Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4742/17.3T8OER.L1-A-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
ILEGITIMIDADE PASSIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Cabe ao diretor do jornal e respetivos coadjuvantes na direção, e não ao proprietário do jornal, a legitimidade processual passiva em procedimento cautelar visando que o jornal seja proibido de citar ou usar como fonte de notícia ou artigo determinadas mensagens de correio eletrónico obtidas por meio de intrusão informática (hacking).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 02.11.2017 P Advogados, SP, RL, intentou, nos termos previstos no art.º 362.º e seguintes do CPC, providência cautelar comum contra I, S.A. e Tom B.
A requerente alegou, em síntese, ser uma sociedade de advogados e a requerida é proprietária/editora do jornal semanário E. O requerido é jornalista freelancer e colaborador do E. Na edição de 26 de agosto de 2017, seja em papel, seja na edição on-line, foi publicado um artigo, que a requerente transcreve parcialmente, no qual são reproduzidas mensagens de e-mail ocorridas entre advogados do escritório da requerente ou a ele ligados, assim como com terceiros, seus constituintes. O acesso a esses e-mails resultou de uma devassa ilegal e não autorizada (vulgo hacking) aos servidores informáticos da requerente. A requerente prepara uma ação judicial visando o reconhecimento da ilegalidade da referida prática jornalística e o ressarcimento dos danos morais e patrimoniais por ela provocados. Porém, na sequência de um contacto por parte do requerido, que a requerente descreve, teve esta conhecimento de que na próxima edição do Expresso será publicado novo artigo que terá como fonte o acesso não autorizado e ilegal à correspondência eletrónica da requerente. Tal põe em causa o bom nome e a credibilidade da requerente, por esta aparentemente na sua atividade não preservar a confidencialidade que se lhe exige.
A requerente terminou pedindo que, julgada procedente a providência cautelar, os requeridos fossem citados para, sob pena de incorrerem no crime de desobediência qualificada, previsto no artigo 375° do Código de Processo Civil:
i. Se absterem de usar como fonte de qualquer artigo ou publicação de cariz jornalístico, ou outro, os emails trocados entre Advogados da Requerente (incluindo Advogados do Gabinete Legal Angola) e entre estes e terceiros seus constituintes, sobre os temas "Urbinveste/Van Oord/Marginal de Corimbra e outros com estes conexos", e que foram objecto de hacking;
ii. Se absterem de utilizar /citar em qualquer artigo ou publicação de cariz jornalístico, ou outro, os emails trocados entre Advogados da Requerente (incluindo Advogados do Gabinete Legal Angola) e entre estes e terceiros seus constituintes, sobre os temas "Urbinveste /Van Oord / Marginal de Corimbra e outros com estes conexos", e que foram objecto de hacking.
A requerida contestou, por exceção e por impugnação. Por exceção, arguiu a sua ilegitimidade passiva, na medida em que, na qualidade de proprietária do jornal E, não lhe cabe nem pode interferir nas escolhas editoriais do mesmo. Por impugnação, afirmou desconhecer a ocorrência de qualquer ilegalidade, nomeadamente “hacking”, na obtenção dos elementos que deram origem ao aludido artigo.
A requerida concluiu pedindo para ser absolvida da instância, por ser parte ilegítima; se assim se não entendesse, deveria a providência ser julgada improcedente, por não provada.
A requerente respondeu à exceção de ilegitimidade arguida pela requerida, pugnando pela sua improcedência.
Procedeu-se a audiência final e em 30.01.2018 foi proferida sentença em se deferiu a providência cautelar requerida e, consequentemente, se condenou os requeridos nos termos que haviam sido peticionados.
A requerida apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
1) Deve ser decretada a anulação parcial da decisão da matéria de facto vertida na sentença recorrida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 662.°, n.° 2, alínea d) do CPC, porquanto o tribunal a quo omitiu por completo os fundamentos da decisão relativa ao julgamento do ponto 18. da matéria de facto dada como indiciariamente assente no procedimento;
2) Por meio das injunções proferidas nos autos, a sentença recorrida, ao fazer prevalecer o direito que apelida ser o de "sigilo da correspondência", sobre o direito de liberdade de expressão e de informação, ataca e reduz desnecessária e desproporcionadamente o núcleo essencial de tais direito comunicacionais, quer na sua vertente de independência editorial dos jornalistas face ao proprietário do órgão de comunicação social, quer na vertente de direito de acesso a fontes de informação, inexistindo comprovada nos autos qualquer circunstância passível de configurar legitimidade passiva da Recorrente, ou mesmo uma outra qualquer relação controvertida, face à causa de pedir e pedidos formulados nos autos pela Recorrida, o que viola, na interpretação e aplicação do direito propostas pela tribunal a quo na sentença, o disposto no artigo 38.° da Constituição da República Portuguesa, na sua vertente de direito dos jornalistas à liberdade redatorial, face à própria empresa jornalística detentora do periódico;
3) Ao contrário do entendimento subjacente à sentença recorrida, resulta do ordenamento constitucional português, face ao disposto no artigo 38.° da CRP, no que à informação diz respeito, um princípio de separação entre matéria de gestão empresarial, cuja direção compete aos órgãos próprios da entidade proprietária do órgão de comunicação social, e matéria editorial, a cargo do diretor e da redação;
4) A Lei de Imprensa (Lei n.° 2/99, de 13 de janeiro), de natureza
transversal, reconhece, sem margens para quaisquer dúvidas, a autonomia do Diretor da publicação e a correspondente impossibilidade (legal) de a Administração da Recorrente tomar quaisquer decisões de natureza editorial;

5) As injunções de comportamento inseridas nas providências decretadas nos presentes autos (abstenção de usar como fonte de qualquer artigo ou publicação de cariz jornalístico, ou outro, ou, ainda, utilizar ou citar os emails trocados entre advogados da Requerente (incluindo advogados do GLA) e entre estes e terceiros seus constituintes, sobre os temas "Urbinveste/Van Oord/Marginal de Corimba e outros com estes conexos), contendem e interessam direta, exclusiva e necessariamente aos titulares do poder de gestão editorial do semanário "E", que não a ora Recorrente, pois que a proibição de utilizar como fonte jornalística ou de publicação dos conteúdos informativos em referência nos autos, consubstancia sempre uma decisão de cariz estritamente editorial, independente do poder de gestão da empresa proprietária do órgão, sob pena de interferência ilegal nas competências da direção editorial do periódico;
6) A sentença ora recorrida deveria ter concluído que a demanda da empresa proprietária do semanário "E", para além de não ser legítima, de um ponto de vista legal e processual, tendo em conta a parte passiva no procedimento, também se não revela útil, em termos de normalidade, atenta não só a relação jurídica existente entre a empresa detentora do título e os jornalistas pertencentes ao seu quadro, mas também o facto de a decisão positiva do presente procedimento não poder comportar ou produzir quaisquer efeitos úteis face à matéria em discussão no procedimento e tendo em consideração a natureza da ora Recorrente e a separação entre os poderes de gestão, comerciais e editoriais;
7) O tribunal a quo deveria ter reconhecido a Recorrente como parte ilegítima no presente procedimento, devendo tal exceção dilatória ser agora conhecida e declarada na presente instância, assim se revogando a sentença, mais devendo a mesma ser substituída por outra que absolva a Recorrente da instância, com todas as consequências legais, sob pena de violação do disposto nos artigos 576.°. n.° 2, 577.°, alínea e) e 578.° do CPC;
8) A sentença recorrida procedeu a uma ponderação desproporcional e errónea dos direitos e dos interesses individuais e sociais em confronto no caso, porquanto não é menos certo que a utilização de meios ilícitos para recolher a informação e a sua posterior divulgação são realidades distintas, existindo várias razões para que a publicação de informações eventualmente recolhidas de forma ilícita goze de proteção constitucional, desde logo face à consagração legal do sigilo profissional dos jornalistas;
9) Tendo em consideração que dos autos não resulta adequadamente comprovada matéria fática que possa eventualmente suportar a responsabilidade da ora Recorrente pelo cometimento de qualquer ilícito - o que necessariamente deveria ter prejudicado, no caso, qualquer tipo de ponderação obrigatória dos direitos em confronto -, deveria assim a sentença recorrida ter concluído no sentido de que a publicação de conteúdos informativos recolhidos eventualmente de modo ilegal, deve ser protegida pelo Direito, a menos que se alegue e prove que o jornalista responsável participou, de alguma forma, e, pelo menos, como autor moral, na recolha ilegal das informações, ou que, ainda, se tinha, previamente à publicação, conhecimento da eventual ilegalidade cometida, mas apenas quando se esteja perante uma situação que tenha resultado na violação grave de um bem jurídico constitucionalmente protegido, em termos que justifiquem a derrogação do sigilo profissional do jornalista;
10) Não se mostram suficientemente indiciados nos autos os factos
necessários à eventual procedência do procedimento, em especial no que concerne ao fundado receio de lesão dos direitos da Recorrida, posto que tal alegada lesão nem sequer se mostra atual ou premente;

11) A decisão recorrida, ao interpretar e aplicar o direito de modo contrário ou desconforme às conclusões acima expendidas, violou, com o sentido e alcance que lhes conferiu, contrários aos supra defendidos pela Recorrente, as seguintes normas jurídicas: artigos 18.°, n.° 2, 34.°, n.° 1 e 38.° da CRP; artigos 17.° e 21.°, alínea a), da Lei n.° 2/99 de 13 de janeiro; artigo 12.°, n.° 2 da Lei n.° 1/99, de 13 de janeiro; artigos 30.°, 33.°, n.° 2, 576.°, n.° 2, 577.°, alínea e), 578.° e 607.°, n.° 4 do CPC.
A requerente contra-alegou, pugnando pela improcedência da apelação e consequente manutenção da sentença recorrida. Não formulou conclusões.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões que se suscitam neste recurso são as seguintes: deficiência na fundamentação da decisão de facto; ilegitimidade passiva da requerida; improcedência da providência.
Primeira questão (impugnação da matéria de facto)
O tribunal a quo deu como indiciariamente provada a seguinte
Matéria de facto
1. A Requerente é uma sociedade de advogados portuguesa, devidamente registada na Ordem dos Advogados sob o n.° 7/90.
2. A Requerida I , S.A. é proprietária do jornal semanário E.
3. O Requerido Tom B é jornalista freelancer e apresenta-se como editor da publicação online https://zitamar.com/ e como trabalhando com o semanário E.
4. O semanário E é uma publicação de referência na comunicação social portuguesa, sendo lido por dezenas de milhares de pessoas, quer na sua edição em papel, quer na sua edição online.
5. O semanário E, na sua edição em papel de 26 de Agosto de 2017, publicou o artigo cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 44 verso a 48 frente, que aqui se dá por integralmente reproduzido, com destacada chamada de la página, e que ocupa a totalidade das páginas 4 e 5 do seu caderno principal.
6. O mencionado artigo foi também inserido na edição digital assinada, cujo conteúdo reproduz integralmente a versão em papel do referido semanário.
7. O título da 1.a página é "Eduardo dos Santos deu 40% de obra pública de 4,5 mil milhões à filha. Primeira pedra da barragem de Caculo Cabaça foi lançada em agosto. Investigação de consórcio EIC revela como uma empresa-fantasma de Isabel dos Santos ficou com 40% do negócio".
8. O título das páginas interiores é "Um último presente de pai para filha" e, em tipo mais pequeno "Angola. Uma fuga de informação obtida pela "Der Spiegel"".
9. O artigo vem identificado como sendo o resultado de uma investigação.
10. No topo das páginas 4 e 5 está incluída, em destaque, uma tarja, com o título "Angola Investigação".
11. Num dos destaques do artigo, na página 4, pode ler-se que "Dezenas de emails trocados entre gestores, advogados e Isabel dos Santos expõem como a obra foi adjudicada".
12. Entre os advogados referidos nesse artigo encontram-se advogados que integram a Requerente, tais como a Dra. Inês e advogados do denominado Gabinete Legal Angola.
13. O referido artigo refere troca de correspondência entre a Dra. Inês, outros colegas do Gabinete Legal Angola e entre a Dra. Inês e terceiros, seus constituintes, no exercício da sua função de aconselhamento e patrocínio jurídicos, fazendo expressas referências e descrições quanto ao seu teor.
14. Em Agosto de 2016 a Polícia Judiciária alertou o director de informática da Requerente da suspeita de ter ocorrido intrusão na caixa de correio de quatro advogados da Requerente, entre os quais a Dra. Inês.
15. No seguimento das diligências de averiguação verificou-se ter ocorrido, em 5 de Abril de 2016, acesso não autorizado (hacking) à caixa de correio da Dra. Inês, que permitiu o acesso a todas as comunicações e documentos que se encontravam nessa caixa de correio.
16. Entre as comunicações referidas em 15. encontravam-se os emails referidos e transcritos no artigo mencionado em 5. a 11.
17. Os servidores de sociedades relacionadas com Isabel dos Santos, cliente da Requerente, também foram objecto de ataque informático de hacking.
18. Os emails referidos no artigo mencionado em 5. a 11. foram obtidos através do referido em 15. e 17.
19. No dia 1 de Novembro de 2017, pelas 20:08:36 (hora portuguesa), o Requerido Tom B remeteu à Dra. Inês o email cuja tradução se encontra junta aos autos a fls. 83, com o assunto "investigação jornalística sobre Urbinveste / Van Oord / Marginal de Corimbra".
20. Nos termos do referido email o Requerido Tom B comunicou à Dra. Inês:
"(...) Sou um jornalista a trabalhar com a African Network of Centers for Investigative Reporting (ANCIR) e com o Expresso de Portugal, enquanto membro da European Investigative Collaborations (EIC). Encontro-me de momento a preparar um artigo para publicação este fim de semana relativo ao projecto de reabilitação da Marginal de Corimba, ganho pelo um consórcio da Urbinveste e Van Oord.
Tenho as seguintes questões para lhe colocar, com um prazo de resposta até às 16h00 GMT de amanhã, 2 de novembro de 2017.
Sugeriu à Urbinveste que poderiam colocar os seus lucros offshore?
Aconselhou Isabel dos Santos —tal como no caso da barragem de Caculo Cabaça — de que se tivessem o financiamento necessário poderiam evitar a exigência de Angola para um contrato público. (...)"
21. Na caixa de correio da Dra. Inês, objecto do acesso referido em 15., existiam comunicações relacionadas com o assunto referido no email mencionado em 20., a cujos conteúdos, atentas as questões colocadas pelo Requerido Tom B, no referido email, este terá tido acesso.
22. A Requerente e a Dra. Inês não autorizaram o acesso, utilização ou divulgação dos emails referidos no artigo mencionado em 5. a 11, nem permitiram o acesso do Requerido Tom B a emails trocados entre os advogados da Requerente, incluindo os advogados do Gabinete Legal Angola, e entre estes e os seus constituintes relacionados quer com o tema do artigo referido em 5. a 11., quer com o assunto referido no email mencionado em 19. e 20.
23. Os clientes e os advogados que se correspondem com os advogados associados ou sócios da Requerente esperam o respeito pela confidencialidade daquilo que lhes comunicam.
24. A publicação de mais um artigo relacionado com os emails objecto do acesso referido em 15. colocará em crise a confiança dos clientes da Requerente e de advogados que com ela se relacionam quanto à inviolabilidade das comunicações endereçadas por e para a Requerente e quanto à capacidade desta para assegurar a reserva de confidencialidade relativamente ao teor dessas comunicações.
O Direito
Nos termos do n.º 2 do art.º 662.º do CPC, a Relação deve, mesmo oficiosamente, “determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.”
A apelante entende que esta Relação deve acionar este preceito, por considerar que o tribunal a quo não fundamentou a asserção contida no n.º 18 da matéria de facto, que reza assim:
Os emails referidos no artigo mencionado em 5. a 11. foram obtidos através do referido em 15. e 17.”
Por sua vez nos nºs 14 a 17 foi julgado indiciariamente provado o seguinte:
14. Em Agosto de 2016 a Polícia Judiciária alertou o director de informática da Requerente da suspeita de ter ocorrido intrusão na caixa de correio de quatro advogados da Requerente, entre os quais a Dra. Inês.
15. No seguimento das diligências de averiguação verificou-se ter ocorrido, em 5 de Abril de 2016, acesso não autorizado (hacking) à caixa de correio da Dra. Inês, que permitiu o acesso a todas as comunicações e documentos que se encontravam nessa caixa de correio.
16. Entre as comunicações referidas em 15. encontravam-se os emails referidos e transcritos no artigo mencionado em 5. a 11.
17. Os servidores de sociedades relacionadas com Isabel dos Santos, cliente da Requerente, também foram objecto de ataque informático de hacking.”
Por conseguinte, no n.º 18 da matéria de facto deu-se como indiciariamente provado que os e-mails citados no artigo publicado na edição do E de 26.8.2017 foram acedidos e conhecidos por terceiro através de hacking, descrito nos n.ºs 15 e 17. Note-se que em parte alguma se dá como indiciado que o E procedeu a hacking ou esteve na origem do mesmo ou, sequer, que tinha conhecimento dessa proveniência da informação acerca do conteúdo dos mails. A ligação entre o hacking e o acesso ao conteúdo dos mails visados na notícia decorre, conforme resulta da fundamentação da decisão de facto, do depoimento conjugado do diretor de informática da requerente, do legal representante desta e, bem assim, da Dr.ª Inês, emitente e destinatária de alguns desses mails. Leia-se a fundamentação da decisão de facto:
“Tanto as testemunhas inquiridas como o legal representante da Requerente descreveram as circunstâncias em que tomaram conhecimento que teria existido um acesso ilegítimo à caixa de correio de quatro advogados da Requerente, entre os quais a Dra. Inês, referindo o que se logrou apurar quanto ao procedimento que terá sido usado para esse efeito, que permitiu ao "hacker" o acesso a milhares de comunicações e documentos trocados entre advogados da Requerente e entre estes e seus clientes, bem como as diligências desenvolvidas após terem tomado conhecimento desse facto.
Quer a Dra. Inês, quer o legal representante da Requerente, afirmaram que os emails referidos no artigo publicado em 26 de Agosto de 2017 correspondem a comunicações que se encontravam na caixa de correio da Dra. Inês, coincidindo no seu conteúdo, o que puderam verificar e constatar pelo confronto entre as transcrições e os originais das comunicações.
Mais referiu a Dra. Inês o email que recebeu em 1 de Novembro de 2017, remetido pelo Requerido Tom B, e a sua actuação perante a recepção desse email, o que foi confirmado pelo legal representante da Requerente, tendo ambos afirmado que o assunto referido nesse email era objecto de emails que se encontravam na caixa de correio da Dra. Inês, que afirmou que as perguntas formuladas pelo Requerido Tom B nesse email estavam relacionadas com conteúdos da sua caixa de correio relativos com o assunto em questão, "se descontextualizos" (palavras da testemunha).
Tanto esta testemunha como o legal representante da Requerente afirmaram não ter permitido o acesso, nem autorizado a divulgação dos emails referidos no artigo publicado em 26 de Agosto de 2017 e aos quais, pelas razões que descreveram, terá tido acesso o Requerido Tom B, o que justificará o envio por este à testemunha Dra. Inês do email de 1 de Novembro de 2017.
Pelo legal representante da Requerente e pela Dra. Inês foram, ainda, descritas as reacções e repercussões resultantes da publicação do artigo de 26 de Agosto de 2017 e o receio do seu agravamento perante a publicação de um novo artigo a que servisse de fonte ou em que fossem divulgados emails trocados entre advogados da Requerente e entre estes e seus clientes, objecto de hacking.
Assim, indiciando-se que não fora permitido o acesso ou divulgação desses mails e que a respetiva caixa de correio havia sido alvo de intrusão não autorizada, não é difícil, face à experiência natural das coisas, concluir que o conhecimento do respetivo conteúdo, necessário à elaboração do artigo supra referido, assim como aos pedidos de esclarecimento dirigidos pelo requerido à Dr.ª Inês (n.ºs 20 e 21 da matéria de facto) adveio do aludido hacking.
Pelo que desnecessário é solicitar ao tribunal a quo qualquer esclarecimento ou aditamento à fundamentação da decisão de facto.
Nesta parte, pois, a apelação é improcedente.
Segunda questão (ilegitimidade da requerida)
Com este procedimento cautelar a requerente visava que a requerida fosse intimada a abster-se “de usar como fonte de qualquer artigo ou publicação de cariz jornalístico, ou outro, os emails trocados entre Advogados da Requerente (incluindo Advogados do Gabinete Legal Angola) e entre estes e terceiros seus constituintes, sobre os temas "Urbinveste/Van Oord/Marginal de Corimbra e outros com estes conexos", e que foram objecto de hacking” e, bem assim, de “utilizar /citar em qualquer artigo ou publicação de cariz jornalístico, ou outro, os emails trocados entre Advogados da Requerente (incluindo Advogados do Gabinete Legal Angola) e entre estes e terceiros seus constituintes, sobre os temas "Urbinveste /Van Oord / Marginal de Corimbra e outros com estes conexos", e que foram objecto de hacking.”. Pretensão essa que, como se viu, foi deferida, tendo o tribunal a quo proferido a referida ordem, dirigida à requerida.
Ora, como bem vem a requerida referindo, desde o início do procedimento, não lhe cabe a ela praticar os atos cuja abstenção foi ordenada, nem, por conseguinte, lhe cabe a ela omitir a sua prática. Mais, a requerida não tem competência para praticar tais atos nem poder para os determinar, positiva ou negativamente.
Com efeito:
A requerida é a proprietária do jornal E. Como tal, cabe-lhe nomear ou exonerar os respetivos trabalhadores, nomeadamente o Diretor do jornal (vide art.º 19.º n.º 2 da Lei de Imprensa, aprovada pela Lei n.º 2/99, de 13 de janeiro). Porém, a empresa jornalística deve organizar-se de molde a que a atividade editorial seja exercida pela publicação com plena autonomia face ao seu proprietário. Assim, embora o estatuto editorial esteja sujeito à ratificação da entidade proprietária (n.º 2 do art.º 17.º da Lei de Imprensa – LI), no mais é ao Diretor da publicação que compete:
a) Orientar, superintender e determinar o conteúdo da publicação;
b) Elaborar o estatuto editorial, nos termos do n.º 2 do artigo 17.º; c) Designar os jornalistas com funções de chefia e coordenação;
d) Presidir ao conselho de redacção;
e) Representar o periódico perante quaisquer autoridades em tudo quanto diga respeito a matérias da sua competência e às funções inerentes ao seu cargo.”
Concomitantemente, cabe ao Diretor da publicação, quando tal se justificar, recusar a publicação inerente a eventual exercício de direito de resposta (n.º 7 do art.º 25.º da LI) e é este que, se for o caso, deve ser judicialmente interpelado para o cumprimento do direito de resposta ou de retificação (n.º 2 do art.º 27.º da LI). Ao nível de responsabilização criminal por crimes cometidos através da imprensa, são agentes possíveis, além do autor do texto ou imagem ofensivos, o diretor ou seus substitutos, assim como, no caso de publicações não periódicas, o editor (art.º 31.º). Sendo o diretor ou seu substituto quem é criminalmente responsável pelo não acatamento de decisão judicial ou deliberação da Alta Autoridade para a Comunicação Social que ordene a publicação de resposta ou retificação, ou pela recusa da publicação de sentenças condenatórias por crimes cometidos através da imprensa ou em ações de efetivação de responsabilidade civil (art.º 32.º da LI). Sendo ao diretor que cabe, no caso de instauração de procedimento criminal contra autor desconhecido de escrito ou imagem, a obrigação de declarar no inquérito a respetiva identidade (art.º 39.º).
Para a autonomia da atividade editorial da publicação perante o seu proprietário contribui também o estatuto dos jornalistas. Com efeito, nos termos do art.º 22.º da Lei de Imprensa, sob a epígrafe “Direitos dos jornalistas”, “Constituem direitos fundamentais dos jornalistas, com o conteúdo e a extensão definidos na Constituição e no Estatuto do Jornalista:
a) A liberdade de expressão e de criação;
b) A liberdade de acesso às fontes de informação, incluindo o direito de acesso a locais públicos e respectiva protecção;
c) O direito ao sigilo profissional;
d) A garantia de independência e da cláusula de consciência;
e) O direito de participação na orientação do respectivo órgão de informação.
Nota essa reiterada na outra lei que, atinente a esta matéria, foi publicada no mesmo dia da publicação da Lei de Imprensa, o Estatuto do Jornalista (Lei n.º 1/99, de 13 de janeiro, com as alterações publicitadas):
Art.º 12.º
Independência dos jornalistas e cláusula de consciência
1 - Os jornalistas não podem ser constrangidos a exprimir ou subscrever opiniões nem a abster-se de o fazer, ou a desempenhar tarefas profissionais contrárias à sua consciência, nem podem ser alvo de medida disciplinar em virtude de tais factos.
2 - Os jornalistas podem recusar quaisquer ordens ou instruções de serviço com incidência em matéria editorial emanadas de pessoa que não exerça cargo de direcção ou chefia na área da informação.
(…).”
A liberdade de expressão e criação dos jornalistas, enquanto pilar essencial da liberdade de imprensa e meios de comunicação social, tem consagração na Constituição da República Portuguesa (art.º 38.º n.º 2 al. a)). Estando ao Estado atribuído o encargo de criar condições para que seja assegurada a liberdade e a independência dos órgãos de comunicação social perante o poder político e o poder económico (n.º 4 do art.º 38.º da CRP).
Assim, este procedimento foi indevidamente dirigido contra a Impresa, proprietária do jornal Expresso, pelo menos enquanto desacompanhada do Diretor do jornal e, quiçá, dos seus coadjuvantes na direção do jornal (cfr. art.º 21.º da Lei de Imprensa).
Situação esta diversa da tida em consideração no acórdão desta Relação, de 29.6.2010, processo n.º 843/10.7TVLSB-B.L1-1, citado na decisão recorrida, em que, justamente, o procedimento cautelar foi instaurado não apenas contra a proprietária do jornal envolvido, mas também contra o respetivo diretor e ainda contra jornalistas.
Note-se, também, que não está aqui em causa uma reivindicação indemnizatória, movida contra a empresa jornalística ao abrigo do n.º 2 do art.º 29.º da Lei de Imprensa, mas uma concreta intromissão na atividade editorial do jornal, a qual, como se expendeu, não cabe à Impresa determinar ou definir.
A apelante não é a titular da posição jurídica acionada pela requerente, pelo que, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 32.º do CPC, não tem interesse em contradizer, sendo parte ilegítima no presente procedimento cautelar.
A apelação é, pois, procedente.

DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação procedente e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida na parte respeitante à requerida e absolve-se esta da instância, por ilegitimidade processual passiva.
As custas da apelação são a cargo da apelada, que nela decaiu (art.º 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC).

Lisboa, 28.6.2018

Jorge Leal

Ondina Carmo Alves

Pedro Martins