Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3638/18.6T8CSC.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA
RESPONSABILIDADE CONTRA-ORDENACIONAL
PESSOA COLECTIVA
NEGLIGÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: - Como resulta dos nºs 2 e 3 do artigo 46º, da Lei nº 25/2008, de 05/06, em vigor à data da prática dos factos e que constituía norma especial relativamente ao artigo 7º, nº 2, do RGCOC, está consagrada a responsabilidade directa da pessoa colectiva, não se condicionando a sua responsabilidade contra-ordenacional a prévia ou paralela responsabilização de pessoa singular, de onde não existir qualquer deficiência da decisão administrativa quando omite a identificação desta pessoa ou pessoas.
- A responsabilidade da pessoa colectiva só será excluída quando o agente actue, por iniciativa individual e autónoma, (que não em nome e interesse do ente colectivo), contra ordens ou instruções expressas daquela, como até expressamente veio a estabelecer-se no nº 2, do artigo 162º, da Lei nº 83/2017, de 18/08, que revogou a Lei nº 25/2008 (a responsabilidade da pessoa coletiva ou entidade equiparada a pessoa coletiva apenas é excluída quando o agente atue contra ordens ou instruções expressas daquela).
- A não identificação da pessoa física que perpetrou o facto ilícito ou o conjunto de pessoas que para ele contribuiu, na estrita medida em que tal não é elemento necessário à existência de responsabilidade de uma pessoa colectiva (por acção ou omissão) é irrelevante, bastando para tal que se estabeleça um nexo causal entre si e o acto ilícito e se não prove a exclusão da sua responsabilidade. Isto é, tudo se reconduz a uma questão de facto, no constatar que é possível imputar a ilicitude e a culpa a uma conduta da recorrente, qualquer que tenha sido o actor ou actores individuais.
- Tendo a acoimada revelado claro entendimento dos factos que lhe foram imputados na decisão administrativa, e que o foram a título de negligência, como se extrai do próprio teor da impugnação judicial que apresentou e da argumentação que aí desenvolve, resultando que a fundamentação da decisão foi suficiente para permitir o exercício do direito de defesa e, daí, que foram observadas as exigências do artigo 58º, nº 1.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
1. Nos autos que, com o nº 3638/18.6T8CSC, correm seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo Local Criminal de Cascais – Juiz 1, tendo sido interposta impugnação judicial pela arguida VV-Unipessoal, Lda.” da decisão do Vogal do Conselho Directivo do Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção que lhe aplicou coima no montante de 2.500,00 euros, pela prática de uma contra-ordenação prevista e punível pelos artigos 53º, alínea ae), 34º, nº 1, alínea b) e 54º., alínea c) - i), da Lei nº 25/2008, de 05/06 (alterada e republicada pelo Decreto-Lei nº 157/2014, de 24/10), foi proferido despacho, aos 26/05/2020, que julgou nula e de nenhum efeito a decisão da autoridade administrativa e procedente o recurso.
2. O Ministério Público não se conformou com essa decisão e dela interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1.
O Ministério Público apresentou, após proceder a prévio controlo formal dos requisitos e condições da respectiva remessa a juízo, o presente processo de contra-ordenação, instaurado pelo Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção, contra VV-Unipessoal, Lda', por factos susceptíveis de integrar a prática de uma infracção de natureza contra-ordenacional, prevista pelo artigo 53.º, alínea ae) da Lei n.º 25/2008, de 5 de Junho (aplicável em face de se tratar de regime mais favorável, em face da alteração introduzida pela Lei 83/2017), por violação do dever previsto no artigo 34.º, n.º 1, alínea b) e punida pelo artigo 54.º, alínea c) - i), do referido diploma legal, para registo como recurso de contra-ordenação, nos termos do disposto no artigo 62.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.
2.
Em sede de despacho proferido a 26 de Maio de 2020, a M.ma Juiz (sendo certo que o recurso já havia sido recebido, como resulta de fls. 242, e o Ministério Público já se havia pronunciado sobre a questão prévia referida, a 6 de Março de 2020), declarou nula e de nenhum efeito a decisão administrativa, por violação do disposto nos artigos 58.º, n.º 1, alínea b) do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (RGCO), 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, aplicáveis estes últimos por força do disposto no artigo 41.º n.º 1 do RGCO e determinou a sua devolução à entidade administrativa, fundamentando tal decisão na falta de verificação do disposto no artigo 7.º do RGCO e, consequentemente, de identificação da pessoa individual que praticou os actos integradores de contra-ordenação e na inexistência da descrição do elemento subjectivo.
3.
É do teor de tal decisão, com o qual se discorda, que ora se recorre, por se entender que a mesma violou o disposto nos artigos 7.º e 58.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, os artigos 379.º e 380.º, ambos do Código de Processo Penal, aplicáveis ex vi artigo 41.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro e bem assim como o disposto no artigo 46.º da Lei n.º 25/2008, de 5 de Junho (actual artigo 162.º da Lei n.º  83/2017, de 18 de Agosto, numa versão mais reduzida=.
4.
A questão da responsabilidade
Ao contrário do entendimento que pugnamos, a decisão que ora se põe em crise fundamenta que, de acordo com o mencionado artigo 7.º do RGCO 'importa ainda apurar que o infractor foi alguém actuando por conta ou em representação da pessoa colectiva ou em representação da pessoa colectiva ou equiparada, por causa do exercício das suas funções e no interesse da mesma' e que 'a decisão administrativa tem, assim, de circunstanciar e concretizar necessariamente, quem actuou, como e em que circunstâncias actuou'.
5.
Ora, em primeiro lugar, entendemos que, tendo em consideração que o diploma que prevê a infracção imputada à arguida/impugnante, possui norma específica que regula a questão da responsabilidade - artigo 46.º da Lei nº 25/2008, de 5 de Junho -, não podia a decisão fundamentar-se no artigo 7.º do Regime Geral das Contra-Ordenações, cuja aplicação, de natureza subsidiária, se sustenta na falta de norma, o que no caso concreto não opera, pelo que a mesma deverá considerar-se nula e, consequentemente, ser revogada, com a apreciação da situação concreta dos autos em face da norma especificamente prevista na lei.
6.
Em segundo lugar, sempre se deverá ter em consideração os concretos factos imputados à arguida/impugnante, sustentados nos documentos juntos, consubstanciados nos 'títulos de compra e venda' de bens imóveis, os quais têm natureza omissiva, e que se reconduzem à falta de cumprimento de deveres previstos no artigo 34da Lei n25/2008, de 5 de Junho e que a entidade colectiva deve cumprir, em face da sua área de actividade.
7.
Por último, sempre se atenderá ao normativo constante do artigo 46.º da Lei n.º 25/2008, de 5 de Junho, no qual claramente emerge que não se mostra essencial a imputação da prática da infracção a um agente individual, para que a mesma possa ser à sociedade que a ela incumbia.
8.
No mais, não poderá deixar de se ter em consideração o teor do Parecer do Conselho Consultivo da PGR, emitido a 10 de Julho de 2013, no qual se afirma que não se afere 'necessária a identificação concreta do agente singular que cometeu a infracção para que a mesma seja imputável à pessoa colectiva', até porquanto não se verifica qualquer extensão dessa responsabilidade à pessoa individual (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 12 de Julho de 2016, Processo n.º 174/15.6T8RMR.E1).
9.
Mais, analisando o teor dos factos constantes da decisão administrativa: por um lado, dúvidas não se suscitaram à arguida quanto à imputação factual, sendo que põe em causa a sua verificação; por outro, os factos reportam-se a um acto omissivo, imputado à arguida na qualidade de mediadora imobiliária, nas compras e vendas identificadas, de não ter efectuado a comunicação que, por lei, lhe incumbia.
10.
A não ser tal a interpretação a efectuar em sede de imputação da responsabilidade sempre se afirmaria ser aqui o meio de permitir às entidades colectivas evitar a sua responsabilização quando as infracções imputadas fossem resultantes, por exemplo, de reclamações apresentadas por particulares nas quais nenhuma informação se fizesse constar quanto às pessoas individuais, não prestando quaisquer elementos sobre a identificação de funcionários e/ou gerentes.
11.
O Elemento Subjectivo
Argumenta ainda a decisão de que ora se recorre, para concluir no sentido da nulidade e de nenhum efeito da decisão administrativa, que esta não faz constar informação sobre se a actuação “o foi deforma consciente e voluntária, em clara violação dos seus deveres, praticando desse modo, as infracções em análise”, daqui decorrendo que se considera verificar-se uma situação de omissão de descrição do elemento subjectivo.
12.
Previamente, cumpre referir que, atenta a especificidade e especialidade do direito contra-ordenacional, não se mostra necessário que a decisão administrativa final proferida seja efectivamente uma sentença, exigindo-se apenas que, dentro da celeridade e simplicidade que caracterizam tal processo, a decisão administrativa, contendo todos os requisitos previstos no artigo 58.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, se mostre inteligível ao arguido, para que o mesmo se possa dela cabalmente defender, conhecendo todos os factos e infracções que lhe são imputadas (v. a título exemplificativo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 21 de Junho de 2016, Processo n.º 170/15.3T8GDL.E1).
13.
Ora, analisando o teor da decisão administrativa, certo é que da mesma resulta, ainda que de uma forma esparsa - aliás tal foi transcrito para a própria decisão proferida e que ora se põe em causa -, que a imputação do ilícito contra-ordenacional o seria a título negligente.
14.
A isto não pode deixar ainda de acrescer o facto de, também no que a este aspecto se refere, nada ter sido alegado pela arguida/impugnante, daí resultando que, efectivamente, o visado compreendeu o teor da decisão administrativa proferida e que, tendo efectuado uma leitura da mesma, dúvidas se não lhe surgiram quanto ao facto de a imputação da violação da norma legal o ser a título negligente.
15.
Pelo que, com o despacho judicial proferido a M.ma Juiz violou o disposto nos artigos 7.º e 58.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, os artigos 379.º e 380.º do Código de Processo Penal, aplicáveis ex vi artigo 41.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro e o artigo 46.º da Lei n.º 25/2008, de 5 de Junho, devendo o mesmo ser revogado e substituído por outro designe data para audiência de julgamento, nos termos do disposto no artigo 65.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro ou proceda às notificações nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 64.º do mesmo diploma legal.
Pelo exposto, deve o presente recurso merecer provimento, revogando-se a decisão judicial recorrida e substituindo-a por outra nos termos determinados, só assim se fazendo a esperada e costumada JUSTIÇA!
3. Inexiste resposta à motivação de recurso.
4. Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral-Adjunta apôs o seu “visto”.
5. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1.   Âmbito do Recurso
Como é sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Ed. Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Ed. Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.
No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:
Não identificação na decisão administrativa da pessoa singular que actuou no domínio dos factos.
Omissão na decisão administrativa dos elementos subjectivos da infracção.
2. A Decisão Recorrida
2.1 É o seguinte o teor da decisão revidenda, na parte relevante (transcrição):
Nos presentes autos de contra-ordenação veio a arguida/recorrente VV-UNIPESSOAL, LDA. ao abrigo do disposto nos artºs 59.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, impugnar judicialmente as decisões da autoridade administrativa INSTITUTO DOS MERCADOS PÚBLICOS DO IMOBILIÁRIO E DA CONSTRUÇÃO, que a condenou pela prática da contra-ordenação, prevista e punida pelo artigo 53.º, alínea ae), da Lei n.º 25/2008, de 5 de Junho, por violação do dever previsto no artigo 34.º, n.º 1, alínea b), do referido diploma e com a punição constante do artigo 54.º, alínea c), i) do mesmo diploma, numa coima no valor de €2500 (dois mil e quinhentos euros), bem como nas custas do processo.
Resulta decisão da entidade administrativa, quanto aos factos imputados à arguida, que:
"1. A ora arguida VV-, UNIPESSOAL, LDA, NIPC n.º…, BL. Forte da Casa;
2. A arguida interveio na qualidade de mediadora imobiliária, na transação de Compra e venda de uma fração autónoma, designado pelas letras AC, correspondente ao primeiro andar direito com acesso pelo nº 15, e estabelecimento no logradouro com a letra "D", sito na Av. …, realizado em 14/04/2015;
3. A arguida interveio na qualidade de mediadora imobiliária, na transação de Compra e venda de um bem imóvel, sito na … concelho de Sesimbra, vendida por Consulteam Consultores de Gestão, Lda, ao Sr. Manuel dos Santos Branco, no montante de €20.000,00, realizado em 20/05/2015;
4. A arguida interveio na qualidade de mediadora imobiliária, na compra e venda de fração autónoma, designada pela letra "E" correspondente ao segundo andar direito, sito na Rua … realizado em 27/05/2015;
5. A arguida interveio na qualidade de mediadora imobiliária, na compra e venda de fração autónoma, designada pela letra "N", correspondente ao sexto andar esquerdo com arrecadação na cave com o número catorze, sito na Rua …, realizado em 08/06/2015;
6. Até à data da presente decisão final, e após consulta à aplicação informática que suporta as comunicações obrigatórias por força da citada Lei nº 25/2008, de 5 de junho, verificou-se, que a arguida, não comunicou as transações imobiliárias, em que interveio na qualidade de mediadora, relativas à compra e venda de bens imóveis, os elementos constantes da alínea b) do nº 1 do artigo 34º da citada lei;
7. A arguida sabia estar obrigada a comunicar ao então InCI, LP, agora IMPIC, LP, semestralmente, em modelo próprio e nos prazos estabelecidos no artigo 170 do Regulamento na 282/2011, sobre cada transação efetuada, os elementos constantes da alínea b.) do. nº 1 do artigo 34º da referida Lei nº 25/2008, de 5 de junho, tanto mais que já tinha efetuado comunicações anteriores. (...)
A arguida tinha consciência da sua obrigação de comunicar os elementos relativos às transacções em que interveio na qualidade de mediadora imobiliária, tando mais, que já tinha comunicado em anos transatos, contudo, não adoptou o cuidado que lhe era imposto e estava ao seu alcance, de se certificar que aqueles elementos tinham sido comunicados, mesmo após o Software que suporta as comunicações obrigatórias, por força da Lei nº 25/2008, de 5 de junho, se encontrar operacional.
Não nos parece ter existido uma conduta intencional e o propósito de praticar o facto descrito e punido por lei. A conduta da arguida é, por isso uma conduta negligente (inconsciente) (...) Isto é, a arguida não previu (como podia e devia) a produção, ou no caso concreto, a omissão daquele resultado. (...)""
Suscitando-se a eventual existência de vício da decisão administrativa, foi obtida posição do Ministério Público que se pronunciou no sentido da inexistência de qualquer vício da decisão administrativa.
Cumpre apreciar, tendo em conta a matéria factual da decisão impugnada.
Atenta a natureza sancionatória do processo contra-ordenacional (por aplicação do art. 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa), os fundamentos da decisão que aplica uma coima aproximam-na mais de uma decisão condenatória, do que de uma decisão da Administração.
Assim, na fundamentação de tal decisão são aplicáveis as exigências da fundamentação de uma decisão penal - na especificação dos factos, na enunciação das provas que os suportam e na indicação precisa das normas violadas.
A fundamentação da decisão deve permitir aos interessados conhecer os motivos da decisão e o procedimento lógico que determinou a decisão, por forma a que possam estar em condições de formular um juízo sobre a oportunidade e a viabilidade e os motivos para uma eventual impugnação - elemento de legitimação interna - e, bem assim, conter os elementos que possibilitem o controlo sobre as razões da decisão - elemento de legitimação externa -cfr. art. 58.º, n.º 1 , do RGCO.
Tais elementos essenciais traduzem-se na narração circunstanciada dos factos, da sua tipicidade, da ilicitude e da culpa do agente.
Da narração acusatória, devem constar para além dos factos imputados ao arguido, os factos relativos à culpabilidade, devendo descrever-se circunstanciadamente o conhecimento e a vontade de realização do facto material típico de uma infracção.
No caso da pessoa colectiva ou equiparada, e de harmonia com o preceituado no art. 7.º, n.º 2 do R.G.C.O., importa ainda apurar que o infractor foi alguém actuando por conta ou em representação da pessoa colectiva, ou equiparada, por causa do exercício das suas funções e no interesse da mesma.
A decisão administrativa tem, assim, de circunstanciar e concretizar necessariamente, quem actuou, como e em que circunstâncias actuou, e se o fez de forma consciente e voluntária, em clara violação dos seus deveres, praticando, desse modo, as infracções em análise.
A decisão da entidade administrativa ora em apreço não contém tais imputações, não identificando a pessoa ou pessoas que actuou(aram) no domínio dos factos, pelo que, sendo a arguida/recorrente, uma sociedade comercial, a decisão não permite fazer concluir quem determinou a prática do facto e em que circunstâncias de tempo, modo e lugar.
No que à culpa concerne, não resultando da decisão em apreço a imputação de factos à arguida (pessoa colectiva equiparada, administrada por uma sociedade comercial) ou alguém actuando sob suas ordens e no seu interesse, as considerações que nela se tecem a propósito do dever de se conformar com a norma e de censurabilidade, carecem de fundamento factual, importando aduzir os factos que descrevam quem era o responsável e quem agiu em concreto sem o cuidado que lhe era devido, o que a decisão ora em apreço não fez.
Faltando os elementos essenciais da decisão, como a base factual - sem os quais nem pode ser considerada decisão em sentido processual e material - importa apurar as consequências de tal falta dentro do sistema de normas aplicável, directamente ou por via supletiva dos preceitos do processo criminal devidamente adaptados, nos termos do art. 41.º do RGCO.
Assim, ao ter omitido a enunciação dos representantes ou empregados da sociedade arguida/recorrente que actuaram sem o cuidado que lhe era devido e ao omitir completamente a factualidade atinente ao elemento subjectivo, que fundamentem a aplicação da coima em que aquela foi condenada, a decisão ora em apreço é, entendemos, nula de acordo com o disposto nos artigos 58.º, nº 1, alínea b) do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (RGCO), 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, aplicáveis estes últimos ex-vi do art.º 41.º, n.º 1 do RGCO.
Decisão:
Pelo fundamentos de facto e de Direito supra expostos, julgo nula e de nenhum efeito a decisão administrativa proferida pela autoridade administrativa INSTITUTO DOS MERCADOS PÚBLICOS DO IMOBILIÁRIO E DA CONSTRUÇÃO nestes autos e, em consequência, procedente o recurso de impugnação judicial interposto pela arguida/recorrente VV-, UNIPESSOAL, LDA..
Não são devidas custas - art. 93.º, n.º 3 do RGCO a contrário.
Deposite, notifique e, após trânsito em julgado, remeta os autos à autoridade administrativa para os fins tidos por convenientes - art. 70.º, n.º 4 do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro.
Apreciemos.
No que tange aos recursos de decisões relativas a processos por contra-ordenações e conforme resulta do estabelecido nos artigos 66º e 75º, nº 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (doravante RGCOC), aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, a 2ª instância funciona como tribunal de revista e como última instância, estando o poder de cognição deste tribunal limitado à matéria de direito, intervindo o Tribunal da Relação como tribunal de revista ampliada, sem prejuízo do conhecimento oficioso de qualquer dos vícios referidos no artigo 410º, do CPP, por força do consignado nos artigos 41º, nº 1 e 74º, nº 4, do RGCOC, posto que as normas reguladoras do processo criminal constituem direito subsidiário do contra-ordenacional.
Não identificação na decisão administrativa da pessoa singular que actuou no domínio dos factos
Sustenta a decisão revidenda, chamando à colação o estabelecido no artigo 7º, nº 2, do RGCOC, que a decisão da autoridade administrativa não identifica a pessoa ou pessoas que actuou(aram) no domínio dos factos, pelo que, sendo a arguida uma sociedade comercial, a decisão não permite fazer concluir quem determinou a prática do facto e em que circunstâncias de tempo, modo e lugar.
Analisemos.
Estabelecia-se no artigo 46º, da Lei nº 25/2008, de 05/06, em vigor à data da prática dos factos e que constituía norma especial relativamente ao artigo 7º, nº 2, do RGCOC:
“1 - Pela prática das contra-ordenações a que se refere o presente capítulo podem ser responsabilizadas:
a) As entidades financeiras;
b) As entidades não financeiras, com excepção dos advogados e dos solicitadores;
c) As pessoas singulares que sejam membros dos órgãos sociais das entidades referidas nas alíneas anteriores ou que nelas exerçam cargos de direcção, chefia ou gerência, ou actuem em sua representação, legal ou voluntária, e, ainda, no caso de violação do dever previsto no artigo 19º, os seus empregados e outras pessoas que lhes prestem serviço permanente ou ocasional.
2 - As pessoas colectivas são responsáveis pelas infracções quando os factos tenham sido praticados, no exercício das respectivas funções ou em seu nome ou por sua conta, pelos titulares dos seus órgãos sociais, mandatários, representantes, trabalhadores ou quaisquer outros colaboradores permanentes ou ocasionais.
3 - A responsabilidade da pessoa colectiva não preclude a responsabilidade individual dos respectivos agentes.
4 - Não obsta à responsabilidade individual dos agentes a circunstância de o tipo legal da infracção exigir determinados elementos pessoais e estes só se verificarem na pessoa colectiva, ou exigir que o agente pratique o facto no seu interesse, tendo aquele actuado no interesse de outrem.
5 - A invalidade e a ineficácia jurídicas dos actos em que se funde a relação entre o agente individual e a pessoa colectiva não obstam a que seja aplicado o disposto nos números anteriores.”
Como resulta dos transcritos nºs 2 e 3, consagrada está a responsabilidade directa da pessoa colectiva, não se condicionando a sua responsabilidade contra-ordenacional a prévia ou paralela responsabilização de pessoa singular, de onde não existir qualquer deficiência da decisão administrativa quando omite a identificação desta pessoa ou pessoas.
A responsabilidade da pessoa colectiva só será excluída quando o agente actue, por iniciativa individual e autónoma, (que não em nome e interesse do ente colectivo), contra ordens ou instruções expressas daquela, como até expressamente veio a estabelecer-se no nº 2, do artigo 162º, da Lei nº 83/2017, de 18/08, que revogou a Lei nº 25/2008 (a responsabilidade da pessoa coletiva ou entidade equiparada a pessoa coletiva apenas é excluída quando o agente atue contra ordens ou instruções expressas daquela).
No caso em apreço, imputa-se uma conduta omissiva da pessoa colectiva/arguida que, de acordo com a decisão administrativa, tendo intervindo na qualidade de mediadora imobiliária na transacção de vários imóveis, não procedeu ao envio ao “Instituto da Construção e do Imobiliário, I.P.” (actualmente com a denominação “Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção”) dos elementos relativos a cada transacção, como se impunha na alínea b), do nº 1, do artigo 34º, da Lei nº 25/2008.
Estando perante um ilícito consubstanciado em uma negligente violação de um dever jurídico que a lei comina como contra-ordenação, resulta evidente a culpa funcional que se imputa à pessoa colectiva.
De onde e na esteira do Ac. R. de Évora de 11/07/2013, Proc. nº 82/12.2YQSTR.E1, consultável em www.dgsi.pt., se entender que “a não identificação da pessoa física que perpetrou o facto ilícito ou o conjunto de pessoas que para ele contribuiu, na estrita medida em que tal não é elemento necessário à existência de responsabilidade de uma pessoa colectiva (por acção ou omissão) é irrelevante, bastando para tal que se estabeleça um nexo causal entre si e o acto ilícito e se não prove a exclusão da sua responsabilidade. Isto é, tudo se reconduz a uma questão de facto, no constatar que é possível imputar a ilicitude e a culpa a uma conduta da recorrente, qualquer que tenha sido o actor ou actores individuais.”
Aliás, analisado o recurso de impugnação da decisão da autoridade administrativa, resulta claro que a acoimada/VV-Unipessoal, Lda.” apenas coloca em causa o não cumprimento da obrigação, fundando-se em que o software de registo e comunicação impostos pelo artigo 34º, alínea b), da Lei nº 25/2008, “teve constrangimentos”, mas que satisfez a imposição em 20/08/2015, por via postal e bem assim que um dos imóveis assinalados não foi por si angariado, mas por outra imobiliária, não fazendo apelo a qualquer actuação omissiva dos titulares dos seus órgãos sociais, mandatários, representantes, trabalhadores ou quaisquer outros colaboradores permanentes ou ocasionais, contra ordens ou instruções expressas suas.
E, assim sendo, tem o recorrente Ministério Público a razão pelo seu lado, quanto a esta questão.
Omissão na decisão administrativa dos elementos subjectivos da infracção
Considerou ainda o despacho recorrido que a decisão da autoridade administrativa omitiu completamente a factualidade atinente aos elementos subjectivos que fundamentam a aplicação da coima.
Insurge-se o recorrente/Ministério Público contra este entendimento, aduzindo que da decisão administrativa consta “que a imputação do ilícito contra-ordenacional o seria a título negligente” e bem assim “nada ter sido alegado pela arguida/impugnante, daí resultando que, efectivamente, o visado compreendeu o teor da decisão administrativa proferida e que, tendo efectuado uma leitura da mesma, dúvidas se lhe não surgiram quanto ao facto de a imputação da violação da norma legal o ser a título negligente”.
Ora, estabelece-se no artigo 1º, do RGCOC, que “constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima”, sendo que, de acordo com o artigo 8º, nº 1 do mesmo, “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.”
A negligência consiste na omissão do cuidado devido, que conduz à realização do facto descrito na norma que prevê a contra-ordenação.
O artigo 58º, do RGCOC, que prevê os requisitos da decisão condenatória da autoridade administrativa, consagra:
“1 – A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:
a) A identificação dos arguidos;
b) A descrição dos factos imputados com indicação das provas obtidas;
c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d) A coima e as sanções acessórias (…)”.
E, dizem-nos Simas Santos/Lopes de Sousa, Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 2ª edição, 2002, Vislis Editores, pág. 334, que “os requisitos neste artigo para a decisão condenatória do processo contra-ordenacional visam assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão. Por isso, as exigências aqui feitas deverão considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos”.
Percorrendo a decisão da entidade administrativa, nela se mostra descrito, na parte intitulada Factos provados, que:
- Até à data da presente decisão final, e após consulta à aplicação informática que suporta as comunicações obrigatórias por força da citada Lei nº 25/2008, de 5 de junho, verificou-se, que a arguida, não comunicou as transacções imobiliárias, em que interveio na qualidade de mediadora, relativas à compra e venda de bens imóveis, os elementos constantes da alínea b) do nº 1 do artigo 34º da citada lei;
- A arguida sabia estar obrigada a comunicar ao então In CI, I.P., agora IMPIC, I.P., semestralmente, em modelo próprio e nos prazos estabelecidos no artigo 17º do Regulamento nº 282/2011, sobre cada transacção efectuada, os elementos constantes da alínea b) do nº 1 do artigo 34º da referida Lei nº 25/2008, de 5 de junho, tanto mais que já tinha efectuado comunicações anteriores.
E, do segmento Imputação, constam as afirmações de facto:
A arguida tinha consciência da sua obrigação de comunicar os elementos relativos às transacções em que interveio na qualidade de mediadora imobiliária, tanto mais, que já tinha comunicado em anos transactos, não adoptou o cuidado que lhe era imposto e que estava ao seu alcance, de se certificar que aqueles elementos tinham sido comunicados, mesmo após o software que suporta as comunicações obrigatórias, por força da Lei nº 25/2008, de 5 de junho, se encontrar operacional.
Não nos parece ter existido uma conduta intencional e o propósito de praticar o facto descrito e punido por lei. A conduta da arguida é, por isso, uma conduta negligente (inconsciente) (…) Isto é, a arguida não previu (como podia e devia) a produção, ou no caso concreto, a missão daquele resultado. Pensamos que na situação “sub judice”, a arguida poderia ter o cuidado de se certificar, se as transacções imobiliárias tinham sido comunicadas, na aplicação informática, que suporta as comunicações obrigatórias por força da Lei nº 25/2008, de 5 de junho, não obstante, da empresa ter sido advertida, que com a acusação que lhe foi deduzida, ou com a decisão final, não isentavam a empresa do seu cumprimento, mesmo fora do prazo legalmente regulamentado, em conformidade com o artigo 47º do referido diploma legal.
Estas afirmações complementam a transcrita factualidade, sendo que a estes elementos se tem de igualmente atender, “independentemente do concreto ‘lugar’ que ocupam na decisão” – neste sentido, Ac. da Relação de Lisboa de 20/06/2017, Proc. nº 127/16.7-TNLSB.L1-5 e Ac. da Relação de Coimbra de 09/01/2019, Proc. nº 257/18.0T8SRT.C1, que podem ser lidos no referenciado sítio.
Por último, mas não menos importante, cumpre se diga, como assinala o recorrente, que a acoimada VV-Unipessoal, Lda.” revelou claro entendimento dos factos que lhe foram imputados na decisão administrativa e que o foram a título de negligência, como se extrai do próprio teor da impugnação judicial que apresentou e da argumentação que aí desenvolve, assim resultando também, que a fundamentação da decisão foi suficiente para permitir o exercício do direito de defesa e, daí, que foram observadas as exigências do artigo 58º, nº 1.
Destarte, merece provimento o recurso.
III - DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogam o despacho recorrido e determinam que os autos prossigam os subsequentes termos.
Sem tributação.

Lisboa, 10 de Novembro de 2020
Artur Vargues
Jorge Gonçalves