Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7159/08.7TBCSC-A.L1-7
Relator: ANA RODRIGUES DA SILVA
Descritores: DEVER DE SIGILO
DEVER DE COLABORAÇÃO PARA A DESCOBERTA DA VERDADE
REGISTOS DE TRÁFEGO AUTOMÓVEL
VIA VERDE
DEVER DE CONFIDENCIALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: INCIDENTE DE LEVANTAMENTO DE SIGILO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.Os registos relativos a tráfego automóvel, especificando a data e hora em que determinado veículo automóvel passou nos pontos de cobrança das taxas de portagem determinadas através de sistema electrónico, são dados pessoais, integrando o conceito de reserva da vida privada e sob o qual existe um dever de sigilo;

2.O levantamento desse sigilo profissional, exigindo-se a prestação de informações susceptíveis de afectar a vida privada dos clientes da entidade responsável pela actividade de cobrança dessas taxas de portagem, com fundamento na necessidade de tais elementos para se efectuar a apreensão de veículos em sede de processo executivo é desproporcional face aos objectivos pretendidos, que podem ser obtidos através de outros meios.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.RELATÓRIO


1.A (actualmente …Bebidas, SA) intentou a presente acção executiva contra B.
2.–No âmbito das diligências de penhora efectuadas foi ordenada a penhora do veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca Jaguar, modelo Daimler, com a matrícula 59-==-UT e do veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca Renault, modelo Kangoo, com a matrícula 68-==-LJ;
3.Por requerimento de 10/01/2022, e na sequência da impossibilidade de apreensão dos veículos, veio a exequente requerer a notificação da Via Verde Portugal – Gestão de Sistemas Electrónicos de Cobrança, SA para informar os presentes autos sobre as deslocações efectuadas pelos veículos em causa desde determinada data.
4.Ordenada a notificação, veio a Via Verde Portugal - Gestão de Sistemas Electrónicos de Cobrança, SA indicar que “não pode fornecer informação referente aos registos de portagem (data, hora e local), por integrar o conceito de reserva da vida privada a qual apenas poderá ser enviada, mediante o consentimento do titular dos dados”.
5.Veio a exequente requerer o levantamento de sigilo profissional à Via Verde, SA por forma a que mesma indique “o registo das deslocações, em determinado período temporal, de dois veículos, tendo em vista a sua apreensão / penhora judicial”.
6.Foi proferido despacho determinando a instauração do presente incidente para conhecimento do levantamento de sigilo.

II.QUESTÕES A DECIDIR
A questão a decidir no presente incidente é determinar se deve ser concedido o levantamento de sigilo profissional.

III.FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos com interesse para a decisão do presente incidente são os que constam do relatório supra.

IV.FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Prende-se a questão em apreço nos autos com a possibilidade de levantamento do sigilo profissional que impende sobre a Via Verde Portugal relativamente ao registo de deslocações, em determinado período temporal, de determinado veículo, tendo em vista a sua apreensão judicial.

Entendeu a Via Verde Portugal que não podia fornecer informação referente aos registos de portagem (data, hora e local) solicitados em processo executivo, uma vez que essa matéria integra o conceito de reserva da vida privada a qual apenas poderá ser enviada, mediante o consentimento do titular dos dados.

Alicerça a sua recusa nos deveres de sigilo e de confidencialidade a que se encontra adstrita, nos termos do Regulamento (UE) 2016/679, do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de Abril de 2016 (“RGPD”).

Recorde-se que a Lei 58/2019, de 8 de Agosto, que assegura a execução, na ordem jurídica nacional, do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento e do Conselho, de 27 de Abril de 2016, relativo à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, transpôs para a nossa ordem jurídica o aludido Regulamento.

Nos termos desse Regulamento, a protecção das pessoas singulares relativamente ao tratamento de dados pessoais é um direito fundamental, apenas podendo ser afastado em situações excepcionais.

Por esse motivo, os responsáveis pelo tratamento de dados pessoais, bem como as pessoas que, no exercício das suas funções, tenham conhecimento dos dados pessoais tratados, ficam obrigados a sigilo profissional, mesmo após o termo das suas funções (art. 10º da Lei 58/2019, de 8 de Agosto).

Naturalmente que este dever de sigilo tem de ceder perante o dever de fornecimento de informações obrigatórias nos termos legais, nomeadamente às autoridades judiciárias, e face às atribuições da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), como decorre do art. 8º da Lei 58/2019.

Por outro lado, nos termos do art. 417º, nºs 1 e 3 do CPC, todas as pessoas têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, salvo se tal colaboração importar violação do segredo profissional.

Isto é, a par da necessidade de assegurar a realização da justiça prevê este preceito formas de respeitar os interesses particulares atendíveis dos cidadãos, bem como os diversos sigilos profissionais e similares, legalmente consagrados.

Como explicam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra, 2018, pág. 491, o dever de colaboração pode ceder “quando a colaboração implicar intromissão na vida privada ou familiar, no domicilio, na correspondência ou nas telecomunicações, casos em que os interesses em causa se sobrepõem à colaboração solicitada, tutelando a lei direitos fundamentais que expressam valores tidos por intangíveis. Outro motivo de recusa verifica-se quando o acatamento da colaboração importar violação do sigilo profissional ou de funcionário público”.

Apresentado pedido de escusa com esse fundamento, deve ser intentado o competente incidente, nos termos do procedimento regulado no CPP, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa.

Da aplicação subsidiária do artº 135º do CPP decorre que é ao juiz do processo onde é invocada a escusa que incumbe aferir da sua legitimidade, procedendo em conformidade com essa aferição.

Por outro lado, pode a dispensa de sigilo ser ainda ordenada pelo tribunal superior, sempre que tal se mostre justificado, nomeadamente quando essa dispensa se mostre imprescindível para o apuramento dos factos.

A decisão de qualquer incidente deste teor passa, então, por apurar qual o interesse que deve prevalecer: o dever de sigilo profissional ou o dever de colaboração com a administração da justiça, ponderando os interesses em jogo de acordo com o princípio da proporcionalidade constante do art. 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

Nos termos deste preceito, as restrições aos direitos, liberdades e garantias devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, não sendo despiciendo referir que o art. 335º, nº 1 do CC determina que, em caso de “colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer deles”.

Tendo este enquadramento presente, analisemos a situação sub judice.

Como já se referiu, pretende a exequente que a Via Verde Portugal indique quais as deslocações efectuadas pelos veículos em causa nos autos durante um determinado período temporal por forma a que se possa proceder à sua apreensão.

Importa não esquecer que a Via Verde Portugal é a responsável pela actividade de cobrança de taxas de portagem através de sistema electrónico, razão pela qual monitoriza a passagem de veículos em determinados pontos de cobrança instalados na via para esse efeito, efectuando o registo desse tráfego automóvel. Ou seja, nessa sua actividade recolhe dados pessoais dos seus clientes, sendo a entidade responsável pelo tratamento desses dados.

Ora, esses registos, especificando a data e hora em que determinado veículo automóvel passou num desses pontos de cobrança, são dados pessoais, integrando o conceito de reserva da vida privada e sob o qual existe um dever de sigilo.

Como se refere no Ac. TRP de 28-10-2015, proc. 1359/15.0T8MAI-A.P1, relator Anabela Dias da Silva, tratando situação idêntica à dos autos, e com o qual se concorda inteiramente, “… o armazenamento da informação relativa às características do veículo e, especialmente, em relação às datas e hora de passagem - quando relacionados com o local da transacção - podem vir a suscitar algumas interrogações em relação à privacidade ou à possibilidade de criação de “perfis individuais de condutores”. E equacionando tal facto do ponto de vista da protecção de dados no contexto da “liberdade pessoal, de circulação e de movimentos”, é inquestionável que o registo desta informação e se não forem estabelecidos mecanismos rigorosos de tratamento, conservação e acesso à informação - é susceptível de limitar a liberdade de circulação e envolver riscos de intromissão na vida privada”.

E, mais à frente, se explica que “A doutrina tem admitido que o direito à reserva pode ser limitado para a realização de actividades dirigidas à “realização de um interesse legítimo”, o qual, manifestamente, assume relevância particular quando se apresenta com características de “interesse geral” ou “interesse público”.

A própria Jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que suscitando-se dúvidas sobre a validade da prova quando se dirime interesses privados e essa prova contém informação violadora da intimidade da vida privada, podendo estar em causa a violação do disposto no art.º 26.º da C.R.Portuguesa, deve prevalecer o direito de reserva, cfr. Paulo Mota Pinto, in “O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 1993, Volume LXIX, pág. 565. Sendo que a garantia constitucional dos direitos fundamentais – como sejam a intimidade da vida privada e a dignidade humana - funcionará sempre que os interesses, nela, tutelados, não se sobreponham a outros interesses que se mostrem dignos de maior protecção, ou seja, tendo presente um critério da proporcionalidade”.

Conclui-se, portanto, que existe um conflito entre o dever de sigilo profissional e o dever de colaboração com a administração da justiça, o qual deve ser resolvido através de um juízo de proporcionalidade ou, como se diz, no aresto citado, através de um juízo de ponderação e de coordenação entre esses deveres.

Ora, ponderando os interesses em causa, entende-se que o fornecimento de informações relativas a assuntos da reserva privada dos clientes da Via Verde Portugal não se mostra proporcional face ao escopo desse fornecimento.

Na verdade, importa não esquecer que a disponibilização da informação pretendida visa a apreensão dos veículos, objectivo que não depende, naturalmente, dessa informação. Ou seja, a quebra do sigilo profissional suscitada não é nem o único meio, nem o meio mais adequado a obter essa apreensão.

Tal como se conclui no aresto que se vem seguindo, impor essa obrigação seria “comprometer liberdades e direitos fundamentais em prol de interesses económicos privados, que por outros meios podem ser legitimamente conseguidos”.

Também na decisão do TRL de 11-02-2011, proc. 4987/07.4TVLSB-A.L1-1, relator Afonso Henrique, e com objecto idêntico a estes autos, se pode ler que “A colisão entre o dever de guardar segredo e o interesse subjacente, terá de resultar de um juízo de ponderação e de coordenação entre os mesmos, de proporcionalidade, perante o interesse privado e o interesse público de administração da justiça.

Ora, in casu, o não apuramento da pretendida informação não coloca em crise o interesse do requerente em localizar a viatura a aprender.

O êxito ou o insucesso da acção não ficarão dependentes do levantamento do segredo profissional requerido.

Não é, por isso, curial “obrigar” a “Via Verde” a pôr em causa a confiança que o seu cliente tem em si e que passa por este não fornecer os seus dados pessoais a outrem, em conformidade com o disposto no artigo 17º nº1 da Lei 67/98, de 26-10 e na deliberação nº 23/95, da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) que legalizou o ficheiro respeitante à “Gestão dos Clientes/Aderentes ao Sistema de Cobrança de Taxas de Portagem Via Verde”.

É esta a solução a adoptar no caso vertente.

Assim, considera-se legítima a recusa da Via Verde Portugal em fornecer as informações pretendidas no âmbito da execução que constitui os autos principais e, consequentemente, não se autoriza o levantamento do sigilo profissional.
As custas devidas ficam a cargo da requerente, cfr. art. 527º do CPC.

V.DECISÃO

Pelo exposto, acordam as juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em não autorizar o levantamento do sigilo profissional relativamente às informações pretendidas pela requerente.
Custas pela requerente.
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Lisboa, 21 de Junho de 2022



Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa
Cristina Silva Maximiano