Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3290/12.2TJLSB-A.L1-8
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: PROVA PERICIAL
SEGUNDA PERÍCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: A prova pericial tem por fim, segundo o disposto no artigo 388° do Cód. Civil, a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial.
Atribui-se, pois, a técnicos especializados a verificação ou inspecção de factos não ao alcance directo e imediato do julgador, já que dependem de regras de experiência e de conhecimentos técnico-científicos que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se ser aquele possuidor.
A avaliação feita pelos peritos é apenas um meio de prova, sujeito à livre apreciação do juiz (artigos 389º do CC e 489º do CPC), embora, quando se usem razões e explicações técnicas, a essa argumentação, para ser credivelmente contrariada, devem ser opostas outras razões igualmente de ordem técnica.
O objecto da segunda perícia tem de ser equivalente ao da primeira e não poderá introduzir questões novas, não projectadas na base instrutória.
A segunda perícia não constitui uma instância de recurso. Visa, sim, fornecer ao tribunal novo elemento de prova relativo aos factos que foram objecto da primeira, cuja indagação e apreciação técnica por outros peritos pode contribuir para a formação duma mais adequada convicção judicial.
Esta doutrina mantém actualidade face a igual redacção do nº 1 do artigo 487º do actual Código de Processo Civil.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.


IRELATÓRIO:


B… intentou acção com processo sumário contra G... SA, tendo peticionado a quantia de € 7.222,62.

Em 28 de Janeiro de 2014, no Serviço de Clínica Forense – Delegação do Sul do Instituto de Medicina Legal, o autor, ora apelado, submeteu-se a uma perícia médico-legal, tendo sido designada como perita a Drª C...M... – relatório de fls 26 a 31.
Em 29 de Dezembro de 2015, a mesma perita efectuou no mesmo estabelecimento médico, novo exame pericial respondendo a quesitos – fls 37 e 38. Ali se considerou, além do mais que “ Atendendo à especificidade e complexidade do quesito formulado, persistindo dúvidas, sugerimos exame complementar de Genética Médica”.

A ré apresentou um requerimento (fls 39 a 43)[1] a solicitar a realização do exame complementar sugerido.

Em 30 de Maio de 2016, no Serviço de Genética Médica do Hospital Dona Estefânia do Centro Hospitalar de Lisboa Central, o autor, ora apelado, submeteu-se a uma perícia médico-legal, tendo sido designada como perita a Drª M...A... – fls 47 e 48.

Em 02 de Novembro de 2016 a Drª M...A... procedeu a esclarecimentos a solicitação do tribunal – fls 49.

Em 30 de Agosto de 2016, a ré vem requerer a realização da segunda perícia, alegando que o relatório está em flagrante contradição com o relatório médico do Professor A...N..., médico- cirurgião que operou o autor, onde se refere que lhe foi efectuado o diagnóstico de neurofibromas no contexto de doença de von Recklinghausen.

Por despacho de 19.10.2016 ( fls 52) foi indeferida a realização da segunda perícia, com a justificação de “evitar mais delongas, sob pena, aliás, de tal acto processual ser meramente dilatório e a ré, requerente da 2ª perícia, ocorrer em litigância de má fé, considerando a elevada antiguidade do processo (2012).

Não se conformando com tal despacho dele recorreu a ré, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

Em todos os exames clínicos realizados ao apelado, até á data da realização do exame complementar, chegou-se à conclusão pela patologia neurofibromatose tipo 1 ou doença de von Recklinghausen, a qual que fundamentou a recusa de pagamento do ato cirúrgico pelo apelante nos termos do claúsula 4ª nº1 das Condições Gerais da Apólice.
Não obstante, no exame complementar de genética, realizado no âmbito da primeira perícia do Instituo Nacional de Medicina Legal, concluiu-se que o apelado não tinha diagnóstico clínico e nem sequer cumpria os critérios da patologia neurofibromatose tipo 1 ou doença de von Recklinghausen.
Face ao exposto, as conclusões constantes da primeira perícia, aliadas ao conteúdo do exame complementar (integrante da primeira perícia), evidenciam a inexactidão e contradição da primeira perícia realizada, pois que não permitem concluir validamente pela existência da patologia neurofibromatose tipo 1 ou doença de von Recklinghausen.
Neste sentido, destinando-se a realização de segunda perícia a corrigir a eventual inexactidão/contradição da primeira perícia realizada, as inexactidões anteriormente referidas justificam plenamente a sua realização.
No mesmo sentido, a realização de segunda perícia destina-se igualmente ao apuramento da verdade material dos autos.
De facto, concretizando-se a causa de pedir na responsabilidade contratual do apelante, a procedência da acção encontra-se dependente da qualificação da patologia que deu causa à cirurgia (cujo reembolso se encontra a ser peticionado) como doença congénita designada por neurofibromatose tipo 1 e/ou doença de von Recklinghausen ou simplesmente como uma formação tumorial, tal como o alegado pelo apelado, único caso em que a acção será procedente.
Entende a apelante que o douto tribunal a quo, ao decidir como decidiu, pelo indeferimento da realização da segunda perícia, não fez a mais correcta interpretação das normas processuais aplicáveis.
Deve por isso, o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por douto acórdão que admita a segunda perícia requerida pela ré, ora apelante, com as legais consequências.
O douto despacho recorrido viola, entre outras normas e princípios legais, o disposto nos artigos 411º e 487º do CPC.
Termina, pedindo que o recurso deve ser julgado procedente e de acordo com as presentes conclusões.

A parte contrária contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e pela confirmação do despacho recorrido.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

IIFUNDAMENTAÇÃO.

A)Fundamentação de facto.

A matéria de facto a considerar é a que resulta do antecedente relatório.

B)Fundamentação de direito.

A questão colocada e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, aplicável por força do seu artigo 5º nº 1, em vigor desde 1 de Setembro de 2013, consiste em saber se se tem justificação o indeferimento do requerimento de realização da segunda perícia.
Em primeiro lugar e porque os autos não fornecem os elementos referidos na nota de rodapé que antecede, não existe a possibilidade de averiguar se foi observado o prazo de 10 dias previsto na primeira parte do nº 1 do artigo 487º do Código de Processo Civil.
Assim, importa saber, de acordo com a segunda parte do preceito, se a ré alegou “fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado”.
A prova pericial tem por fim, segundo o disposto no artigo 388° do Cód. Civil, a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial.
Atribui-se, pois, a técnicos especializados a verificação ou inspecção de factos não ao alcance directo e imediato do julgador, já que dependem de regras de experiência e de conhecimentos técnico-científicos que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se ser aquele possuidor.
A avaliação feita pelos peritos é apenas um meio de prova, sujeito à livre apreciação do juiz (artigos 389º do CC e 489º do CPC), embora, quando se usem razões e explicações técnicas, a essa argumentação, para ser credivelmente contrariada, devem ser opostas outras razões igualmente de ordem técnica. De qualquer modo, o juiz não está vinculado ao parecer pericial.
Acresce que os peritos nada decidem, apenas fornecem o seu parecer, pelas informações recolhidas, seu tratamento e conclusões formuladas, tudo a levar ao relatório, para que o juiz possa emitir um juízo fundamentado, essencialmente em sede de matéria de facto.
A justificação do recurso à apreciação dos factos por meio de peritos reside na necessidade de conhecimentos especiais que o julgador não possui.
Trata-se de questões de índole técnica ou científica que pedem igualmente uma verificação e apreciação técnico-científica. E essa verificação e apreciação cujo resultado se leva ao relatório, para se tornar facilmente compreensível para as partes e julgador, pode necessitar de exposição mais clara ou de esclarecimento ou fundamentação mais desenvolvidos, de forma a que esse resultado da verificação pericial seja apreensível, inteligível, claro e completo.
É dever dos peritos fundamentar as conclusões, não bastando fazer a afirmação, concluir em determinado sentido, mas também motivar a afirmação ou a conclusão, sob pena de nulidade. É para essas situações que as partes podem reclamar do relatório da perícia.
Sendo a avaliação pericial apenas um meio de prova, todos os esclarecimentos, que não sejam impertinentes ou dilatórios, se revestem de utilidade para a decisão, sobretudo quando se trata de suprir omissões.
É faculdade das partes a de, perante um relatório incompleto (deficiente), obscuro, ambíguo ou ininteligível, ou em que existam contradições ou esteja infundamentado, apresentar reclamações em ordem a que os peritos supram as deficiências, eliminem as obscuridades e as contradições e, bem assim, justifiquem ou fundamentem as conclusões que formularam.
Preceitua o nº 3 do artigo 485º do Código de Processo Civil que, “ se as reclamações forem atendidas, o juiz ordena que o perito complete, esclareça ou fundamente, por escrito, o relatório apresentado”.
No caso dos autos, importa saber se a ré observou o ónus de alegar fundadamente as razões da sua discordância com o relatório da primeira perícia, nos termos exigidos pelo nº 1 do artigo 487º do Código de Processo Civil.
Antes da Revisão do Código de Processo Civil de 95/96, introduzida pelos Dec-Leis nº 329-A/ 95, de 12-12, e nº 180/96, de 25-9, face ao disposto no nº 1 do então artigo 609º do CPC, não se exigia que o requerente apresentasse justificação para o segundo arbitramento. Diversamente, a nova redacção do nº 1 do artigo 589º do CPC, dada pelos citados diplomas, veio impor que o requerente da segunda perícia alegue fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado. Aliás, o preâmbulo do primeiro daqueles diplomas é bem claro, neste ponto, quando refere que “… uma segunda perícia … só terá lugar sob indicação de motivos concretos de discordância em relação aos resultados da primeira”.
E, nos seus comentários ao normativo em foco, Lebre de Freitas e outros observam que “quando a iniciativa desta (segunda perícia) é da parte, não lhe basta requerê-la: é-lhe exigido que explicite os pontos em que se manifesta a sua discordância do resultado atingido na primeira, com a apresentação das razões por que entende que esse resultado devia ser diferente”[2].
No dizer de Lopes do Rego “ a realização da segunda perícia, a requerimento das partes, não se configura como discricionária, pressupondo que a parte alegue, de modo fundamentado e concludente, as razões porque discorda do relatório pericial apresentado (ou da opinião maioritária vencedora)[3].
Por sua vez, o acórdão do STJ, de 25-11-2004[4], é bem eloquente ao doutrinar que: A expressão adverbial “fundadamente” significa precisamente que as razões tenham de ser claramente explicitadas, não bastando a apresentação de um simples requerimento de segunda perícia. E sobre a razão de ser da exigência de tal requisito, nele se observa que: Trata-se, no fundo, de substanciar o requerimento com fundamentos sérios, que não uma solicitação de diligência com fins dilatórios ou de mera chicana processual. E isto porque a segunda perícia se destina, muito lógica e naturalmente, a corrigir ou suprir eventuais inexactidões ou deficiências de avaliação dos resultados a que chegou a primeira.

Em síntese, o requerente da segunda perícia tem o ónus de:
a)-em primeira linha, especificar os pontos sobre que discorda do relatório da primeira perícia, por forma a delimitar o objecto da segunda;
b)-depois, indicar os motivos justificativos de tal discordância, para que se possa aferir da utilidade ou conveniência da diligência requerida.

Mas já não lhe será exigível que demonstre ou sustente o eventual sucesso do resultado que pretende obter, tanto mais que este dependerá, necessariamente, da realização da nova perícia[5].
O objecto da segunda perícia tem de ser equivalente ao da primeira e não poderá introduzir questões novas, não projectadas na base instrutória.
Como saliente Lebre de Freitas[6], “ a segunda perícia não constitui uma instância de recurso. Visa, sim, fornecer ao tribunal novo elemento de prova relativo aos factos que foram objecto da primeira, cuja indagação e apreciação técnica por outros peritos pode contribuir para a formação duma mais adequada convicção judicial”.
Esta doutrina mantém actualidade face a igual redacção do nº 1 do artigo 487º do actual Código de Processo Civil.
Ora, no caso dos autos é manifesto que a apelante não cumpriu com aquele ónus. A realização da segunda perícia não é puramente discricionária e pressupõe, como já afirmámos, que a parte alegue de modo fundamentado e concludente as razões pelas quais discorda do relatório pericial já apresentado.
E, no caso dos autos, o pedido da segunda perícia não foi devidamente fundamentado, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 1 do artigo 487º do Código de Processo Civil.
Na verdade, e como bem refere o apelado nas suas contra-alegações, a ré ora apelante, não fundamentou as razões pelas quais discordava do relatório apresentado ou porque razão o considerava inexacto, tendo-se limitado a tecer meras considerações genéricas como “não percebe como é que através da mera observação, por uma única vez, do paciente, se pode contrariar categoricamente o diagnóstico do cirurgião que o seguiu e os resultados científicos da anatomia-patológica”.

Ora, se a ré não percebeu o resultado do relatório pericial resta-lhe pedir esclarecimentos por escrito, nos termos do disposto no artigo 485º nº 1 do CPC, ou pedir a comparência do perito em sede de audiência de julgamento para a prestação dos mesmos oralmente. Mas, tal alegada obscuridade – ou não cabal entendimento - do relatório pericial não constitui fundamento para o pedido de realização de segunda perícia, nos termos do disposto no artigo 487º nº 1 do CPC.

Ainda na senda das doutas contra-alegações, o apelante não questionou, por exemplo, a metodologia subjacente à realização do relatório pericial, os critérios subjacentes ao diagnóstico da Neurofibromatose tipo 1 ou até mesmo a qualificação médica – ao nível das competências - da perita designada comparativamente com o Professor A...N....

“É que a perita designada pelo Hospital Dona Estefânia, a Drª M... A..., é especialista em genética médica e o Professor A...N... é cirurgião. Enquanto a primeira se dedica ao estudo dos distúrbios da genética humana e lida com o diagnóstico, tratamento e controle dos distúrbios genéticos e hereditários; o segundo tem desenvolvido ao longo da sua vida profissional a cultura técnica e cirúrgica em várias áreas, entre outros, vasos, músculos, nervos, plexo braquial, linfáticos, articulações e pele, para estandardização de retalhos vascularizados e estudos de novos retalhos”.

As questões colocadas pela apelante no seu requerimento com vista à realização da segunda perícia não legitimam a efectivação da mesma, pois são totalmente irrelevantes para a resposta a dar à matéria de facto, pois que se limitam a considerações meramente genéricas.

Por isso, improcedem as conclusões das alegações de recurso.

EM CONCLUSÃO.

A prova pericial tem por fim, segundo o disposto no artigo 388° do Cód. Civil, a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial.
Atribui-se, pois, a técnicos especializados a verificação ou inspecção de factos não ao alcance directo e imediato do julgador, já que dependem de regras de experiência e de conhecimentos técnico-científicos que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se ser aquele possuidor.
A avaliação feita pelos peritos é apenas um meio de prova, sujeito à livre apreciação do juiz (artigos 389º do CC e 489º do CPC), embora, quando se usem razões e explicações técnicas, a essa argumentação, para ser credivelmente contrariada, devem ser opostas outras razões igualmente de ordem técnica.
O objecto da segunda perícia tem de ser equivalente ao da primeira e não poderá introduzir questões novas, não projectadas na base instrutória.
A segunda perícia não constitui uma instância de recurso. Visa, sim, fornecer ao tribunal novo elemento de prova relativo aos factos que foram objecto da primeira, cuja indagação e apreciação técnica por outros peritos pode contribuir para a formação duma mais adequada convicção judicial.
Esta doutrina mantém actualidade face a igual redacção do nº 1 do artigo 487º do actual Código de Processo Civil.

III–DECISÃO.
Atento o exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se o despacho recorrido, mas pelas razões acabadas de expor.


Lisboa, 28/9/2017


Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais 
Isoleta de Almeida Costa



[1]Os autos, que subiram em separado, não fornecem a data da apresentação do requerimento nem a data em que a ré foi notificada do resultado da primeira perícia.
[2][2] Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2ª Edição, Coimbra Editora, pag. 554.
[3][3]Comentários ao Código de Processo Civil, Vol 1º, 2ª Edição, 2004, pág. 509.
[4]http://www.dgsi.pt/jstj, citado no Ac. RL de 28.09.2010, in www. dgsi.pt – Processo nº 7502/08.
[5]Ac. RL citado.
[6]Ob cit. pág. 521.

Decisão Texto Integral: