Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
244/11.0TELSB-G.L1-9
Relator: ANTERO LUÍS
Descritores: MEDIDA CAUTELAR
APREENSÃO DE BENS
OBTENÇÃO DE PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: A apreensão prevista no artigo 178º do Código de Processo Penal, não permite a apreensão de bens na perspectiva exclusiva de garantia processual de eventual declaração de perda, mas, antes, exige que a apreensão esteja conexionada também à obtenção de prova.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I           Relatório

Nos autos de inquérito que correm termos nos serviços do Ministério Público do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, com o 244/11.0TELSB, na sequência de requerimento apresentado por (…), através do qual pretendiam que fosse levantada a apreensão dos bens determinada pelo Ministério Público a fls. 4438, o Meritíssimo Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal proferiu o seguinte despacho: (transcrição)

“Fls. 4881 – 4886 c/ refª a fls. 4858 a 4865 e ao despacho exarado pelo detentor da ação penal, de 18/12/15, a fls.4413 e seguintes.

Corroboro o decidido pelo MPº, em sede de fundamentos de facto e de direito do despacho de apreensão dos bens indicados, incluindo as explicitações agora feitas no despacho igualmente assinado pelos Srs. Procuradores da República.

Dou-os por reproduzidos e arrimo-me aos seus fundamentos para indeferir o levantamento da apreensão, que mantenho ao amparo do artº 178º do CPP.

Notifique. Cumprido, à PGR/DCIAP”. (fim de transcrição)

***

Não se conformando com a referida decisão, dela vieram interpor recurso os requerentes, nos termos constantes de fls. 5111 a 5142, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões: (transcrição)

1. O douto despacho impugnado afronta, com ostensiva fraude à lei, o caso julgado que se formou sobre o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido neste processo no dia 19 de novembro de 2015, que revogou o arresto dos bens dos Recorrentes agora apreendidos, e que declarou inexistirem factos que constituam indícios dos crimes que lhes são imputados e, bem assim, factos suscetíveis de integrar o justo receio de perda ou descaminho daqueles bens.

2. Os factos invocados para justificar a apreensão agora impugnada são os mesmos que serviram de fundamento ao arresto revogado por aquele douto acórdão.

3. São, por outro lado, os mesmos os indícios probatórios aduzidos nos respetivos despachos.

4. Ademais, todos os indícios e meios de prova que sustentam o despacho de apreensão já existiam e eram do conhecimento do processo à data em que foi decretado o arresto e, por maioria de razão, à data em que foi decidida e executada a apreensão.

5. Não se alterou, portanto e muito menos em desfavor dos Recorrentes, o quadro factual e indiciário que enformou as duas medidas.

6. Daí que seja ostensiva a violação do caso julgado.

7. Acresce, e reforça a violação de caso julgado, que o douto despacho sub judice não associa a esta apreensão um único facto, razão ou argumento que permita enquadrar a medida como meio de obtenção de prova, sendo absolutamente omisso a tal respeito.

8. Limita-se a adstringir à medida um escopo de preservação de bens, de acautelar o seu eventual e futuro confisco como (supostas) vantagens de (supostos) crimes,

9. sendo omisso quanto a factos de onde possa inferir-se um (já declarado inexistente pelo Tribunal da Relação) perigo de desaparecimento, dissipação ou ocultação dos bens apreendidos.

10. Com tal sentido e finalidade, a decisão implica uma interpretação extensiva e/ou analógica do artº 178º, contrária à sua letra e inserção sistemática.

11. Uma interpretação que permite que a apreensão, com meras finalidades patrimoniais e de garantia, seja executada – com possíveis danos irreparáveis, a partir da mera suspeita de um crime –, inclusive por um simples órgão de polícia criminal, sem prévio controlo de qualquer autoridade judiciária.

12. E com um controlo judiciário subsequente num prazo que vem sendo considerado meramente ordenador, logo, ineficaz para prevenir e esconjurar danos irreversíveis.

13. A apreensão regulada no artº 178º CPP não é admissível senão enquanto meio de obtenção de prova.

14. Quando muito, será admissível, verificado esse requisito, também como meio de preservação de bens representativos de vantagens do crime, sujeitos a futuro e eventual confisco, desde que se verifique, através de factos concretos, o justo receio da sua perda, dissipação ou desaparecimento,

15. condição esta última que nem se verifica neste caso concreto nem foi sequer invocada pelo douto despacho em mérito.

16. O artº 178º do CPP, na interpretação adotada, que permite a apreensão de bens desligada de finalidades probatórias (que pode, inclusive, ser decidida e executada por órgãos de polícia criminal, sem prévio controlo de uma autoridade judiciária, com um controlo posterior sujeito a um prazo ordenador e que não esconjura danos irreparáveis ao património do interessado), servindo o escopo de mera cautela de eventual e futuro confisco de vantagens do crime, sem necessidade de verificação do perigo concreto de ocultação, dissipação ou desaparecimento dos bens, afronta e ofende, sem proporcionalidade, adequação nem justificação, a garantia do direito à propriedade dos bens prevista no artº 62º CRP e o princípio estabelecido no artº 18º do mesmo diploma, sendo, portanto, inconstitucional.

TERMOS EM QUE,

revogando o douto despacho impugnado, farão Vossas Excelências a habitual

J U S T I Ç A ! (fim de transcrição)

***

O Digno Magistrado do Ministério Público respondeu ao recurso nos termos constantes de fls. 5284 a 5306 daqueles autos concluindo, nos seguintes termos: (transcrição)

I – Os Recorrentes não discutem um único indício do que está ou deixa de estar nos autos.

II – A prova existente é passível de revelar o envolvimento do arguido A... em processos de concessão fraudulenta de crédito, no período de tempo em que exerceu funções de Presidente da Comissão Executiva do BESA, valores cujo destino final são contas de que é titular, de que são titulares familiares seus, e entidades ao serviço dos interesses patrimoniais de todos.

III – A prova existente é também passível de revelar a celebração de negócios imobiliários, com responsabilidade do arguido A..., em conflito de interesses, e com resultados, também eles fraudulentos.

IV – É o caso de prova documental, como atas de reuniões em que estes assuntos foram debatidos, correspondência trocada a propósito destes assuntos, entre o arguido e elementos que assistiram a tais reuniões, bem como dos depoimentos que foram prestados.

V – Investiga-se a apropriação indevida, própria e para terceiros, de mais de 500 milhões de dólares americanos, montante que integra valores colocados ao dispor das referidas funções do arguido, em contas bancárias abertas em Portugal, e de onde saíram também com destino à Suíça, para contas da titularidade do arguido e de sociedades que existem no seu interesse.

VI – Indiciando-se a autoria de crimes de abuso de confiança qualificado pelo valor e de burla qualificada, também pelo valor.

VII – No contexto temporal desses factos o arguido, os seus familiares e a G..., sociedade que funciona no interesse do primeiro, adquiriram património imobiliário em Portugal em termos que justificam a suspeita de se tratarem de bens adquiridos com diluição das verbas conseguidas com a prática dos assinalados ilícitos, para efeitos de branqueamento, p. e p. pelo disposto nos arts. 368ºA do Código Penal.

VIII - A prova a que se faz referência está documentada no processo após a decisão de arresto que foi revogada por decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19.11.2015.

IX - Esta decisão do Tribunal superior considerou que não é admissível a renovação de arrestos no âmbito de um mesmo processo-crime, em que se procede desde o início por crime de branqueamento de capitais, quando Tribunal, também superior, invalidou os antecedentemente decretados.

X - Essa decisão considerou que não existem quaisquer elementos que indiciem a prática de qualquer crime precedente a crime de branqueamento, ou que existam factos que concretizem o risco de dissipação de património que se visou garantir com o arresto.

XI - O arresto, enquanto medida de garantia patrimonial, não se confunde com a apreensão enquanto medida consagrada no art.º 178º do Código de Processo Penal.

XII - O primeiro pode ser esgrimido, como o revogado o foi, contra património lícito que integre a esfera jurídica do responsável por uma eventual decisão de perda de bens associados à prática de crime.

XIII - O que não acontece com a apreensão, prevista no art.º 178º do Código de Processo Penal, que apenas pode abranger bens que constituam o objecto, o produto ou a vantagem de um crime, como sucede com a que foi decretada e confirmada pelo Despacho recorrido.

XIV - Não é possível no alcance possível das palavras da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, datada de 19.11.2015, que revogou a decisão de arresto de bens imóveis, concluir-se que, de direito aplicável e direito aplicado, assumiu esse Tribunal superior que o património do arguido e demais suspeitos nestes autos está à margem de qualquer reação processual penal legalmente devida.

XV - A realidade indiciária destes autos não é passível de fixação por decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, enquanto o inquérito não atingir o seu termo.

XVI - E enquanto decorre a investigação, flui da natureza das coisas que os indícios se possam alterar no sentido do seu reforço, como sucede no processo. Ao fim e ao cabo é essa a razão de ser legal do inquérito, nos termos do disposto no art.º 262º do Código de Processo Penal, sob pena de todos andarmos a brincar com inutilidades.

XVII - Procedendo a investigação pela prática de branqueamento, as autoridades judiciárias portuguesas estão vinculadas, nos termos do disposto no art.º 8º da Constituição da República Portuguesa, a decidirem em conformidade com compromissos assumidos internacionalmente pelo Estado Português.

XVIII - É o caso da Convenção de Varsóvia, do Conselho da Europa, relativa ao Branqueamento, Detecção e Perda dos Produtos do Crime e Financiamento do Terrorismo, aprovada por Resolução da AR n.º 82/2009, designadamente o disposto nos arts. 1º, al. a), c) e g), art.ºs 3, 4º e 5º, publicada em DR de 27.08 e Decisão Quadro n.º 203/577/JAI que têm que conformar o disposto, designadamente, no art.º 178º do Código Penal.

XIX - Em sede de branqueamento, a operação de diluição de dinheiro obtido com a prática de crimes punidos com penas de prisão até 8 anos, designadamente por via da aquisição de património imobiliário, constitui simultaneamente um instrumento de um crime de branqueamento, p. e p. pelo art.º 368ºA do Código Penal, e aplicação do produto daqueles ilícitos.

XX - Onde a Lei não distingue, não é permitido ao intérprete, aplicador do direito, a realização de distinções sem razão de substância.

XXI – De acordo com a redação literal do art.º 178º do Código de Processo Penal são passíveis de apreensão os objetos que tenham servido para a prática de crime, constituam o seu produto, ou quaisquer outros susceptíveis de constituir a prova.

XXII - Não encontra expressão literal, ou dela consequente, a interpretação que os Recorrentes fazem deste preceito, para restringir a sua aplicação a meios de prova e excluindo da esfera de previsão e estatuição da norma os instrumentos e o produto de crime.

XXIII – Também em termos teleológicos, e por via da vinculação aos mencionados instrumentos de direito internacional, o Estado Português está obrigado a concretizar todas as medidas que permitam que uma decisão de perda de instrumentos ou produto do crime não esteja destituída de consequências, e independentemente do risco de dissipação dos mesmos.

XXIV - A apreensão pode inclusivamente operar sem que exista inquérito, nos termos do disposto no art.º 249º/1, al c), do Código de Processo Penal.

XXV - Sem que isso represente a violação de jurisdição necessária a acautelar o equilíbrio entre as necessidades do exercício da ação penal, e o gozo e exercício de direitos, liberdades e garantias dos visados.

XXVI - Uma vez que está legalmente consagrada a reação judicial, por via do disposto no art.º 178º/6, do Código de Processo Penal, como disso é flagrante o processado nestes autos e a interposição do recurso em resposta.

XXVII - Comprovam este modo de ver as coisas os contributos jurisprudenciais constantes do Ac. da Relação de Lisboa de 23.10.2007, proferido no processo 7123/2005, disponível em dgsi.pt, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 294/08, proferido a 29.5.2008, no Processo 11/08, que admite a manutenção de apreensões, mesmo que os factos possam ser provados documentalmente, e nos casos em que a investigação prossiga contra crimes organizados como será manifestamente a situação de branqueamento, e tendo em vista produto e instrumentos de crime.

XXVIII - O disposto no art.º 178º do Código de Processo Penal também não faz depender a apreensão do produto ou instrumento do crime da verificação concreta do risco da sua dissipação.

XXIX - Por absurdo, não nos parece que seja sustentável que o valor pago a um traficante de estupefaciente, pela venda de produto, esteja depende do risco de ele o dissipar, ao abrigo da norma em questão!

XXX - É condição de admissibilidade substantiva da apreensão, a sua adequação, necessidade perante os fins da reação penal, bem como a sua proporcionalidade.

Perante o que os autos exibem, a construção do modelo de decisão em recurso respeitou todos esses pressupostos legais e constitucionais, que por tanto deve ser mantida!

V. Exas. farão como for de justiça.” (fim de transcrição)

***

       O recurso foi admitido a fls. 5146 daqueles autos.

O Meritíssimo Juiz deu cumprimento ao disposto no artigo 414º, nº 4 do Código de Processo Penal, sustentando o despacho, nos termos constantes de fls. 5308, daqueles autos.

Ainda no Tribunal Central de Instrução Criminal os recorrentes apresentaram um parecer jurídico sobre a inconstitucionalidade alegada, que se mostra junto a fls. 1109 a 1154, destes autos de recurso.

      Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o douto parecer a fls. 1215 a 1217 destes autos de recurso, aderindo à posição assumida pelo Ministério Público na 1ª instância e rebatendo os argumentos constantes do parecer sobre a alegada inconstitucionalidade, concluindo pela improcedência do recurso.

       Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, vieram responder os recorrentes rebatendo os argumentos constantes do parecer do Ministério Público, concluindo ainda pela procedência do recurso.

Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

II          Fundamentação

1. É pacífica a jurisprudência do STJ[1] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.[2]

Os recorrentes, apesar da extensão das conclusões, colocam verdadeiramente a este Tribunal, a questão de saber se o artigo 178º do Código de Processo Penal pode ser interpretado, sem violação dos artigos 62º e 18º da Constituição da República Portuguesa, de modo a permitir a apreensão de bens desligada de finalidades probatórias.

2. Vejamos a questão suscitada apreciando, ao mesmo tempo, as várias sub-questões/pressupostos, colocadas pelos recorrentes.

2.1. A primeira das sub-questões é a identidade de pressupostos de facto, de crimes indiciados, imputados aos recorrentes resultantes do despacho de apreensão que originou o presente recurso (fls. 4413 a 4439 do processo) e o despacho de arresto de 10 de Abril de 2015 (fls. 2802 do processo), revogado por acórdão desta mesma secção, do Tribunal de Relação, de 19 de Novembro de 2015.

Esta mesma identidade existe e é reconhecida pelo Ministério Público na sua resposta ao recurso, quando refere, “ Que os factos que estão descritos no arresto e os factos que estão descritos na apreensão são praticamente idênticos não restam dúvidas. O que se altera é o campo de incidência patrimonial de ambos, e o grau indiciário que justifica a última, que decorre dos autos de inquérito que foram sendo praticados” (sublinhado nosso).

Têm inteira razão os recorrentes quando afirmam que os factos e indiciação são os mesmos no arresto e na presente apreensão, com exclusão dos que se prendem com a B… e L….

Os recorrentes alegam que existe violação do caso julgado e desrespeito dos acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em particular do de 19 de Novembro de 2015, os quais determinaram o levantamento dos três anteriores arrestos decretados.

O Ministério Público invocando a dinâmica do inquérito e a nova realidade processual, decorrente dos novos indícios carreados para os autos após 10 de Abril de 2015, data do último arresto sobre os mesmos bens.

Não desconhecemos que os processos, particularmente na fase de inquérito, são realidades dinâmicas e que os indícios existentes nos mesmos se vão alterando com o decorrer do tempo e com a actividade de investigação levada a cabo pelo Ministério Público e pelos órgãos de polícia criminal.

Também não desconhecemos que uma verdadeira consolidação de indícios probatórios no decurso do processo, pode determinar a repetição dos vários instrumentos legais, tendo na base apenas essa mesma consolidação.

 Esta dinâmica processual não pode, contudo, conduzir-nos à defesa da tese de que o processo só estabiliza com a dedução da acusação e que até à mesma, pode o Ministério Público ir lançando mão, alternadamente, dos vários mecanismos processuais ao seu dispor, invocando para tanto, e apenas, a alteração de indícios existentes no processo.

Esta visão do processo transforma-o, ab initio, numa “ verdadeira zona de conflito”, com o esgrimir permanente sobre os indícios, sua interpretação e consequências jurídicas dos mesmos, como se o julgamento se fizesse no inquérito.

No caso em apreço, sabemos, por força das decisões proferidas por este Tribunal de Relação que revogaram os arrestos decretados, que ao momento do seu decretamento não estavam preenchidos os seus pressupostos legais.

Apesar disso, o Ministério Público após a decisão que ordenou o levantamento do último dos arrestos, veio, cerca de um mês depois, ordenar a apreensão dos mesmos bens, alegando serem os pressupostos do arresto e da apreensão do artigo 178º do Código de Processo Penal, totalmente diferentes e existirem novos indícios nos autos que justificam tal medida.

2.2 Vejamos em primeiro lugar os pressupostos da apreensão, por contraponto ao arresto.

Parece incontroverso e uma evidência para todos, incluindo para os recorrentes e recorrido, que os pressupostos e âmbito de aplicação das medidas são diferentes.

O arresto insere-se no âmbito das garantias patrimoniais que visam a integralidade do património, de modo a, se necessário, poder ser chamado a cobrir as consequências decorrentes da prática do crime, podendo incidir sobre o património lícito do arguido e mesmo, em certas condições, de terceiros.

Por sua vez a apreensão é um meio de obtenção de prova mas, “ (…) não é apenas um meio de obtenção e conservação de provas, mas também de segurança de bens para garantir a execução, embora na grande maioria dos casos esses objectos sirvam também como meios de prova. Importa, porém, distinguir a apreensão de objectos do arresto preventivo. O arresto preventivo, previsto no art. 228º, bem como a caução económica, prevista no art. 227º, destinam-se a garantir o pagamento da pena pecuniária, da taxa de justiça, das custas do processo ou de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime e ainda o pagamento de indemnização ou outras obrigações civis derivadas do crime; a apreensão destina-se essencialmente a conservar provas reais e bem assim de objectos que em razão do crime com que estão relacionados podem ser declarados perdidos a favor do Estado. A apreensão pode, porém, ser convertida em arresto preventivo (art. 186º, nº 3)”.[3]

Como se pode ver desta longa transcrição, dúvidas não existem sobre a natureza híbrida da apreensão e os diferentes pressupostos de ambas as medidas cautelares.

Se estas medidas cautelares têm pressupostos e âmbitos de aplicação diferentes, ambas exigem, para além de pressupostos específicos em relação ao arresto, a verificação de indícios da prática do crime que determina a sua aplicação.

É, aliás, na tese do Ministério Público, a existência de novos indícios que determina a apreensão e, nessa medida, justifica a inexistência de qualquer violação do decidido por este Tribunal de Relação, no último recurso sobre o último arresto.

2.3 Vejamos pois, antes de analisar as demais questões suscitadas pelos recorrentes, se tal se mostrar necessário, a que indícios se está a referir o Ministério Público e o que este Tribunal, anteriormente, tinha considerado sobre os mesmos.

Escreveu-se no último acórdão deste Tribunal sobre os indícios existentes, no momento em que foi decretado o arresto: (transcrição) “ (…) De facto, não bastam os meros indícios, não podendo ser equivalentes a suspeitas fundadas, que apenas justificam a constituição como arguido (artº 58º, nº 1, a), CPP). (…) Na verdade, no que tange aos factos, o que temos é uma imputação pouco objectiva e rigorosa, onde subsistem enormes dúvidas, a saber: o despacho não considera nem foi alegado um único facto que permita imputar, ainda que sob a forma indiciária, aos recorrentes qualquer forma de responsabilidade dolosa pela prática dum crime de branqueamento; não se descortina sequer qual seja, em concreto, o crime base que se pretende atribuir aos arrestados, com particular enfoque no recorrente A.... (…) Em abono da boa justiça e da verdade material dos factos, não temos como fugir e ou fingir, de facto, o despacho posto em crise, na esteira do requerimento do MºPº, estrutura-se, como se pode observar da sua atenta leitura, por fórmulas sem rigor jurídico, tais como, (“se coloque a hipótese”, “desvios de dinheiros”, “desfalque”, “disposição de património a seu bel-prazer”, crime “porventura” de burla qualificada).

Destas forma fica difícil preencher e ou satisfazer os requisitos dos tipos criminais em causa.

Acresce que os factos alegados pelo MºPº, validados pelo despacho recorrido, estão longe, como afirmam e bem os recorrentes, de sustentarem o enquadramento no abuso de confiança qualificado, na “porventura” burla qualificada e/ou no branqueamento.

Com efeito, no campo da descrição de requisitos concretos destes tipos criminais falar em “hipótese” de “desvios de dinheiros”, “desfalque”, “disposição de património a seu bel-prazer” e não dizer nada é rigorosamente a mesma coisa. (…) Somando tudo isto, de facto, percebe-se mal qual o elo de articulação entre os factos descritos nas alíneas A) a G) do douto despacho (fls 7 a 10) com qualquer hipotético crime cometido contra o BES ou o BESA ou contra seja quem for?
                Fica-nos a ideia que a ligação é inexistente, como é evidente e se mostra pela simples leitura daquelas alíneas, onde estão descritos valores provenientes, segundo o próprio despacho, do Banco BCP Cayman (al. A)), da conta da G..., Lda, nas Ilhas Virgens Britânicas (al. B)), da conta da G..., Lda no Crédit Suisse (al. C)), do ING Belgium (al. D))[4] e do ES Bankers Dubai. (A verba descrita da al. G) reporta-se ao NUIPC 77/10, foi decidido, por acórdão do TRL, que não existiam indícios da prática de crimes pelo aqui Arrestado A... e, por isso, foi ordenado o levantamento duma caução carcerária que lhe tinha sido imposta)..

Valores, que nos termos do próprio despacho, se comprovou não terem origem no BES/BESA.

(…)

Invoca o despacho recorrido que os “valores transitados” em contas bancárias do Recorrente A... (fls 35) e os valores que “se suspeita integrarem a [sua] esfera patrimonial” (fls 38) rondarão os 80 milhões de euros.

Trata-se de uma afirmação que sem mais levar-nos-ia ao limite de pensar que é crime só por si quem tem dinheiro.

Que significado tem dizer-se isto sem demonstrar a proveniência ilícita desse dinheiro.

Nenhum, pode ter esse ou mais!

Nada nos diz pela simples “suspeita”, sobre a prática de crimes de abuso de confiança, burla ou qualquer outro?

Nada, como é evidente.

Esse vazio não fica preenchido, com a alusão, sem mais, aos “rendimentos do cargo” que o Recorrente A... desempenhou no BESA. Nem fica preenchido com a conclusão que o despacho extrai do suposto esboço e da acta duma reunião da Assembleia Geral do BESA: a pretensa “demonstração de um conjunto de irregularidades relacionadas com a concessão de crédito em moldes que se admitem fraudulentos (fls 41), irregularidades essas postuladas (a fls 39) como a “provável origem dos fundos” em discussão neste processo.

Em nenhum momento o despacho recorrido, explicita, mediante a indispensável concretização factual, em que consistem tais irregularidades na concessão de crédito.

Deixa de fora esta explicação fundamental logo deixa de fora os termos que permitam a sua ligação aos requisitos típicos daqueles ou de outros crimes.

Esta narração era decisiva para se concluir, em concreto, que se trata de irregularidades criminais.

O que não se verificou!

(….)

Na verdade não resulta dos quais os factos e razões que sustentam essa suposta demonstração. E não expõe esses factos e razões, note-se, porque estava impedido de o fazer, considerando que o requerente do arresto não os alegou nem expôs.

                O despacho em crise apresenta-se vazio de factos.

Em conclusão, não se encontram descritos factos que consubstanciem a natureza criminosa das supostas e não descritas irregularidades atribuídas ao recorrente A....

Sem estes elementos toda a argumentação do MºPº cai por terra, encontrando-se impedido de, não havendo sequer fumo de um crime precedente, não poder falar-se de branqueamento nem dar-se por verificado um dos pressupostos cruciais do arresto.

O que fica dito não sai contrariado pelos considerandos que o despacho expende a propósito das “condições em que foi movimentada uma conta Jumbo do BESA no BES (em USD e Euros)” e de onde a decisão parte para constatar “transferências feitas no interesse exclusivo de A..., seus familiares e entidades sujeitas aos seus interesses patrimoniais em moldes que admitem a forte suspeita de desfalque, ocorrido a partir de Portugal, numa aparente disposição de património do Banco a seu bel-prazer” (fls 42).

Vejamos alguns factos, aduzidos a propósito pelos arrestados, que podem levar a compreender a natureza e os moldes de movimentação desta “conta Jumbo”, e que não foram considerados na decisão impugnada.

Os bancos angolanos (todos os bancos, incluindo o BESA) têm contas de depósito em dois tipos de moeda: kuanzas e moeda estrangeira. Sempre que recebia moeda estrangeira em Angola, o BESA aplicava-a e creditava-a na “conta Jumbo”.

Após, e sem nenhuma conexão direta com esse aprovisionamento da “conta Jumbo”, todos os movimentos internos e internacionais efetuados pelo BESA em moeda estrangeira eram processados através dessa conta de que o banco angolano era titular no seu correspondente em Portugal – o BES.

Fosse qual for a origem e natureza desses movimentos em moeda estrangeira, passavam obrigatoriamente pela “conta Jumbo”, que era debitada dos valores correspondentes, após o crédito respetivo da conta movimentada no BESA.

E tais movimentos eram, sempre foram e não podiam deixar de ser, contabilizados no BESA e na “conta Jumbo”.

Todos os movimentos processados através da “conta Jumbo” (incluindo transferências de qualquer natureza) tinham suporte numa mensagem “swift”, utilizada no comércio bancário por razões de eficiência, autenticação e segurança.

Essas mensagens contêm toda a informação necessária, além do mais, para identificar a origem e o destino do movimento, o tipo de operação que a origina e o nome de todos os intervenientes.

A partir dessa mensagem, o banco correspondente (no caso, o BES) tem o poder – e só ele tem o poder – de consumar ou não o movimento pretendido, podendo e devendo recusá-lo se o mesmo suscitar dúvidas ou reparos.

Estas noções básicas permitem concluir que: - nenhum dos Arrestados (máxima, o Recorrente A...) tem qualquer espécie de poder sobre a “conta Jumbo”; em especial, não a movimenta nem pode movimentar;  só o banco correspondente (o BES) tem poderes para movimentar essa conta e para aceitar ou recusar toda e qualquer operação relacionada com ela; - o BES dispunha de toda a informação relevante para avaliar os movimentos que efectuava, em especial a identidade dos intervenientes e a natureza e origem das operações; - não existe nenhuma relação directa entre o aprovisionamento e o débito dessa conta.

De onde decorre o absoluto infundado da suspeita (fls 42) do douto despacho sobre a possibilidade de, a partir dessa conta (sobre a qual, repete-se, o Recorrente Àlvaro Sobrinho não detinha nenhuma espécie de poder ou controlo), se ter operado “[um] desfalque, ocorrido a partir de Portugal, numa aparente disposição de património do Banco a bel-prazer” do Arrestado.

Tal suspeita, mesmo aparente não tem réstia de justificação.

De onde decorre, por outro lado, que não faz qualquer sentido a afirmação de que “a conta Jumbo do BESA não evidencia que os valores a débito alguma vez tenham sido pagos pelas beneficiárias das transferências em causa” (fls 44).

Claro que não evidência, porque não o podia evidenciar, uma vez que não existe, como ficou salientado, nenhuma relação directa entre as operações a débito e a crédito processadas nessa conta.

Para se apurar se as transferências em causa foram ou não “pagas” terá de verificar-se as mensagens swift respectivas, conferir a identidade, natureza e origem dos movimentos no BESA e, aí, conferir se existe algum valor em débito.

Nada disso foi efectuado e, sobretudo, de nada disso dá nota, em projecção factual, o douto despacho recorrido, o que transforma em pura especulação as considerações que nele se expendem sobre a “conta Jumbo”, ainda que sob a forma descontraída de suspeitas e aparências.

Até por tudo isto, o comentário exarado no último parágrafo de fls 15 de douto despacho só pode levar-se à conta de uma boutade sem densidade jurídica.

Uma vez que nada se sabe – porque, não tendo investigado as mensagens Swift, o ministério público nada quis saber – sobre a origem dos movimentos da “conta Jumbo”, não pode qualificar-se de outro modo, senão como dito jocoso, o que consta daquele parágrafo: “não é credível que uma instituição bancária (o BESA) conceda créditos a um dos seus administradores para este os ver remunerados com juros cobrados junto de empresas das quais é titular [...]”.”

Na verdade face ao exposto, tudo leva a enfraquecer, de forma definitiva, a imputação dos crimes precedentes bem como o crime de branqueamento enquanto referências do direito a acautelar mediante arresto.

O mesmo se passando com a inexistência de factos que sustentem o crime de branqueamento. (fim de transcrição).

Como se pode constatar desta longa transcrição este Tribunal de Relação já tinha considerado, por referência a Abril de 2015, inexistirem indícios fortes da prática dos crimes imputados ao arguido A....

Após Abril de 2015, como o Ministério Público reconhece na resposta ao recurso, foram carreados para o processo mais, os seguintes elementos probatórios:
a) Interrogatório do arguido A... ocorrido a 19 de Outubro de 2015 e cujo depoimento está junto, por cd, aos autos de recurso;
b) Resposta à Carta rogatória expedida às autoridades luxemburguesas;
c) Depoimento de R…;
d) Depoimento de J…;
e) Correspondência trocada a propósito da Assembleia Geral do BESA ocorrida em 3 e 21 de outubro de 2013.

Vejamos então cada um destes novos elementos probatórios, salientando que o Ministério Público, apesar dos mesmos, manteve a indiciação do arguido A... pelos mesmos crimes anteriormente imputados, tal como consta do despacho que ordenou a apreensão, a saber, “ (…) Abuso de confiança qualificado e Burla qualificada, p. e p., respetivamente, nos termos do disposto nos arts. 205/1 e idem 4, al. b, com referência ao disposto no artº 202º, al. b) e do crime de Branqueamento, p. e p. nos termos do disposto no artº 368º A, todos do Código Penal.”   
a) Da audição do depoimento do arguido A..., não é possível retirar qualquer novo indício, já que o mesmo nega os crimes.
b) Da carta rogatória respondida pelas autoridades Luxemburguesas e junta a fls. 971 a 1100, destes autos de recurso, resulta que a WP… tem como único acionista o arguido A... e foi fundada em 28/10/2011, com um capital inicial de 31.000,00 euros, bem como a descrição dos movimentos a débito e crédito nessa sociedade e respectivos balanços;
c) Do longo depoimento da testemunha R…, junto a fls. 3523 a 3564, do processo e prestado no Proc. 324/14.0TELSB, resulta, sobre os factos imputados ao arguido A..., excluindo aqueles que se prendem com o funcionamento do BESA e BES ou que se referem a documentos que não estão juntos a estes autos de recurso, por súmula, o seguinte:

- Entre 2007 a 2009 foi administrador não executivo do BESA e assumiu funções de presidente do CE do BESA em Janeiro de 2013;

- Constatou que o BESA era perfeitamente autónomo em termos informáticos e que para efeitos de consolidação das contas do BESA no BES, embora existisse um conjunto de limitações quanto à extensão, profundidade e qualidade da informação enviada, por causa do sigilo bancário e não obstante as regras de consolidação a que estava sujeito o BES;

- Refere que, nos termos da legislação angolana, os elementos que vinham para a casa-mãe eram remetidos de forma agregada, em termos de clientes ou de risco, pelo que os nomes dos clientes não eram facultados;

- O presidente do BESACTIF era A...;

- No início de 2012 a dívida do BESA deveria rondar os 3,3 mil milhões de USD, valo que inclui juros entretanto não pagos e em finais de 2012, um valor de 3,6 mil milhões de USD;

- No BES, em Lisboa, apenas existia a percepção do crescimento gradual do endividamento do BESA face ao BES e o conhecimento dos aglomerados das aplicações do BESA em Angola. Era conhecida a quantidade, mas não a qualidade dessas aplicações;

- O grau de desagregação desta informação é que não permitiu aferir o destino destas operações. Aliás, quanto aos destinatários de concessão de crédito, deparou-se com este problema quando foi presidente da CE do BESA uma vez que as dificuldades de tratamento de tais dados tiveram como justificação um regime legal de protecção de dados em Angola;

- A saída de A... neste dia tem que ver com um conjunto de factores, e os relatórios da KPMG não era muito positivo em relação às contas quer de 2011 quer de 2012;

- A... não prestou informações relacionadas com o crédito e houve esforços para que a informação fosse prestada pela administração cessante, designadamente por A..., ao novo PCA, Paulo Kassoma, o que não aconteceu;

- Da análise que fez concluiu pela existência de falhas de informação quanto aos clientes mutuários e na formalização documental dos créditos. Alguns nunca chegaram a ser conhecidos. Muitas contas estavam abertas em nome de um procurador, nunca tendo sido conhecido por si o verdadeiro beneficiário;

- As dívidas em causa foram incluídas na garantia bancária prestada pelo Estado Angolano, incluindo os créditos a A... e seus familiares;

- Assume que o documento retrate a acta original que terá sido redigida por João Gomes da Silva, enquanto presidente da mesa da AG, e sobre o que se passou em tal reunião, e antes de dele terem sido suprimidas menções aos devedores do BESA, por determinação de serviços jurídicos;

- À data em que saiu de Angola as dívidas contraídas por A... e pelos seus familiares, que seja do seu conhecimento não foram pagas, nem foi feito qualquer acordo de reestruturação das mesmas;

- Em 2013 um familiar de A... beneficiou de um crédito em conta na sequência da realização de um negócio imobiliário;

- Os casos mais problemáticos ocorreram entre finais de 2010 e 2012, período em que se destaca do aumento de valor de transferências para terceiros, desamparado de garantias ou o conhecimento dos beneficiários efectivos de tais transferências. Até 2010 não existe evidência de que existisse incumprimento de créditos concedidos a terceiros;

- Não pode concluir se se trata de créditos ou de empréstimos ou de desvios de dinheiro;

- Com reflexo do que se encontra descrito nos documentos, a propósito da Assembleia Geral do BESA, em Outubro de 2013, a sua tarefa essencial foi a de perceber quem eram os destinatários dos créditos em causa, para lhes exigir ou a prestação de garantias face a incumprimento ou o respectivo pagamento, tarefa que não foi possível;

- Não tem conhecimento dos factos que justificam movimentos a débito em benefício de A...;

- Não sabe se as transferências constantes de cerca de 70.000 no início de todos os meses se tratam de remunerações de A...;

- Após invocar o segredo bancário ao abrigo da lei angolana, afirmou que sobre a expressão constante da acta da Assembleia Geral do BESA de Outubro de 2013 “ a existência de valores que beneficiaram directamente AS e seus familiares, bem como a G...”, se referia a saídas de dinheiro, através de ordens de transferência lançadas sobre as contas que foram alimentadas pelo BESA e que beneficiaram um conjunto de entidades em torno dos negócios das torres da ESCOM, e não através de contratos de mútuo em que figurem como mutuários A..., os seus familiares ou a G.... Essas entidades terão beneficiado, no total, de uma quantia de 1.624 milhões de USD;

- Os movimentos que envolvem as contas bancárias de A... e seus familiares correspondem a saídas de dinheiro para o exterior e que as mesmas não assentaram em crédito concedido pelo BESA, mas em ordens de transferência dadas pelas entidades a que se vem fazendo referencia e que estão mencionadas na cata da reunião de 03-10-2013;

- A garantia soberana dada pelo Estado Angolano continha um documento anexo no qual se encontravam os créditos mencionados na acta de 03-10-2013.
d) Do depoimento da testemunha J…, junto a fls. 3870 a 3884, do processo e prestado no Proc. 324/14.0TELSB resulta, sobre os factos imputados ao arguido A..., por súmula, o seguinte:

- A Assembleia Geral extraordinária do BESA foi por si convocada, na sequência de um pedido assinado por P…, Presidente do Conselho de Administração do BESA, com intuito de serem discutidos “assuntos de interesse geral”, visando a transmissão de informações por A... à nova administração tal como lhe referiu R...;

- Antes da Assembleia Geral houve uma reunião em que R... deu a conhecer aos presentes o teor do documento que ia apresentar na Assembleia relacionado com problemas de incumprimento associados a crédito concedido, perda do rasto do dinheiro, com desconhecimento dos beneficiários;

- Foi ele quem fez um pedido de parecer à Abreu advogados para o modo como a acta da reunião figuraria (com a truncagem de nomes de determinadas pessoas);

- As necessidades de sigilo seriam impostas pelas autoridades Angolanas, para que os bancos portugueses em Angola limitassem a transmissão de informação para Portugal;

- Entendeu que deveria dar seguimento aos argumentos jurídicos avançados para que, por causa do regime de segredo bancário angolano, fossem omitidos os nomes mencionados na reunião da AG do BESA das actas da mesma;

- Manuscreveu um documento com o conteúdo da reunião para auxílio da redacção da acta;

- A acta foi revista nos seus termos pelos accionistas BES, G…, P… e A...;

- Com base no original da acta, foi feita uma versão truncada, para efeitos de auditoria ao BES e de uma due diligence ao banco, a propósito do aumento de capital;

- R... entregou aos presentes uma apresentação extensa que continha muitas referências a fluxos de beneficiários que envolviam as cinco sociedades inicialmente mencionadas na acta de 3.10.2013, na versão não truncada. Documentação que evidenciava a existência de movimentos em numerário, com talões de transferência e de levantamento;

- Na documentação anexa à comunicação de R... existiam cópias de talões de levantamento em numerário de valor elevado que coincidiam temporalmente com entradas de fluxos de dinheiro equivalentes em contas em benefício pessoal de A...;

- Na reunião de 3.10.2013, A... referiu aos presentes que os elementos relativos a estas operações deveriam estar no banco, e que se não estivessem estaria pronto para ajudar;

- Na Assembleia A... apresentou um conjunto de nomes que mencionava serem os UBO, ou beneficiários efectivos das sociedades em causa (as cinco grandes beneficiárias de créditos no valor de 1.6 mil milhões de USD) e que os presentes afirmaram que não podiam ser os beneficiários pela falta de relevância material que justificasse esses volumes de financiamento;

- Muitas sociedades em Angola tem um conjunto de accionistas que na maior parte não passam de accionistas formais, e que quem as domina o faz por via de procuração;

- Na reunião de 21.10.2013 A... continuou a invocar que não estava preparado para explicar as conclusões que lhe eram exibidas por desconhecer previamente o seu teor- concretamente as questões relacionadas com o desconhecimento das identidade dos beneficiários económicos das cinco sociedades envolvidas nos negócios ESCOM e perante a recusa dos demais em aceitarem os nomes que eram por si indicados;

- O General L… afirmou que como acionista do BESA exigia que A... desse uma explicação de como era possível esse facto, interpelação que foi interrompida por R… que afirmou que A... seguramente iria informar-se e recolher elementos para depois poder esclarecer as dúvidas, e que o BES cobriria qualquer solução que fosse apresentada para os problemas mencionados;

- Saiu destas assembleias o compromisso de A... de reunir os elementos necessários para fazer uma proposta que, com conhecimento dos accionistas angolanos, seria coberta pelo BES, por forma a obter uma solução de regularização da situação do BESA;

- O A... sugeriu diversas alterações na acta que não foram aceites pelos demais accionistas;
e)    Correspondência trocada a propósito da Assembleia Geral do BESA ocorrida em 3 e 21 de outubro de 2013.

- Aos autos de recurso estão juntos vários e-mails trocados entre A..., G… e R… sobre as modificações a introduzir na acta da Assembleia Geral, sendo de salientar o e-mail de 3 Novembro de 2013, entre J… e R… e M…, o qual defende a não pormenorização na acta de assuntos de gestão do banco nem a inclusão de nomes de clientes por razões de sigilo bancário;

- Carta de A... para R... e P… de 21 de Novembro de 2013 (fls. 3400 a 3405) o qual explica alguns dos créditos concedidos pelo BESA e resposta daqueles (fls. 3407 a 3411), datada de 25 de Novembro de 2013, a solicitar resposta aos compromissos assumidos pelo mesmo na Assembleia Geral de 21 de Outubro, para resolver a situação da carteira de crédito, ou, pelo menos, para restituir ao BESA os montantes de que tenha sido beneficiário;

São estes novos elementos que permitem ao Ministério Público, afirmar que existem novos indícios posteriores ao último arresto, sobre os quais o acórdão deste Tribunal de Relação não se pronunciou.

Com o devido respeito, estes novos elementos em nada abalam o que resulta do acórdão deste Tribunal de Relação, anteriormente transcrito.

Na verdade, dos novos elementos probatórios, merece especial destaque o depoimento de R..., o qual, para além de ter substituído o arguido A... na administração do BESA, procedeu ao levantamento da situação do banco em Setembro de 2013 e apresentou os resultados pormenorizados na Assembleia Geral de 3 e 21 de Outubro de 2013. Ora, esta testemunha, dotada da referida razão de ciência, perguntada se “pode concluir que se tratam de créditos ou empréstimos e não de desvios de dinheiro. Responde que não pode concluir num sentido ou no outro”. 

Não conseguindo esta testemunha esclarecer, este ponto específico e crucial, de toda a movimentação bancária existente nos autos, para as contas do arguido A..., seus familiares e sociedades controladas por si ou familiares, enquanto administrador do BESA, não se pode concluir que a mesma reforça os indícios existentes nos autos.

Para se poder concluir pela existência de indícios da prática dos crimes base, de burla qualificada ou abuso de confiança qualificado, é necessário esclarecer o que esteve na base dos referidos movimentos e transacções bancárias demonstradas nos autos. Está demonstrado nos autos que os movimentos e transacções existiram, desconhecendo-se, até ao presente, a que título, foram realizados. Empréstimos? Pagamentos de serviços? Dinheiro próprio? Desvio fraudulento de dinheiros do BESA?

Supõe ou suspeita o Ministério Público que se trata de desvio de dinheiros próprios do BESA.

Ora, dos autos, como muito bem se referiu no acórdão transcrito, supor ou presumir não basta. As presunções têm que assentar em factos conhecidos e demonstrados por outra prova, sob pena de estarmos em presença de presunção da presunção.

A questão dos termos da acta e das alterações pretendidas pelo arguido A..., são para este efeito irrelevantes, já que as testemunhas R... e J… defenderam, igualmente, que determinados elementos não deviam constar da acta por razões de sigilo, tal como foram aconselhados pelos serviços jurídicos. A truncagem da acta da Assembleia Geral do BESA, não resulta de uma tentativa do arguido A... de esconder as suas eventuais responsabilidades, mas, antes, de uma estratégia do próprio BESA, relacionadas com a sua actividade e as exigências das autoridades angolanas. Desta questão não é possível extrair qualquer indício relevante.

Em resumo, dos novos elementos carreados para os autos, não se pode concluir que os mesmos infirmam e abalam, a apreciação que tinha sido feita no anterior acórdão deste Tribunal de Relação de 19 de Novembro de 2015, com o qual se concorda no que respeita à apreciação dos indícios da existência dos crimes imputados aos arguidos.

2.4 Chegados aqui e mantendo-se a insuficiência de indícios, tal como já ficou demonstrado, poder-se-á argumentar que a apreensão, nos seus pressupostos, prescinde dos indícios da prática do crime.

Esta argumentação poderá fazer sentido, desde que estejamos no puro domínio da obtenção de meios de prova, mas já não tem sustentação legal, quando a apreensão aparece numa fase avançada do processo para, de forma indirecta, produzir os mesmos efeitos do arresto.

A natureza da apreensão, enquanto meio de obtenção de prova, para além de pressupor a existência de um crime, visa, numa primeira linha, a “guarda dos vestígios da prática do crime detectados[5] e a preservação da prova. É neste contexto e com base nestes pressupostos, que se conferem poderes especiais aos órgãos de polícia criminal para proceder a apreensões cautelares (artigo 249º do Código de Processo Penal), com posterior validação pelo Ministério Público.

Nesta lógica legal de preservação e obtenção de prova, se o Ministério Público entendia que a apreensão se justificava para efeitos probatórios e cautelares, deveria ter ordenado a apreensão no início do processo e não quando os arrestos foram julgados improcedentes. Ao fazê-lo nesta fase, a apreensão aparece já não numa perspectiva de obtenção de prova mas, antes, como um “arresto travestido”, que este Tribunal de Relação já inviabilizou pela terceira vez.

 Argumentará o Ministério Público que é detentor da acção penal e senhor da fase de inquérito e, por isso, usa os mecanismos processuais quando lhe aprouver e achar processualmente oportuno.

É verdade, desde que os mesmos se adequem aos seus pressupostos legais, o que, manifestamente, não é o caso.

Na verdade, como defendem os recorrentes, a apreensão do artigo 178º do Código de Processo Penal, totalmente fora do contexto de meio de obtenção de prova e exclusivamente focada na “garantia processual penal do confisco”, não está abrangida pela previsão normativa.

O douto acórdão do Tribunal Constitucional (294/2008) citado no despacho de apreensão, nada diz em contrário do que acabámos de afirmar. Todo o acórdão, tal como a doutrina citada, partem do pressuposto de a apreensão funcionar “simultaneamente” “como meio de prova e como medida cautelar destinada a assegurar o cumprimento de certos efeitos de direito substantivo que estão associados à prática do ilícito penal, como seja a perda desses valores a favor do Estado”. Nada nos diz quanto a ela funcionar, apenas e exclusivamente, como garantia processual de eventual declaração de perda.

Ora, esta exclusividade de “garantia processual penal de confisco”, é assumida pelo Ministério Público no seu despacho de apreensão, o qual, após invocar analogicamente o artigo 195º, nº 3 do Código de Processo Civil, considera que “ a invalidade do arresto não impede o «sequestro» dos bens seja mantido como apreensão” (fls. 4438).

O uso da palavra «sequestro» é sintomático de que na base do despacho de apreensão, não está qualquer preocupação com a obtenção de prova, mas, tão só e apenas, a colocação dos bens fora da disponibilidade dos recorrentes, isto é, os exactos efeitos do arresto (artigo 391º do Código de Processo Civil).

Nesta interpretação, transforma-se a apreensão num novo arresto.

Ora, o novo arresto não é permitido, tal como o próprio Ministério Público reconhece na sua resposta ao recurso e ficou bem claro no último acórdão deste tribunal.

Neste contexto, não pode deixar de proceder a argumentação dos recorrentes e, nessa medida, ser revogado o singelo e perfunctório despacho recorrido e ordenado o levantamento da apreensão.

Em função do ora decidido, fica prejudicada a questão de inconstitucionalidade suscitada pelos recorrentes.

Em resumo, concede-se provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido e determinando-se o levantamento da apreensão.

III         Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida e, consequentemente, ordenar o levantamento da apreensão efectuada com todas as consequências legais.

Sem custas por não serem devidas.

Notifique nos termos legais.

(o presente acórdão, integrado por vinte e quatro páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal)

Lisboa, 07 de Julho de 2016.

Antero Luís

João Abrunhosa

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[1]   Neste sentido e por todo, ac. do STJ de 20/09/2006 Proferido no Proc. Nº O6P2267.
[2]   Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995
[3] Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal Vol. II, pág. 289.
[5] Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, pág. 504.