dir-se-á, pois, que se nos afigura que o recurso do arguido não merece provimento enquanto advoga a tese do "cúmulo jurídico por arrastamento", pelo que o presente recurso ser considerado improcedente e manter-se, nos seus precisos termos, o douto acórdão recorrido.
V. Ex.ªs, porém, e como sempre, farão JUSTIÇA»
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1.2.3. - Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o art.º 416.° do C.P.P., aderindo à resposta dada pelo Ministério Público na 1ª Instância, pronunciou-se pela improcedência do recurso.
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1.2.4. – Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do C.P.P., sem resposta, procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, foram os autos a conferência, de harmonia com o preceituado no art.º 419.°, n.° 3, do C.P.P..
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II – FUNDAMENTAÇÃO
2. 1. – Objecto do Recurso
Dispõe o art.º 412º, n.º 1, do C.P.P, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
E no n.º 2 do mesmo dispositivo legal determina-se também que versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e
c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
Constitui entendimento pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, in www.stj.pt).
Atentas as conclusões  apresentadas, que traduzem as razões de divergência com a decisão impugnada, a questão a examinar e decidir prende-se com saber se as penas aplicadas ao ora recorrente nos Procºs 130/17.0 SWLSB e 55/13.8 SVLSB se encontram numa relação de concurso, devendo ser objecto de cúmulo jurídico.
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2. 2. – Da Decisão Recorrida
É o seguinte o teor da decisão recorrida:
«Fls. 721 e 722 - Veio o arguido AA requerer a realização de cúmulo jurídico entre a pena em que foi condenado nos presentes autos e a que lhe foi aplicada no âmbito do processo n° 55/13.85 VLSB. Sucede, contudo, que como bem salienta a Digna Magistrada do Ministério Público na promoção que antecede que os dois processos não se encontram numa relação de concurso nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 78° do CP.
Os factos praticados no âmbito dos presentes autos datam de 7/11/2017 ao passo que a decisão proferida no processo n° 55/13.8SVLSB transitou em julgado em 16/02/2016 (vide CRC junto a fls. 733 a 736).
Ora, tendo os factos praticados no âmbito dos presentes autos uma data posterior ao trânsito em julgado da decisão proferida no processo n° 55/13.8SVLSB as respectivas penas encontram-se não uma relação de concurso, mas sim numa relação de sucessão.
Em face do exposto, indefere-se o requerido.
Notifique, sendo o arguido do teor da promoção que antecede e do presente despacho.
No mais, cumpra nos termos promovidos».
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2. 3. - Apreciando e decidindo
Pretende o recorrente a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que determine a realização da audiência para elaboração do cúmulo jurídico das penas em que foi condenado nestes autos e no Procº 55/13.8 SVLSB.
E fundamenta o seu entendimento essencialmente na circunstância de considerar que viola o princípio da igualdade o facto de o período de tempo necessário ao trânsito em julgado de uma decisão poder variar de caso para caso, estando dependente da capacidade de interpor, ou não, recurso de tal decisão, sustentando ainda que estando em causa o cumprimento sucessivo de duas penas de prisão se impunha uma análise global do facto com a determinação de uma pena única.
Na sua resposta, considerou o Ministério Público que as penas aplicadas nos dois referidos processos não se encontram entre si numa relação de concurso, sendo, consequentemente, de manter a decisão recorrida.
Vejamos.
Conforme resulta do CRC de fls. 733/6, estão em causa as seguintes condenações:
1 – No Procº 130/17.0 SWLSB do Juízo Central Criminal de Lisboa - Juiz 19 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em que, por acórdão de 11.10.2018, transitado em julgado 04.03.2019, foi o arguido condenado pela prática, em 07.11.2017, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21°, n.º 1, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão.
2 – No Procº 55/13.8 SVLSB do Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 5 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em que, por sentença de 21.05.2015, transitada em julgado 23.06.2015, foi o arguido condenado pela prática, em 27.04.2013, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos art.ºs 21.°, n.º 1, e 25.°, alínea a), do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, processo em que, por sentença de 29.10.2015, transitada em julgado em 16.02.2016, foi efectuado um cúmulo jurídico desta pena com a pena aplicada no Proc.º 1355/12.0 S5LSB, por sentença de 12.12.2013, transitada em julgado em 03.03.2014, pela prática em 05.11.2012 de um outro crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, tendo sido fixada a pena única de 2 anos e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
Sendo estas as penas em questão, vejamos se, como pretende o recorrente, tais penas se encontram numa relação de concurso, devendo ser objecto de cúmulo jurídico.
O Tribunal a quo indeferiu a pretensão formulada pelo arguido, fundamentando a sua decisão dizendo que os dois processos não se encontram entre si numa relação de concurso nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 78.° do C.Penal, já que os factos praticados no âmbito dos presentes autos datam de 07.11.2017 enquanto a sentença proferida no Proc.º 55/13.8 SVLSB transitou em julgado em 16.02.2016, conforme resulta do CRC junto a fls. 733 a 736, vindo a concluir que, tendo os factos praticados no âmbito dos presentes autos data posterior ao trânsito em julgado da decisão proferida no Proc.º 55/13.8 SVLSB, as respectivas penas não se encontram numa relação de concurso, mas sim numa relação de sucessão.
Pensamos que a decisão recorrida nenhuma censura merece.
Na verdade, quanto às regas da punição do concurso de crimes, estabelece o art.º 77.º do C. Penal:
«1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3 - Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.
4 - As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.» (sublinhado nosso)
Por sua vez, relativamente ao conhecimento superveniente do concurso, determina-se no art.º 78.º do C. Penal:
«1 - Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes.
2 - O disposto no número anterior só é aplicável relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado.
3 - As penas acessórias e as medidas de segurança aplicadas na sentença anterior mantêm-se, salvo quando se mostrarem desnecessárias em vista da nova decisão; se forem aplicáveis apenas ao crime que falta apreciar, só são decretadas se ainda forem necessárias em face da decisão anterior.» (sublinhado nosso)
Resulta claro dos normativos legais transcritos que o trânsito em julgado da primeira condenação constitui o momento essencial a considerar para se determinar se duas ou mais penas se encontram, ou não, em concurso, impondo a lei o cúmulo jurídico das penas aplicadas aos crimes praticados antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles (Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena), regra a observar igualmente nas situações de conhecimento superveniente de concurso (Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior).
Para a realização do cúmulo jurídico de duas ou mais penas, é pois imprescindível que as várias infracções tenham, todas elas, sido cometidas antes de ter transitado em julgado a condenação imposta por qualquer uma delas.
E essa mesma doutrina foi fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no douto Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 9/2016, DR 1ª Série, nº 111, de 9 de Junho de 2016, no qual se determinou que «o momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso de crimes, com conhecimento superveniente, é o do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso».
Diferentemente do sustentado pelo recorrente, tal entendimento em nada viola o princípio da igualdade, sendo certo que é no momento do trânsito em julgado da sentença que a decisão se consolida, sendo a partir desse momento que a condenação constitui uma solene advertência para o condenado da necessidade de cumprir as normas da sociedade em que se insere.
Acresce que, já anteriormente à fixação da referida Jurisprudência, vinha o nosso Supremo Tribunal a entender não serem admissíveis os chamados “cúmulos por arrastamento”, como expressamente consta do Ac. do STJ de 18.01.2012, Proc.º 34/05.9PAVNG.S1, da 3ª SECÇÃO, do Ex.mo Conselheiro Raul Borges, in www.dgsi.pt, em cujo sumário podemos ler:
«I. Nos casos de cúmulo por conhecimento superveniente há que ter em consideração o imprescindível requisito do trânsito em julgado, elemento essencial, incontornável e imprescindível, que determina, simultaneamente, o fecho, o encerramento de um ciclo, e o ponto de partida para uma nova fase, para o encetar de um outro/novo agrupamento de infracções, interligadas/conexionadas por um elo de contemporaneidade, e o início de um outro/novo ciclo de actividade delitiva, em que o prevaricador - sucumbindo, na sequência de uma intervenção/solene advertência do sistema de justiça punitivo, que se revelará, na presença da repetição, como ineficaz - não poderá invocar o estatuto de homem fiel ao direito.
II. Como o STJ tem vindo a entender, de alguns anos a esta parte, não são de admitir os cúmulos por arrastamento.
III. O trânsito em julgado estabelece a fronteira, o ponto de referência ad quem, o limite até onde se pode formar um conjunto de infracções em que seja possível unificar as respectivas penas. O trânsito em julgado de uma condenação em pena de prisão, consubstanciando a advertência solene de que há que tomar novo rumo, obstará a que com essa infracção ou outras cometidas até esse trânsito, se cumulem outras infracções que venham a ser praticadas em momento posterior a esse mesmo trânsito, o qual funcionará assim como dique, barreira excludente, não permitindo o ingresso no círculo dos crimes em concurso, dos crimes cometidos após aquele limite.
IV - A consideração numa pena única de penas aplicadas pela prática de crimes cometidos após o trânsito em julgado de uma das condenações em confronto parece contender com o próprio fundamento da figura do cúmulo jurídico, para cuja avaliação se faz uma análise conjunta dos factos praticados pelo agente antes de sofrer uma solene advertência. Concretizada a admonição na condenação transitada, encerrado um ciclo de vida, impõe-se que o arguido a interiorize, repense e analise de forma crítica o seu comportamento anterior, e projecte o futuro em moldes mais conformes com o direito, de tal modo que, a sucumbir, iniciando um ciclo novo, reincidirá.
V - O trânsito em julgado constitui barreira inultrapassável para efeitos de consideração de concurso, pois a partir daqui passa a haver sucessão. Face ao trânsito, haverá que proceder a dois cúmulos jurídicos, com fixação de duas penas únicas, autónomas, de execução sucessiva.»
No caso em apreço, verifica-se que o trânsito em julgado da sentença cumulatória proferida no Proc.º 55/13.8 SVLSB ocorreu em 16.02.2016 – momento em que a respectiva condenação se constituiu numa solene advertência ao arguido de que deveria pautar a sua conduta de acordo com o direito – sendo que, após tal data, concretamente em 07.11.2017, praticou o mesmo arguido os factos que deram origem à condenação destes autos, revelando assim que tal advertência fora ineficaz para evitar que de novo delinquisse, mostrando-se consequentemente o arguido indiferente à mesma e aos fins por ela visados. 
Assim, o trânsito em julgado da primeira condenação – que no caso é já uma sentença em que se cumularam duas anteriores condenações transitadas em julgado – constitui um marco intransponível que impede o cúmulo jurídico das penas em causa nos autos, já que os factos objecto da segunda condenação (Procº 130/17.0 SWLSB) foram praticados depois do trânsito em julgado da condenação proferida no Procº 55/13.8 SVLSB.
É, pois manifesto que, como bem refere a decisão recorrida, tendo os factos praticados no âmbito dos presentes autos uma data posterior ao trânsito em julgado da decisão proferida no processo n° 55/13.8SVLSB, as respectivas penas encontram-se não numa relação de concurso, mas sim numa relação de sucessão.
Não enferma, pois, a decisão recorrida da violação de qualquer princípio e/ou  normativo legal aplicável, sendo certo que as considerações que o recorrente também faz quanto à necessidade de se analisar a personalidade unitária do agente e a gravidade global do ilícito só teriam sentido se fosse de proceder ao referido cúmulo jurídico, o que, como vimos, não é o caso dos autos.
Nos termos expostos, sem necessidade de outras considerações, improcede o recurso interposto pelo arguido.
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2. 4. – Da Responsabilidade por Custas
Quanto à responsabilidade por custas do arguido, estabelece o n.º 1 do art.º 513.º do C.P.P. que só há lugar ao pagamento da taxa quando ocorra condenação em 1ª instância e decaimento total em qualquer recurso.
Assim, tendo decaído integralmente, é o recorrente responsável pelo pagamento das respectivas custas, impondo-se por isso a sua condenação no pagamento daquelas, com taxa de justiça que se fixa em 3 UCs (art.º 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III ao mesmo anexa).
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III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se, consequentemente, a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 UCs (três unidades de conta) - (art.º 513.º, n.º 1, do C.P.P. e art.º 8.º, n.º 9, do R.C.P. e Tabela III ao mesmo anexa).
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Elaborado em computador e integralmente revisto pela relatora (art.º 94.º, n.º 2, do C.P.P.)
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Lisboa, 02.07.2020
Maria Leonor Botelho
Maria do Carmo Ferreira