Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
910/20.9T8MTJ.L1-8
Relator: CRISTINA LOURENÇO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
EXTINÇÃO POR TRANSACÇÃO
DIFERIMENTO DE DESOCUPAÇÃO DO IMÓVEL
EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL
LEIS COVID 19
DIREITO DE ACÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Com a prolação da sentença extingue-se o poder jurisdicional, o que significa que o juiz não pode por sua iniciativa ou a requerimento das partes, alterar a decisão final (art. 613º, nº 1, do Código de Processo Civil).
2. O art. 6º-E, nº 7, al. b), da Lei nº 1-A/2020, de 19/03, na redação que lhe foi conferida pela Lei nº 13-B/2021, de 17/12 (Lei que adotou medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19), não concede ao devedor o direito de obstar ao direito de ação do credor, ou seja, ao direito de este lançar mão da competente ação coerciva para entrega do imóvel, mas apenas o direito de obter na ação executiva e verificados os pressupostos contidos na lei, a suspensão do ato do qual resulte a entrega da casa de morada de família.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

Relatório
J.C.C., solteiro, residente na Rua (…), em (…), propôs contra I.L. e M.A., a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, formulando a final os seguintes pedidos:
a) Seja declarada a cessação em 30/09/2020, do contrato de arrendamento do primeiro andar esquerdo do prédio melhor identificado no artº. 1º da PI, o qual foi celebrado em 25/09/2005, por o senhorio ter-se oposto à sua renovação;
b) Seja declarado que os RR deveriam ter restituído o locado ao A em 30/09/2020;
c) Sejam os RR declarados em mora na entrega do locado e por via disso condenados a pagar, ao A, a quantia de 650€/mês, a titulo de indemnização, até à efetiva entrega do imóvel ao A.
d) Seja declarado que não há fundamento para ser efetuado o depósito liberatório das rendas.
*
Os réus contestaram a ação, propugnando pela sua improcedência e consequente absolvição dos pedidos que contra si foram formulados, e, reconvindo, pediram a condenação do autor/reconvindo em indemnização por responsabilidade civil decorrente de danos causados por conduta de assédio no arrendamento, no valor de € 6.000,00.
Em sede de réplica, o autor concluiu pela improcedência da ação reconvencional e pela consequente absolvição do pedido que contra si foi dirigido pelos reconvintes.
*
Realizada audiência prévia em 12 de julho de 2021, as partes transigiram sobre o objeto do litígio após o que foi proferida sentença, tudo nos seguintes termos:
“Na sequência da discussão da matéria de facto e de direito da petição inicial e da comunicação da solução de direito pela Mm.ª Juíza, as partes retomaram as negociações sobre o objeto do litígio e, seguidamente, declararam pretender transigir sobre o mesmo, o que fizeram nos seguintes termos:
a) O contrato de arrendamento objeto dos presentes autos considera-se extinto em 30/06/2021.
b) Os réus ocuparão o andar correspondente ao arrendado melhor descrito nos artº 1º e 2º da petição inicial até 31/01/2022, mediante pagamento da indemnização mensal de 325,00€.
c) O referido pagamento será realizado através de transferência para conta bancária titulada pelo autor, cujo IBAN facultará a Ilustre Mandatária, em 2 dias, que, por sua vez, o indicará à Ilustre Mandatária dos Réus.
d) No dia 31/01/2022, as chaves serão entregues pelos réus ao autor ou à sua Ilustre Mandatária no respetivo imóvel, mediante prévia vistoria, a realizar entre as 17:00 e 18:00 horas desse mesmo dia.
e) Os Réus declararam que, com referência ao seu pedido reconvencional, nada terem a reclamar do autor.
f) O autor declara nada mais ter a reclamar dos Réus.
g) As custas serão suportadas em partes iguais, por cada uma das partes, prescindindo reciprocamente de custas de parte, em prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam os réus.
(…)
SENTENÇA
Nos presentes autos de ação declarativa sob a forma de processo comum, que J… move contra I… e M…., atenta a qualidade dos intervenientes e a livre disponibilidade do objeto destes autos, julgo válida a transação que antecede, que homologo por sentença, condenando as partes nos precisos termos acordados e, em consequência, declaro extinta a instância, de harmonia com o disposto nos artigos 277.º, al. d), 283º, n.º 2, 284º, 289º, n.º 1, a contrario, e 290º, todos do Código de Processo Civil.
Custas nos termos acordados – artigo 537.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
Fixa-se o valor à causa no indicado pelo autor acrescido do valor da reconvenção.
Mais se autoriza o autor a proceder ao levantamento das rendas que se encontram depositadas na CGD.
Registe e notifique.”
*
A sentença transitou em julgado em 30 de setembro de 2021 (referência citius 409360035).
*
Em 27 de dezembro de 2021, os réus dirigiram ao processo um requerimento, alegando e concluindo nos seguintes termos:
- Os R.R. continuam a residir no imóvel, propriedade do A., onde mantêm o respetivo domicílio fiscal e a casa de morada de família do seu agregado familiar, cumprindo o pagamento fixado em sede de transação pelo uso do imóvel no valor mensal de € 325,00;
- Desde a data da audiência prévia, vêm os R.R. envidando esforços no sentido de encontrarem um outro imóvel onde possam fixar a sua residência mediante recurso ao mercado de arrendamento, o que atá à data não foi possível devido ao elevado valor das rendas no mercado de imóveis para arrendamento;
- E a tudo isto se soma o contexto pandémico que mais dificulta a mobilização para procurar oportunidades de negócio num mercado saturado onde os R.R. não reúnem condições para competir em condições de equidade e justiça devido à sua modesta condição financeira;
- Não é expectável que os R.R. consigam prover a novo local de residência até ao termo do prazo acordado inicialmente com o A. em sede de Audiência Prévia – 31.01.2022 – sendo muito difícil encontrar por ora novo local de residência, o que ainda mais se complica em face das medidas de restrição inerentes à contenção da pandemia de SARS-COV-2, e da disseminação da doença COVID-19;
- Os R.R. são pessoas de saúde frágil, estando ambos reformados devido à sua delicada condição de saúde e detendo mesmo o R. M… incapacidade fixada em 82%;
 - De todo o modo, de acordo com o estatuído no artigo 6º E da Lei nº 1-A/2020, de 19.03, na redação dada pela Lei n.º 13-B/2021, de 05.04, não deverão ser promovidas diligências tendentes a prover à entrega do imóvel ao A., onde os R.R. e o filho destes habitam.
- Donde, deve ser sustado o eventual pedido de entrega efetiva do imóvel que é casa de morada de família dos R.R., devendo ao menos tais diligências potencialmente sindicadas ser tidas por suspensas, aguardando-se o fim da vigência da supra citada norma legal após o que será determinada a entrega futura do bem.
Terminam, pedindo que depois de ouvida a parte contrária seja decidido:
- Promover o diferimento da desocupação do imóvel do A. por parte dos RR pelo período de mais um ano (um), a fim de ser preservada a unidade patrimonial familiar e o direito constitucional à habitação como conditio sine qua non de bem-estar e integridade física e psicológica (artigos 65º e 67º da CRP), ou;
b. Em alternativa e caso assim se não entenda, sejam sustadas todas as operações tendentes à entrega efetiva do imóvel ao A. a 31.01.2022, sendo garantida aos R.R. a proteção social na pandemia prevista na Lei n.º 1- A/2020, de 19.03, na redação dada pela Lei n.º 13-B/2021, de 05.04.
*
Sobre o dito requerimento recaiu a seguinte decisão:
“Por força do disposto no artº 613º, nº 1, do Código de Processo Civil, o poder jurisdicional, com a prolação da sentença homologatória, mostra-se esgotado, não podendo, consequentemente, o Tribunal reabrir a instância para apreciação do requerimento ora apresentado após a sua extinção.
No entanto, sempre se dirá que, revestindo a presente ação natureza declarativa, a entrega de coisa certa coerciva não se processaria nos presentes autos.
Notifique.”
*
Os réus não se conformaram com esta decisão e dela vêm recorrer, tendo concluído as suas alegações com as seguintes conclusões:
“a) Inconformados com o teor do douto despacho prolatado pelo douto tribunal a quo em 05.01.2022, pelo qual foi recusado conhecer de incidente declarativo com base em regime jurídico especial que derroga a aplicação de lei geral de diferimento de desocupação de imóvel locado nos seguintes termos: “Por força do disposto no artº 613º, nº 1, do Código de Processo Civil, o poder jurisdicional, com a prolação da sentença homologatória, mostra-se esgotado, não podendo, consequentemente, o Tribunal reabrir a instância para apreciação do requerimento ora apresentado após a sua extinção(…)” vêm do mesmo interpor o vertente recurso de apelação com efeito suspensivo e subida de imediato e nos próprios autos.
b) Na verdade, e salvo o devido respeito por diverso entendimento, entendem os Recorrentes ser admissível legalmente a apreciação e decisão pelo tribunal a quo da questão de diferimento de desocupação do imóvel locado onde os recorrentes acordaram com o recorrido ficar a residir até 31 de Janeiro de 2022, todavia cientes entretanto de que não lhes seria possível prover à entrega do imóvel na data acordada, e não desejando aguardar por execução de sentença, antes se socorrendo de invocação de lei especial que protege quem como os recorrentes em situação similar se encontre em situação de maior fragilidade, estando em causa o direito à habitação, bem-estar e até à saúde;
c) Assim, entendem ser o tribunal a quo competente e judicialmente apto a conhecer do incidente por si deduzido, o qual se prende com uma impossibilidade imediata de cumprir um acordo de entrega com data aprazada em acordo homologado pelo tribunal a quo para 31.01.2022, desde logo até por uma questão de boa fé e prestando-se a fazer prova do alegado no incidente declarativo em causa que nada mais é do que uma extensão natural e necessária dos autos declarativos principais onde não se pretende alterar a decisão de fundo apreciada nos autos de despejo apenas sendo desígnio dos recorrentes de boa fé demonstrar a bondade das suas razões e justificar o seu “incumprimento” por não lhes serem imputáveis as razões para o mesmo;
d) É um legítimo e pertinente direito dos Recorrentes ver esta questão incidental apreciada e decidida pelo tribunal a quo com oportunidade de exercício do contraditório pelo Recorrido e A., como resulta dos mais basilares princípios do ordenamento jurídico português.
e) Os Recorrentes invocaram, no incidente declarativo deduzido, o regime jurídico especial estatuído no artigo 6º E da Lei nº 1-A/2020, de 19.03, na redacção dada pela Lei n.º 13-B/2021, de 05.04, a favor deles Recorrentes, não sendo promovidas diligências tendentes a prover à entrega do imóvel ao A. Recorrido, onde os Recorrentes e o filho destes habitam e pugnando pelo diferimento da desocupação do imóvel pelo prazo de mais um (1) ano, atentas as razões invocadas e com suporte em prova indicada no requerimento do incidente, nomeadamente tendo sido junta prova documental e mostrando-se arroladas testemunhas.
f) Mais sucede que, entretanto, no início do corrente ano, a situação pessoal e de saúde dos recorrentes sofreu um agravamento ainda mais evidente, e que ainda mais dificulta a entrega imediata do imóvel (por cujo uso continuam e continuarão a pagar a compensação estipulada como se de uma verdadeira renda se tratasse) sucede que o Recorrente M (…) viu-se sujeito a internamento de urgência, tendo sido alvo de intervenção cirúrgica vascular urgente com necessidade de amputação de dedos do pé direito, e carecendo nos próximos meses de fisioterapia e repouso, desconhecendo-se mesmo se lhe será possível voltar a conduzir um veículo automóvel – conforme prova documental já solicitada aos serviços administrativos do Hospital Garcia da Orta e ainda não facultada pelos mesmos, que se protesta juntar após insistência.
g) Em face do supra exposto e alegado, entendem os Recorrentes sindicar o despacho recorrido, requerendo a sua revogação e pugnando pela prolação de despacho que admita o incidente declarativo deduzido com base em lei especial invocada, sendo produzida prova, reconhecido o exercício do contraditório ao Recorrido e decidido o incidente em favor dos ora Recorrentes que creem em absoluto na viabilidade admissibilidade legal da sua pretensão, pese embora o douto tribunal a quo assim não tenha entendido.
Nestes termos e nos melhores de Direito aplicáveis, requer-se a V/ Exas Venerandos desembargadores, se dignem ordenar seja revogado o despacho recorrido, sendo substituído por outro que ordene a prossecução dos autos declarativos admitindo o incidente deduzido com base em legislação especial, sendo ordenada a produção de prova e decidido o mesmo em conformidade com o que venha a ser apurado, sendo desejável e necessário por razões humanitárias que venha a ser decretado pelo tribunal a quo o diferimento da desocupação do imóvel do A. recorrido por parte dos Recorrentes pelo período de mais um ano (um), a fim de ser preservada a unidade patrimonial familiar e o direito constitucional à habitação como conditio sine qua non de bem-estar e saúde e integridade física e psicológica ( artigos 65º e 67º da CRP, por força das circunstâncias acima referidas, alternativamente e caso assim se não entenda, que sejam declaradas sustadas todas as operações tendentes à entrega efectiva do imóvel ao A. Recorrido a 31.01.2022, sendo garantida aos Recorrentes a protecção social na pandemia prevista na Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, na redacção dada pela Lei n.º 13-B/2021, de 05.04, assim se fazendo, como se espera, a costumada e esperada JUSTIÇA!”
*
O autor não contra-alegou.
*
O recurso foi admitido neste tribunal e mostrando-se cumpridos os vistos legais, cabe apreciar e decidir.
II. Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das partes, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. arts. 635º, nº 4, 639º, nº 1, e 662º, nº 2, todos do Código de Processo Civil), sendo que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art.º 5º, nº3 do mesmo Código).
No caso, cabe apreciar e decidir das seguintes questões:
- Se depois de proferida decisão que pôs termo ao processo é possível a qualquer das partes suscitar incidente sobre a matéria da causa;
- Possibilidade de invocar o regime especial e transitório previsto na Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-B/2021, de 05.04, como forma de obstar a que sejam desencadeadas diligências que visem a entrega de imóvel.
III. Fundamentação de Facto
Os factos a atender são os relatados em sede de relatório.
III. Fundamentação de Direito
Dispõe o art. 613º do Código de Processo Civil, no seu nº 1, que “Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”.
A extinção do poder jurisdicional com a prolação da sentença justifica-se pela necessidade de evitar a incerteza e insegurança que sempre adviria da possibilidade de o juiz por sua própria iniciativa, ou a requerimento das partes, alterar a decisão[1] nomeadamente, por força de circunstâncias factuais ocorridas posteriormente à sua prolação.
Ressalvadas as possibilidades de alteração consagradas na lei (cf. art. 614º - retificação de erros materiais; art. 616º - reforma da sentença; arts. 615º, nºs 1, e 2, 617º, nºs 1, e 2, todos do Código de Processo Civil – suprimento de nulidades) a sentença não pode ser alterada pelo tribunal que a proferiu.
Como assinalam João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa[2], um dos efeitos da decisão final, é precisamente, o da sua irrevogabilidade, que decorre do esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria decidida.
 “(…) O juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão, nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível.
Ainda que logo a seguir ou passado algum tempo, o juiz se arrependa, por adquirir a convicção de que errou, não pode emendar o seu suposto erro. Para ele a decisão fica sendo intangível.
Convém atentar nas palavras «quanto à matéria da causa». Estas palavras marcam o sentido do princípio referido. Relativamente à questão ou questões sobre que incidiu a
sentença ou despacho, o poder jurisdicional do seu signatário extinguiu-se. Mas isso não obsta, é claro, a que o juiz continue a exercer no processo o seu poder jurisdicional para tudo o que não tenda a alterar ou modificar a decisão proferida. O juiz pode e deve resolver as questões e incidentes que surjam posteriormente e não exerçam influência na sentença ou despacho que emitiu; cumpre-lhe, por exemplo, prover a todos os atos relativos à interposição e expedição do recurso oposto à sua decisão.
(…) O princípio justifica-se cabalmente, por uma razão de ordem doutrinal e por uma razão pragmática.
Razão doutrinal: o juiz, quando decide, cumpre um dever – o dever jurisdicional – que é a contrapartida do direito de acção e de defesa.(…)
A razão pragmática consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional. (…)[3].
“Da extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem, assim, dois efeitos: um positivo – traduzido na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; um negativo – representado pela insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar”[4].
Pelo exposto, é patente que o tribunal não podia admitir um incidente através do qual os réus visavam obter, em primeira linha, uma alteração da sentença quanto a uma das questões objeto da causa, designadamente, a desocupação do imóvel, improcedendo, nesse tocante, a pretensão dos réus/recorrentes.
Resta aferir da possibilidade de invocação do regime especial e transitório previsto na Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-B/2021, de 05.04, como forma de obstar a que sejam desencadeadas diligências que visem a entrega de imóvel, ou seja, que por via de decisão proferida na ação declarativa que determinou a entrega de imóvel na data nela expressamente indicada, seja travada a possibilidade de recurso à via coerciva para entrega do imóvel.
Tal pretensão carece de fundamento legal, por não encontrar acolhimento na legislação especial invocada pelos réus.
A Lei 1-A/2020, de 19/03, na redação que lhe foi conferida pela Lei nº 13-B/2021, de 17/12 (Lei que adotou medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19), consagrou no seu art. 6º-E, o seguinte:
“(…)
7 - Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no presente artigo:
(…)
b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c) Os atos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
(…)” – sublinhado nosso.
A sustação da entrega judicial da casa de morada de família prevista na sobredita alínea c) só pode ser invocada, ponderada, e decidida, no âmbito de ação executiva, natureza que a presente ação claramente não reveste. Ou seja, quando, e caso o autor venha a executar a sentença, e nomeadamente no período de vigência da dita lei, sempre terá o juiz, independentemente de qualquer requerimento do executado, de decidir sobre a referida suspensão.
A proteção conferida pela sobredita lei não concede ao devedor o direito de obstar ao direito de ação do credor, ou seja, ao direito de este lançar mão da competente ação coerciva para entrega do imóvel, mas apenas o direito de obter, na pendência de ação executiva, e verificados os pressupostos contidos na lei, a suspensão do ato do qual resulte a entrega da casa de morada de família.
Relativamente à situação contemplada na alínea d), daquela mesma norma, nunca seria, sequer, aplicável ao caso dos autos, na medida em que o imóvel em causa não está arrendado aos réus, como resulta da sentença acima transcrita, que julgou extinto o contrato de arrendamento com referência à data de 30 de junho de 2021.
Pelo exposto, e pelos fundamentos expostos, improcede a apelação.

V. Decisão
Na sequência do que se deixou exposto e no âmbito do enquadramento jurídico traçado, acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente por não provado o recurso interposto pelos réus, e em manter a decisão recorrida.
Custas pelos réus/apelantes (art. 527º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Notifique.

Lisboa, 05-05-2022
CRISTINA DA CONCEIÇÃO LOURENÇO
FERREIRA DE ALMEIDA
TERESA PRAZERES PAIS
_______________________________________________________
[1] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Pires de Sousa, “O Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 2ª Edição, pág. 760.
[2] “Manual de Processo Civil”, Vol. I, AAFLL Editora, págs.- 626-627.
[3] Professor Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil anotado”, Vol. V, Coimbra Editora, 1984, págs. 126-127.
[4] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 20 de março de 2018, proferido no Processo 911/17.4T8VNF.B.G1, www.dgsi.pt.