Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1060/13.0TBTVD.S1.L1-6
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Os factos alegados pelas partes devem constar nos articulados legalmente previstos, não podendo ser alegados em requerimentos fora das previsões legais.
Numa acção de preferência com fundamento no artigo 1380º do CC é constitutivo do direito de preferência o facto, que deve ser alegado pela autora que o invocou, de que os réus adquirentes não são confinantes com os prédios que pretende preferir.
Não sendo alegado este facto, não há ineptidão da petição inicial, pois foi alegada a causa de pedir, inteligível e enquadrável legalmente, embora incompleta, devendo ser proferido despacho de aperfeiçoamento nos termos do artigo 590º nº4 do CPC, a fim de ser alegado o facto omitido.

(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


M... intentou acção declarativa com processo ordinário contra C... SA e contra C... e M..., alegando, em síntese, que é proprietária do prédio rústico inscrito na matriz rústica sob o artigo 55 secção Y de Torres Vedras, de cultura arvense, com área inferior a 4 hectares e à unidade de cultura, o qual é confinante com os prédios rústicos inscritos na matriz, respectivamente 56 secção Y e 31 secção Y, que foram vendidos por escritura pública de 26/10/2012 pela 1ª ré aos 2ºs réus, juntamente com outro prédio, pelo valor global de 60 000,00 euros, atribuindo o preço de 6 000,00 euros ao prédio nº56 e o preço de 49 000,00 euros ao prédio nº31, pelo que, por força dos artigos 1380º do CC e 18º do DL 384/88 de 25/10 tem direito de preferência na referida venda, sendo objectivo destas normas o de reduzir o número de minifúndios, facilitando um meio aos proprietários de agruparem as suas terras.

Mais alegou que pretende exercer o direito de preferência na referida venda, não tendo ainda decorrido 6 meses sobre a data da mesma, já que a 1ª ré não a notificou para exercer tal direito, nos termos dos artigos 416º a 418º e 1410º do CC.   
  
Concluiu pedindo o reconhecimento do seu direito de preferência na venda do prédio nº56 secção Y pelo preço de 6 000,00 euros e do prédio nº31 pelo preço de 49 000,00 euros, ambos do concelho de Torres Vedras e de haver para si os referidos prédios nas condições em que foram alienados.

Juntou a descrição e inscrição predial do seu prédio, nº1384 e a respectiva inscrição matricial nº55 da freguesia do Ramalhal, concelho de Torres Vedras, bem como as inscrições matriciais dos prédios 56 e 31 secção Y da mesma freguesia e a escritura pública de 26/10/2012, em que a 1ª ré vendeu estes dois últimos prédios ao réu, casado com a ré no regime de comunhão de adquiridos.

Posteriormente veio rectificar o pedido, esclarecendo que o prédio que identificou como tendo a inscrição matricial 31 secção Y, está descrito no registo predial sob o nº2006 da freguesia do Ramalhal e abrange também o artigo 32 secção Y, conforme descrição predial que juntou.

Juntou também a autora o comprovativo do depósito do preço de 55 000,00 euros.  

A 1ª ré e os 2ºs réus contestaram separadamente, mas fazendo-o nos mesmos termos, arguindo a ilegitimidade da autora, mediante a discriminação dos titulares dos prédios que, segundo o registo predial, confinam com os dois prédios objecto da venda e do pedido de preferência, entre os quais não consta a autora que, assim, não é titular de nenhum prédio confinante e, por impugnação, alegaram que os três prédios vendidos formam na prática um único prédio com a área global de 87 640 m2, com autonomia económica, o que não acontece com o único prédio relativamente ao qual a autora não pretende exercer o direito de preferência, o qual tem uma área de apenas 7 560 m2, sem qualquer valor e viabilidade económica se ficar isolado, pelo que as partes nunca teriam aceitado negociar a venda dos outros dois prédios sem o incluir e, desconhecendo-se se a autora é ou não titular de algum prédio que com eles confronte, facto que não consta no registo predial, não foi a mesma contactada para o exercício do direito de preferência, a que acresce o facto de os três prédios vendidos formarem uma exploração agrícola do tipo familiar, o que, por força do artigo 1381º b), afasta o direito de preferência.

Concluíram pedindo a procedência da excepção de ilegitimidade activa e, caso assim não se entenda, a improcedência da acção com a absolvição do pedido.

A autora replicou, opondo-se às excepções e oportunamente procedeu ao registo da acção, o que consta das duas certidões prediais dos prédios aí descritos respectivamente sob o nº958, com a matriz nº 56 secção Y e sob o nº2006, com a matriz 31 e 32 secção Y, ambos da freguesia do Ramalhal, concelho de Torres Vedras.

Procedeu-se a audiência prévia, onde foi dado conhecer às partes que o Tribunal considerava estar em condições para decidir nesse momento e foi suspensa a instância pelo prazo de dez dias com vista à obtenção de acordo entre as partes, agendando-se data para continuação, caso não houvesse acordo.

Antes da data agendada para a continuação da audiência prévia, veio a autora apresentar requerimento juntando várias descrições prediais e matriciais da freguesia do Ramalhal, Torres Vedras, com inscrição a favor de terceiros, pedindo que estes sejam considerados prova documental bastante de que o réu adquirente não era proprietário de prédio confinante com aqueles que adquiriu e que se considere que tal facto se encontra invocado pela requerente.

Os réus vieram opor-se ao requerido e alegando que dos documentos juntos não se extrai o facto que a autora pretende que seja considerado alegado.

Retomada a audiência prévia na data agendada para o efeito, foi proferido despacho indeferindo o requerimento da autora, com o fundamento de que o facto de o réu adquirente dos imóveis não ser confinante com os mesmos não foi alegado na petição inicial e que tal alegação só agora foi feita, fora do momento processual próprio, não podendo ser aceite.

Seguidamente foi proferida decisão que, com o fundamento de que a autora não alegou o facto constitutivo do seu direito da não titularidade por parte dos réus adquirentes de prédio confinante com os prédios objecto do direito de preferência, julgou inepta a petição inicial com a nulidade do processado e a absolvição dos réus da instância.    
                                                       
Inconformada, a autora interpôs recurso per saltum para o STJ e alegou, formulando conclusões com os seguintes fundamentos:
A Mmª Juiz entendeu, em sede de primeira marcação de audiência preliminar, que não tinha sido alegado na causa de pedir que o terceiro adquirente, o 2º réu, não era proprietário confinante à data da alienação dos prédios.
Entende, porém, a recorrente que não tinha de alegar especificadamente tal facto, face aos restantes factos alegados na petição inicial, bem como à transcrição do artigo 1380º do CC e ao alegado sobre a justificação do instituto no sentido de facilitar o a redução do minifúndio.
Também não caberá à autora a prova de tal facto segundo as regras do ónus da prova, como entendeu a decisão recorrida, pois se trata de um facto negativo cuja prova apresenta dificuldades, tanto mais no caso em que tal prova depende de documento do registo predial que apresenta discrepância entre os titulares inscritos e os verdadeiros proprietários, quer porque não foram devidamente formalizados, quer porque não foi elaborado o respectivo registo.
Sendo assim demasiado oneroso impor ao titular do direito de preferência o ónus de provar que o adquirente não é confinante, este facto não será um facto constitutivo do direito de preferência, mas sim um facto extintivo, cabendo ao adquirente provar que é titular de prédio confinante.
Mesmo que assim não se entendesse, sempre se dirá que a autora alegou na petição inicial, ainda que não expressamente, que os réus adquirentes não eram titulares de prédios confinantes, tendo-o feito expressamente após a petição inicial, em sede de requerimento onde juntou certidões prediais de todos os prédios confinantes, situação esta que deveria ter sido considerada pelo Tribunal recorrido, que nem sequer se pronunciou sobre a junção dos documentos
Nos termos do artigo 590º do CPC, findos os articulados deverá ser proferido despacho pré-saneador, o que não aconteceu no presente caso e, no caso de se entender que havia omissão de um dos factos constitutivos, deveria ter acontecido, sob pena de nulidade processual.
Ao contrário do que acontecia na antiga redacção do artigo 508º do CPC, o actual artigo 590º impõe ao juiz a obrigação de gestão processual que, caso se entenda que a recorrente não alegou um facto constitutivo, impunha que tivesse sido proferido despacho de aperfeiçoamento, o que não prejudicaria o contraditório dos recorridos.
Embora a recorrente entenda que a petição inicial não é inepta, caso se considere existir omissão de alegação de facto constitutivo do direito, verifica-se nulidade processual por não ter sido proferido despacho de aperfeiçoamento, atendendo ao disposto na nova redacção do artigo 590º do CPC.  
                                                           
Os recorridos contra-alegaram pugnando pela inadmissibilidade do recurso per saltum e pela improcedência do recurso.

Admitido o recurso na 1ª instância e remetidos os autos para o STJ, não foi o mesmo admitido por não se verificar o requisito previsto na alínea d) do artigo 678º nº1 do CPC, tendo sido ordenada a remessa do processo para a Relação para aqui ser processado e onde foi admitido como apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo.
                                                           
As questões a decidir são:
I)Se a autora não alegou um facto constitutivo do seu direito.
II)Consequências da não alegação de um facto constitutivo do direito.
                                                           
FACTOS.
Os factos a atender são os que constam no relatório do presente acórdão.
                                                           
ENQUADRAMENTO JURÍDICO.
I)Se a autora deixou de alegar um facto constitutivo do direito que invoca.
Estabelece o artigo 1380º nº1 do CC que “os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante” (sublinhado nosso).

Da simples leitura deste artigo se retira que a qualidade de não confinante do adquirente é um facto constitutivo do direito de preferência e não um facto impeditivo, modificativo ou extintivo desse direito, devendo ser alegado por quem o invoca, por força do artigo 342º nº1 do CC.

As discrepâncias entre a real titularidade dos prédios e o que possa constar no registo predial não dificultam especialmente este ónus da prova, como alega a apelante, pois o registo, de acordo com o artigo 7º do Cod. Reg. Predial, apenas constitui presunção de que as descrições existem nos seus precisos termos, mas esta presunção pode ser ilidida mediante a produção de prova sobre quem são os reais confinantes.

Igualmente não decorrem especiais dificuldades da circunstância de se tratar da prova de um facto negativo, já que bastará provar quem são os confinantes, para se poder apurar e concluir se os adquirentes estão ou não incluídos nessa qualidade.

Sendo então este um facto constitutivo do direito, deve ser alegado pela autora na petição inicial, pois os factos devem ser todos alegados nos articulados previstos na lei, para que os tribunal os possa ter em consideração, como resulta do princípio do dispositivo previsto no artigo 5º nº1 do CC, ónus este que a parte tem de respeitar, sob pena de os prazos e preclusões processuais se tornarem inúteis e sem sentido.

Ao contrário do ora alegado pela apelante, este facto não foi por si alegado na petição inicial não sendo suficiente transcrever a norma legal e explicar o objectivo da lei para se considerar alegado um facto.

Não sendo alegados no articulado próprio, os factos só poderão ser alegados, por iniciativa da parte, nos casos excepcionais, que também vêm expressamente previstos na lei, como é o caso do articulado superveniente (artigo 588º do CPC, antigo artigo 506º) e da alteração da causa de pedir (artigo 265º do CPC, antigo artigo 273º), situações que não ocorrem nos autos, por não estarmos perante factos novos que justifiquem o articulado superveniente, nem alteração de causa de pedir, mas sim causa de pedir que foi alegada de forma incompleta.

Conclui-se, portanto que a autora não alegou este facto constitutivo do seu direito no momento próprio, não podendo fazê-lo no requerimento que apresentou aquando da audiência prévia, fora dos articulados legais e sem ser convidada pelo tribunal a aperfeiçoar os factos já alegados.
                                                          
II)Consequência de não ter sido alegado um facto constitutivo do direito.
A decisão recorrida entendeu que a consequência da falta de alegação deste facto essencial para a procedência da acção é a ineptidão da petição inicial, embora sem indicar em qual das alíneas do nº2 do artigo 186º do CPC integra a ineptidão, presumindo-se que, face à não alegação pela autora de um facto constitutivo do direito invocado, se tratará da alínea a), que comina com a ineptidão a petição inicial à qual falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir.

Discordamos desta interpretação, tendo em atenção que a falta a que se refere a alínea a) do nº2 do artigo 186º constitui uma omissão total de causa de pedir ou uma ininteligibilidade da mesma, o que não ocorre nos presentes autos, em que a causa de pedir foi alegada, é fundamento legal do direito invocado e é inteligível, como resulta das contestações dos réus que a entenderam perfeitamente.

Não há, assim ineptidão da petição inicial, nem manifesta improcedência (que pressupõe a alegação de uma causa de pedir inteligível mas manifestamente improcedente por não constituir fundamento legal do pedido formulado), verificando-se, sim, a apresentação de uma causa de pedir inteligível e com enquadramento legal, mas incompleta, por faltar alegar um dos factos constitutivos do direito, essencial para a procedência da acção.

Sendo assim, impunha-se o convite ao aperfeiçoamento, por força do artigo 590º nº4 do CPC, o qual impõe que o juiz convide a parte a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para ser completado ou corrigido o inicialmente produzido.

Estes factos omitidos, complemento ou concretização dos já alegados e objecto da norma do artigo 590º nº4, correspondem àqueles factos que, caso o processo prosseguisse sem despacho de aperfeiçoamento, o tribunal poderia atender, mesmo sem serem alegados, se resultassem da instrução da causa, ao abrigo do nº2 b) do artigo 5º do CPC, nas condições aí previstas, no âmbito das excepções ao princípio do dispositivo contempladas nesta disposição legal, que incluem também, nas alíneas a) e c), os factos instrumentais e os factos notórios.

Acresce que existe mais um motivo que deveria ter determinado o convite à correcção da petição inicial, que consiste no facto de as confrontações dos prédios objecto da acção constarem nas certidões prediais juntas com o registo da acção, onde não figuram os réus adquirentes, o que até foi apontado pelos próprios réus nas suas contestações, que, com o objectivo de demonstrar que a autora não é confinante, alegaram as confrontações desses prédios, discriminando os titulares dos prédios confinantes, sem que os réus adquirentes aí estejam abrangidos.

É certo que, como já se referiu, a prova resultante do registo predial é susceptível de ser oportunamente ilidida (como aliás é do interesse da autora, que pretende provar que é confinante), mas enquanto não o for, constitui presunção de que os factos existem nos termos descritos no registo, o que foi aceite (e até alegado) pelos réus.

Deste modo, não pode deixar de se considerar prematura a decisão recorrida, ao entender que os autos não têm condições para prosseguir.

Procedem, pois, as alegações de recurso, devendo o tribunal proferir despacho de aperfeiçoamento e pronunciar-se sobre a junção dos documentos oferecidos pela autora.     
                                                           
DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida, que deverá ser substituída por um despacho convidando ao aperfeiçoamento da petição inicial no sentido de alegar que os réus não são confinantes com os prédios do direito de preferência invocado e pronunciando-se sobre a junção dos documentos juntos pela autora no requerimento oferecido aquando da audiência prévia. 
                                                            
Custas pelos apelados.

                                                                     
Lisboa, 26-10-2017
                                                   
                                                                   
Maria Teresa Pardal 
Carlos Marinho                                                    
Anabela Calafate                                                                       
Decisão Texto Integral: