Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
35/13.3PTAMD.L1-5
Relator: MARIA JOSÉ MACHADO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA EXCLUSIVA
INDEMNIZAÇÃO AO LESADO
JUROS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: - Não existindo no local passadeira para fazer o atravessamento da via e, estando o veiculo imobilizado, não se impunha que o peão não atravessasse a faixa de rodagem por detrás do veículo, sendo certo que atento o sentido de marcha do mesmo, o previsível seria que este, quando iniciasse a circulação o fizesse para a frente no sentido da via em que se encontrava imobilizado e não para trás e apenas depois de tomar o dever de cuidado que lhe era exigido, designadamente o de atentar que o podia fazer no local e que dessa manobra não resultaria perigo para os utentes da via, ou para o trânsito, nos termos do disposto no artigo 35.º do C. Estrada, pelo que é exclusiva a culpa do condutor do veículo que atropelou peão que efectuou a travessia da faixa de rodagem por detrás do referido veículo automóvel, nas ditas circunstâncias.
- Tendo o tribunal a quo considerado que a culpa do acidente se devia ao condutor e à lesada na proporção de 50% para cada, e tendo o tribunal de recurso fixado a culpa exclusiva do condutor do veículo terá de se fixar o valor da indemnização no dobro dos valores fixados pelo tribunal recorrido pois seria esse o valor fixado, caso tivesse atribuído em exclusivo a culpa ao condutor da viatura, cuja responsabilidade civil pelos danos resultantes da sua circulação estava transferida para a demandada.
- Sendo, os respectivos quantitativos, valores actualizados sobre os mesmos só incidirão juros de mora, a partir da presente decisão e não a partir da citação
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I – Relatório
1. No processo supra identificado foi o arguido V. submetido a julgamento, por tribunal singular, pela imputada prática de um crime de ofensa à integridade física negligente p. e p. pelo art.º 148.º, nº 1 do Código Penal.
2. Foi deduzido pedido de indemnização civil, pela assistente MLS, contra Companhia de Seguros K, S.A. pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de €83.492,60, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, por aquela sofridos em consequência do acidente imputado ao arguido.
3. Uma vez realizado o julgamento foi proferida sentença na qual o tribunal decidiu: (transcrição)
3. «- Condenar o arguido pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148°, n.°1 do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 7 euros, no total de €630 (seiscentos e trinta euros), a que correspondem subsidiariamente 60 dias de prisão;
-    Condenar a demandada Companhia de Seguros K, SA a pagar à demandante o montante global de €41.420, sendo:
- €21.420 a título de danos patrimoniais, acrescida de juros legais, a contar desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento;
- €10.000 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros legais, a contar desde a data da sentença e até efectivo e integral pagamento;
- €10.000 a título de dano biológico, acrescida de juros legais, a contar desde a data da sentença e até efectivo e integral pagamento;
4. - Condenar o arguido no pagamento das custas do processo fixadas em 2 UCs de taxa de justiça.
5. - Condenar a demandante e a demandada no pagamento das custas cíveis do processo, de acordo com o respectivo decaimento, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 523° do Código de Processo Penal com remissão para o artigo 527°, n°s 1 e 2 do Código de Processo Civil.»
4. Inconformada com tal decisão, dela interpôs recurso a demandante/assistente, conforme motivação constante de fls. 628 a 650, a qual finaliza com as seguintes conclusões:
1. O acidente ocorreu no dia 05 de Setembro de 2012, pelas 11H40, na Rua D. Inês de Castro, Amadora, quando o arguido conduzia, de marcha atrás, o veículo de mercadorias com a matrícula X, nessa rua.
2. «É uma carrinha muito grande», diz o arguido.
«Tem 4,5 metros de comprimento.» «... É uma carrinha de 3.500 Quilos.»
3. A Rua D. Inês de Castro é uma recta com dois sentidos de marcha, com uma via para cada sentido de marcha, como consta da douta sentença, dos factos provados e dos documentos juntos.
A Rua D. Inês de Castro é uma rua citadina que fica na Cidade da Amadora. Só tem saída para um dos lados, ou seja, para o lado oposto àquele para onde o arguido seguia marcha atrás, ou seja, parou para depois poder seguir marcha atrás quando o fez.
4. O arguido descreve assim o acidente:
Disse que veio a descer a Rua João Villaret. Aquilo faz tipo um entroncamento e eu fui para a frente para o meu lado esquerdo. Ou seja passou debaixo do arco, entrou na Rua D. Inês de Castro, indo em frente (ou seja atravessando-a) guinando para o seu lado esquerdo da Rua D. Inês de Castro, com o objectivo de ocupar a via por onde se ia dirigir, para a oficina, de marcha atrás.
«...porque a Rua D. Inês de Castro onde ia deixar a carrinha não tem saída e não dava para fazer inversão de marcha com a carrinha lá ...» «Tinha que ir obrigatoriamente de marcha atrás para poder sair de frente.»
Disse que fez marcha atrás mas que não viu a Demandante. Disse que ouviu gritos de pessoas (dois senhores: FF e outro já falecido) a mandá-lo parar, nomeadamente uma testemunha que já faleceu. Que a carrinha é um veículo pesado e o locado da carga é fechado, pelo que teve que olhar pelo retrovisor do lado direito da viatura que ia de marcha atrás. Quando parou a senhora estava na via, junto à roda da frente da viatura do lado direito. Tinha as pernas para a frente e a cabeça junto à roda da frente da viatura do lado direito.
5. Este depoimento prova, sem margem de dúvida, que ao fazer marcha atrás, contra a mão, sem ver a Demandante derrubou-a com a parte traseira da viatura, projectando-a na via quando esta já estava muito próximo do passeio para onde se dirigia, em direcção ao supermercado.
6. Passou por cima dela, causando-lhe os danos constantes dos vários relatórios do Instituto de Medicina Legal, que referem que tais danos têm como causa adequada o acidente de viação dos autos e, em dois desses relatórios se diz, que tais danos provocariam a morte da Demandante se não tivesse sido socorrida imediatamente, adequadamente e eficazmente.
7. Assim, não restam dúvidas, como aliás consta do relatório do Sr. Agente que tomou conta da ocorrência e da douta sentença, bem como da Lei e da Jurisprudência que o arguido violou o Artigo 35° do Código da Estrada, que no seu n°. 1 diz que esta manobra, marcha-atrás, só se pode efectuar depois de verificar que não há perigo para peões ou viaturas; a lei só o permite como manobra auxiliar ou de recurso, devendo efectuar-se lentamente no menor trajecto possível e apenas em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito. (Vide Acórdão da Relação de Coimbra de 26.04.2005).
8. Ora o arguido fez aquela manobra de marcha atrás, percorrendo contra a mão cerca de 10 metros.
Ia de marcha atrás pela via onde só se pode circular em sentido contrário, como consta do croqui e das declarações do arguido). E como consta do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra: «II - O reconhecimento da violação do art°. 35° do CE tem implícito o reconhecimento da violação da regra geral do art° 3°., n°. 2 do CE como princípio orientador daquele.»
9. Do depoimento da Demandante verifica-se que tomou todos os cuidados para atravessar a rua, pois esta tem duas vias e não tem passadeira.
A Demandante pretendia ir ao supermercado, onde habitualmente ia fazer compras, e para isso tinha que atravessar as duas vias da rua. Disse que viu o veículo grande em frente ao arco, parado, mas do outro lado da rua, tomando como referência a sua casa.
10. E disse que chegando ao meio da rua, «fui assim um bocado mais para lá, para o lado do supermercado e depois foi aí quando eu já ia quase a alcançar o processo que eu recebi um grande choque no corpo provocado pelo carro e caí no chão.»
O embate foi fortíssimo, derrubou a Demandante que caiu de costas e ficou com a mão e o braço direito mal tratados a ponto de não poder escrever com a mão direita, ter que aprender a escrever com a mão esquerda e não poder pegar na bengala com essa mão.
11. A questão a dirimir neste recurso face aos documentos existentes no processo, aos depoimentos das testemunhas, aos depoimentos do arguido e da demandante é saber-se em que circunstâncias de lugar foi colhida a demandante e quem teve culpa no acidente.
A douta sentença atribui 50% da culpa do acidente ao arguido e os outros 50% à demandante.
12. Resulta dos depoimentos do arguido e da demandante que a viatura do arguido veio da Rua João Villaret, passou debaixo do arco, entrou na Rua D. Inês de Castro, indo em frente, para o lado esquerdo da Rua D. Inês de Castro. Para aí parar e depois ir de marcha atrás, como foi, para a oficina que fica na extremidade da Rua D. Inês de Castro que não tem saída. Só indo de marcha atrás até à oficina é que podia depois sair de lá de marcha à frente.
13. Disse que não viu em momento algum a demandante a não ser após lhe ter passado com a viatura por cima dela, a viu, com as pernas para frente e a cabeça junto à roda dianteira da viatura do lado direito, na posição constante do croqui elaborado pelo Sr. Agente da PSP que tomou conta do acidente, se deslocou ao local, viu sangue no pavimento e ouviu as testemunhas que indica e que foram ouvidas nos autos e confirmam o acidente, como consta do relatório.
14. No depoimento do arguido há uma ocultação intencional quando diz que quando vem da Rua João Villaret, passou debaixo do arco para entrar na Rua D. Inês de Castro, «não vem carro nenhum, não vêm pessoas nenhumas, eu viro para o meu lado esquerdo, começo a fazer marcha atrás para ir para o fim da Rua D. Inês de Castro.»
Ora, antes de fazer a marcha atrás tinha que necessariamente parar primeiro a viatura, o que realmente fez como se vai demonstrar.
A demandante por sua vez, no seu depoimento, refere que saiu de sua casa para ir às compras ao supermercado.
Para chegar a este supermercado tinha que atravessar a Rua D. Inês de Castro e depois descer umas escadas.
Disse que não vinha nenhum carro. Estava o veículo grande em frente ao arco, parado.
E acrescenta: «Estava em frente ao arco mas do lado de lá da rua.»
15. Importa agora saber qual o itinerário que a demandante fez da sua casa até ser colhida pela viatura.
Saiu de casa e viu onde podia passar entre os carros que estavam estacionados em espinha, mas para o lado do supermercado.
Depois diz: «Eu ia para o supermercado que é um bocado mais ... (longe?)»
«A senhora tem a certeza absoluta que ele estava parado?»
«D.: Paradinho
Chegando ao meio da rua eu comecei a ver o sítio onde podia passar para o lado de lá e fui assim um bocado mais para lá, para o lado do supermercado e depois foi aí quando eu já ia quase a alcançar o passeio que eu recebi um grande choque no corpo. Caí ao chão. Depois eu estava debaixo do carro cheia de dores.
... Depois senti logo as rodas da frente a partirem-me aqui as costelas todas do lado esquerdo e fiquei sem poder falar. E depois aqui passou. Eu ouvi as pessoas a falar, "chama o INEM, chama os bombeiros". E depois olhei assim por cima da minha cabeça e vi a frente do veículo atrás da minha cabeça.»
16. Do depoimento da testemunha presencial, FF (Início da Gravação: 09.03.2017, 11:40:26), transcreve-se o seguinte:
16.1 «- Onde é que o Sr. estava?
T - Estava no passeio em frente aonde se deu o acidente e à casa dela.
- Esse passeio onde o Sr. estava a falar com o seu amigo era no passeio que fica em frente ao prédio onde vive a D. MLS, é isso?
T- Sim, sim.
A minha posição no passeio, enquanto o meu amigo estava mais ou menos na esquina, eu estava de costas para a rua. Tanto que eu nem vi a carrinha ... Ouvi foi gritar e eu quanto me viro vejo a carrinha que estava parada e alguém lá debaixo, quem era? A MLS, fiquei assim um bocado baralhado e fui pelo passeio abaixo com as mãos na cabeça "ai que a MLS morreu, ai que a MLS morreu". Como eu moro mais abaixo um bocadinho, quando volto para trás já a MLS estava de fora debaixo do carro e não vi mais nada. Foi isso.
- O Sr. viu-a debaixo do carro?
T- Vi-a debaixo do carro.»
17. Do depoimento da testemunha presencial, FSR, (Início da Gravação: 09.03.2017, 12:00:37), transcreve-se o seguinte:
17.1. «- Diga lá ao tribunal o que é que o Sr. viu?
T- Quando eu cheguei estava a camioneta a andar para trás, as pessoas todas a gritar "par, pára, pára", a camioneta não parou e passou por cima de uma senhora. Mais tarde é que eu identifiquei quem era, que era a tia de um colega meu.
- Diz que viu a carrinha a passar por cima da senhora. O que quer dizer com isso?
T- os rodados a passarem por cima da senhora. O rodado do lado esquerdo da carrinha a da camioneta.
- A Sr.ª, já estava no chão quando o senhor ouviu?
T- Sim.
- Da parte de trás da carrinha ou da parte da frente?
T - Na parte de trás ainda da carrinha.
- Diz que viu o rodado da parte esquerda?
T - Sim, traseiras a passar por cima.
- Como é que ela depois aparece na parte da frente da carrinha do lado direito?
T - Porque o carro vinha a fazer marcha atrás.
- Ela ficou debaixo da carrinha, foi isso?
T- Sim.
- E a carrinha quando continua a fazer marcha atrás a senhora fica debaixo da carrinha, é isso?
T - A Sr.ª depois aparece na parte da frente da carrinha.
- A carrinha continua a vir para trás e ela fica por baixo da carrinha?
T- Sim.
O que me chamou a atenção, pronto, as pessoas que mandavam "pára, pára, pára" e eu prontos, o que é que se passa, quando olho vejo o rodado prontos a passar por cima da senhora.
Ela ficou à frente do rodado da frente, lado esquerdo e o passeio.
- Foi o rodado do lado do passeio que passou por cima da senhora? T - Não! O rodado de trás e depois a parte da frente.
- Do lado do passeio?
T- Do lado do passeio. O Senhor vinha a fazer marcha atrás, mas ele a fazer marcha atrás não vinha pelo lado direito, vinha era pelo lado esquerdo.»
18. Depoimento do Agente Principal do acidente de viação ocorrido em 05.09.2012.
Que teve conhecimento do acidente via rádio desta PSP da Amadora, cerca das11H45, demorando entre 15/20 minutos a chegar ao local do sinistro. Disse que o peão já se encontrava no interior da ambulância a ser assistido.
O veículo atropelante estava na sua posição final como consta do croqui da participação de acidente. O condutor estava no exterior junto desta.
Que as duas testemunhas que ouviu estavam nas imediações do local onde ocorrera o atropelamento.
Disse que junto ao vértice exterior direito do veículo, no pavimento encontrava-se vestígios de sangue do peão, não sabendo indicar se a viatura terá passado com o rodado por cima desta, apesar de ter obtido essa informação através de uma das testemunhas.
Que o sentido de marcha do peão, foi-lhe indicado por ambas as testemunhas e o sentido de marcha da viatura foi-lhe dito pelo condutor e pelas testemunhas.
Relatório final. Indicou como testemunhas:
●FF
●CL(falecido)
●RPL(polícia) e juntou o croquis elaborado por este.
19. Deste modo, a douta sentença não analisou correctamente a prova produzida, como se alegou.
20. Só por negligência grosseira é que o arguido conduzia de marcha atrás, conduzia contra a mão e conduzia não lentamente como estabelece a lei.
21. 0 arguido, se conduzisse observando as cautelas do preceituado no Art° 35°, Art°. 3, n°. 2 e Art°. 13°., n° 5 do Código da Estrada, não haveria atropelamento.
22. Ter-se-ia apercebido que a Assistente vinha a atravessar a via, à vários metros e estava longe do sítio onde a carrinha estava parada, e ele, condutor, não podia conduzir com alguma velocidade, marcha atrás e contra a mão.
23. Deste modo, na questão quanto à culpa, salvo o devido respeito, face à prova produzida, à legislação citada do Código da Estrada, da jurisprudência do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (datado de 26.04.2005 - Proc. n° 329/05), na parte aplicável, não pode de modo algum ser atribuída qualquer culpa do acidente à Assistente.
24. A douta sentença viola assim a legislação e a jurisprudência acima referenciada, no que concerne à culpa.
25. A Assistente não se pode conformar com o montante fixado a título de indemnização, não só pelo que se acaba de alegar quanto à culpa, mas também porque não tomou em consideração os gravíssimos danos que o acidente causou na Assistente, por culpa exclusiva do arguido, e que esses danos, como consta dos relatórios médicos do Instituto de Medicina Legal juntos aos autos, a acompanharão no resto da sua vida.
26. Assim, A douta sentença viola o art°. 483°. do C. Civil, pois quem, com grave culpa, violou ilicitamente o direito da Assistente foi o arguido; há nexo de causalidade entre o acidente e os danos causados e o acto foi ilícito violando grosseiramente os artigos citados do Código da Estrada (Vide Código Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, Volume I, Pág. 471).
DO DIREITO
Relativamente à questão da imputada culpa à Assistente e da culpa do arguido, há a dizer o seguinte:
Do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26/04/2005 - Proc. n° 329/05, que se dá por integralmente reproduzido, consta o seguinte sumário:
«I - A marcha-atrás representa um perigo acrescido na circulação rodoviária, de tal forma que a lei só a permite como manobra auxiliar ou de recurso, devendo efectuar-se lentamente, no menor trajecto possível e apenas em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito.
- O reconhecimento da violação do art° 35° do CE. tem implícito o reconhecimento da violação da regra geral do art° 3°, n° 2, do C. E., como princípio geral orientador daquele.
- Em caso de concurso de culpas entre um condutor que violou o art° 35° do C. E., e um peão que violou os art°s 99°, n° 1, e 101°, n° 4, do mesmo código, ponderando a medida da responsabilidade de cada um desses intervenientes no acidente, afigura-se ser de repartir o grau de culpas na proporção de 80% para o condutor e 20% para o peão.
IV- Tendo o sinistrado ficado com uma IPP de 15%, o que implica um maior esforço em todas as tarefas que levar a cabo, incluindo as tarefas laborais, é indiscutível que se verifica um dano patrimonial futuro, passível de ser indemnizado.»
E no número 1 relativo à QUESTÃO / o problema da culpa, delibera o seguinte:
«Porém, a respectiva fixação não tem por base apenas a "gravidade das culpas", mas também as " consequências que dela resultarem ", ou seja, é necessário determinar em que medida as culpas efectivas contribuíram para a gravidade, maior ou menor dos danos produzidos (cf., por ex., Ac do STJ de 25/1/83, BMJ 323, pág.385, de 9/1/86, BMJ 353, pág.411).
Pois bem, na ponderação global da dinâmica do acidente, patenteia-se que a gravidade da culpa é manifestamente superior para o condutor do veículo automóvel, já que a sua actuação é passível de um juízo de censura ético-jurídico mais intenso, e, por outro lado, os danos produzidos por um embate são tanto mais graves quanto maior é o impacto resultante da maior potencialidade danosa do veículo automóvel no confronto com o peão.
Neste contexto, consideramos mais adequada a repartição das culpas na proporção de 80% para o condutor do veículo e 20% para a Autora.»
Nós defendemos, face ao alegado, que a Assistente não tem culpa alguma pelo que não lhe pode ser imputada qualquer culpa.
E assim, a douta sentença recorrida, deve ser substituída pela absolvição da Assistente, decretando a culpa exclusiva do Arguido, com as consequências legais.
E quanto à indemnização fixada, a recorrente também se não conforma com a mesma e pede a V. Exas. que, analisado este recurso (por cuja extensão a autora pede compreensão a V. Exas.), a indemnização constante da douta sentença seja substituída pela indemnização no montante global de 131,420,00 €, que se peticiona neste recurso.
5. A este recurso não foi apresentada qualquer resposta pela demandada, nem pelo Ministério Público.
4. Neste Tribunal da Relação, após vista ao Ministério Público nos termos do artigo 416.º, n.º1 do CPP, procedeu-se a exame preliminar no qual se determinou a remessa dos autos à conferência, após vistos legais, a fim de o recurso aí ser julgado.
II – Fundamentação
1. Questões a decidir:
Nos termos do art.º 412.º, n.º 1, do C.P.P. a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
É pacífico o entendimento de que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso ou das nulidades que não devam considerar-se sanadas, o âmbito dos recursos é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.
Face às conclusões apresentadas pela recorrente, que condensam a razão da sua impugnação, a questão a apreciar é limitada à matéria civil, designadamente à questão da culpa e ao montante da indemnização civil daí decorrente.
2. Apreciação
2. 1. Da questão da culpa no acidente
O tribunal da 1ª instância deu como provados e não provados os seguintes factos (transcrição):
«2.1. Matéria de facto provada
2.1.1. No dia 5 de Setembro de 2012, pelas llh40m, o arguido conduzia o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula X na Rua Dona Inês de Castro, Amadora, e imobilizou o mesmo.
2.1.2. A referida rua é uma recta com dois sentidos de marcha, com uma via para cada sentido de marcha.
2.1.3. No mesmo circunstancialismo de tempo e lugar, o peão MLS, iniciou a travessia a pé da via, do lado esquerdo para o lado direito, atento o sentido de marcha do veículo conduzido pelo arguido, passando pela retaguarda do mesmo.
2.1.4. No momento que o peão se encontrava a atravessar a via e já junto ao passeio mais distante de onde iniciou a travessia, o arguido iniciou a realização da manobra de marcha atrás, na direcção do peão.
2.1.5. Como o arguido não viu o peão MLS, embateu com a traseira do veículo que conduzia nesta, provocando a sua queda no solo e ficando com os membros inferiores debaixo do veículo.
2.1.6. Na altura, estava bom tempo e o piso encontrava-se seco.
2.1.7. No local não existe passadeira.
2.1.8. O atropelamento causou em MLS deformação do terço médio e distal do antebraço posterior do terço médio e distal do antebraço direito e da mão direita, com cicatriz plana, violácea, irregular, de toda a face posterior do terço médio e distal do antebraço direito e do dorso da mão direita, reliquat de hematoma, acastanhado, como dedada, da face anterior do terço médio do braço esquerdo, hematoma acastanhado, como palma de mão de criança, da face externa do cotovelo esquerdo, ligeira deformação arroxeada, como dedada, da face posteroexterna da base do 1° dedo da mão esquerda, com dificuldade na oponência aos outros dedos e com diminuição da força muscular, edema do joelho direito, cicatriz avermelhada, hipertrófica, com 3 cm de comprimento por 0,5 cm de largura, da face externa do terço distal da coxa direita, cicatriz extensa, ligeiramente retráctil, com áreas de descamação, rosada, com inicio da face externa do joelho direito e termo no terço médio da face anteroexterna da perna direita, com 20 cm de comprimento por l0 cm de largura, edema da região maleolar externa esquerda, cicatriz violácea, ligeiramente retráctil, irregular, com 9 cm de comprimento por 5 cm de largura da face anteroexterna do terço distal da perna esquerda, que refere a ferida extensa, cicatriz violácea, retráctil, com áreas de descamação, irregular, com 8 cm por 8 cm da face anterior do terço proximal da perna direita, que refere a ferida complicada que necessitou de enxerto de pele, cicatriz plana, acastanhada, com forma quadrangular, com 4 cm de lado do terço médio da face anterointerna da perna direita, que refere a zona dadora de pele para enxerto para a cicatriz anteriormente descrita, cicatriz avermelhada hipertrófica, arciforme de concavidade superior, com inicio na face posterointerna do joelho direito e termo na face anterior do terço proximal da perna direita, com 7 cm de comprimento por 0,5 cm de largura, edema de todo o pé direito, que resultaram em 231 dias de doença.
2.1.9. O arguido sabia que devia realizar uma condução mais atenta e cuidada, nomeadamente sabia que tinha de se certificar que não estava ninguém a atravessar a estrada quando efectuava a manobra de marcha atrás.
2.1.10. O arguido sabia que não podia realizar a manobra de marcha atrás sem se certificar que nenhum obstáculo ou pessoa circulava na via. Contudo, assim, não actuou quando podia e devia ter previsto que o seu descuido e desatenção poderiam provocar um acidente, conforme aconteceu.
2.1.11. MLS sabia que para atravessar a via e deparando-se com o veículo do arguido imobilizado na mesma, deveria ter passado pela frente do X, ao invés da retaguarda, de modo a dar a conhecer a sua presença ao arguido. Contudo, assim, não actuou, quando podia e devia ter previsto que o seu descuido poderia provocar um acidente, conforme aconteceu.
2.1.12. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era criminalmente punida.
2.1.13. Antes do acidente a assistente já sofria de coxoartrose à direita, acidente com traumatismo cranioencefálico em 1977, possuindo cicatriz operatória da face interna da perna esquerda.
2.1.14. Na data do acidente a assistente tinha 70 anos e estava reformada.
2.1.15. Após o acidente a assistente foi transportada para o Hospital São Francisco Xavier onde realizou os seguintes exames: radiografias, TAC-CE, TAC tórax, abdomes e pélvis.
2.1.16. Foi internada na UCIP do Hospital São Francisco Xavier onde permaneceu até 12.09.12.
2.1.17. A 12.09.2012 foi transferida para o Hospital Doutor Fernando Fonseca EPE onde foi observada e operada por Oftalmologia, Cirurgia Plástica e Ortopedia, após o que fez tratamentos de reabilitação.
2.1.18. Teve alta do Hospital Doutor Fernando Fonseca EPE a 21.12.2012.
2.1.19. Foi avaliada em 04.01.2013 nos serviços clínicos da Companhia de Seguros onde passou a ser seguida até ter alta em 24.04.2013.
2.1.20. Após a ocorrência do acidente a assistente teve muitas dores e ficou com vários hematomas no corpo.
2.1.21. Ainda hoje a assistente tem dores em todo o corpo, nomeadamente no tórax, membros superiores, inferiores e bacia.
2.1.22. A assistente sente desgosto por ver a sua saúde e mobilidade reduzidas.
2.1.23. A assistente sente desgosto por ter o seu corpo desfigurado pelas cicatrizes derivadas do acidente.
2.1.24. A assistente necessita de 2 horas diárias de ajuda de terceiros para realizar as tarefas do dia-a-dia.
2.1.25. A assistente toma diariamente medicamentos para as dores, designadamente maxilase, benuron e nolotil.
2.1.26. A assistente gasta cerca de €15 por mês em medicamentos.
2.1.27. Devido ao acidente a assistente foi a uma consulta de psicólogo onde gastou €70.
2.1.2 8. Foi fixado em 108 dias o período de défice funcional temporário total.
2.1.29. Foi fixado em 123 dias o período de défice temporário parcial.
2.1.30. Foi fixado em 5/7 o quantum doloris.
2.1.31. Foi fixado em 22 pontos o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica.
2.1.32. Foi fixado em 5/7 o dano estético permanente.
2.1.33. A assistente vai necessitar de ajudas medicamentosas e de terceira pessoa para além de acompanhamento médico.
2.1.34. A assistente aufere duas reformas no valor total de €600,74 por mês.
2.1.35. Mora em casa própria.
2.1.36. Não tem carro.
2.1.37. O arguido é solteiro, tem um filho e mora com a companheira.
2.1.38. Faz biscates onde ganha cerca de €350 por mês e a sua companheira aufere €430 mensais.
2.1.39. Mora em casa da mãe.
2.1.40. Não tem carro nem mota.
2.1.41. Tem o 9° ano de escolaridade.
2.1.42. Não tem antecedentes criminais.
2.2.Matéria de facto não provada
Não existem factos não provados.»
O tribunal recorrido motivou a sua decisão quanto à matéria de facto nos seguintes termos: (transcrição)
«A convicção deste tribunal sobre a matéria de facto provada formou-se com base na avaliação e ponderação de todos os meios de prova produzidos ou analisados em audiência de julgamento, nomeadamente:
- Nas declarações do arguido que descreveu as suas condições sócio-económicas. Quanto aos factos o arguido admitiu que na altura conduzia aquela carrinha, tendo efectuado marcha atrás.
Disse que antes de realizar a manobra olhou pelos espelhos e não viu ninguém. Afirmou que parou logo que ouviu um senhor a gritar e a correr.
-  Nas declarações da assistente a qual descreveu de forma clara e linear o desenrolar dos factos, especificando o modo como os mesmos ocorreram. Assim referiu expressamente e de forma clara e convicta que antes de atravessar a estrada olhou e viu que não vinha nenhum carro a circular, motivo porque iniciou a travessia.
No entanto admitiu que antes de iniciar a travessia a carrinha do arguido já estava parada mais à frente.
Disse que quando já estava perto do passeio do outro lado da estrada foi embatida pela carrinha do arguido e caiu.
Para além disso também relatou de forma circunstanciada o que sucedeu após o embate e quais os tratamentos e sequelas que sofreu devido a este.
Por fim descreveu as lesões que padeceu e padece.
- No depoimento da testemunha Fernando Ferreira, que se encontrava no local e disse
ter visto parte do acidente.
Assim referiu que estava no passeio de frente, no entanto não viu o veículo, mas ouviu a assistente gritar, sendo que, quando olha, aquela já estava debaixo da carrinha que parou.
- No depoimento da testemunha Rui Lourenço, agente da PSP, que se deslocou ao local após a ocorrência do acidente e que descreveu o sítio e o modo como aquele se encontrava especificando quais os vestígios existentes.
- No depoimento da testemunha FSR, que se encontrava no local e disse ter visto parte do acidente.
Assim, esta testemunha disse ter visto o arguido a fazer marcha atrás e ouvido as pessoas a gritar e vê os rodados a passar por cima da assistente.
- No depoimento da testemunha V.S. , sobrinho da assistente.
Assim esta testemunha referiu que quando chegou viu a sua tia no chão em frente à roda da frente direita da carrinha.
Disse que a tia recebeu logo ali tratamentos antes de ir para o hospital.
Referiu que a tia esteve uns dias no Hospital São Francisco Xavier e depois foi transferida para o Hospital da Amadora onde ficou até perto do Natal, altura em que foi para casa.
Informou que mora com a sua tia e que trata da mesma porque ela não consegue fazer as suas tarefas diárias sozinha.
- No depoimento da testemunha MCR, a qual referiu ter tomado conta da assistente depois de esta ter saído do hospital.
Assim referiu que logo a seguir e até Abril de 2013 as despesas foram asseguradas pela companhia de seguros.
Depois de Abril de 2013 até Julho de 2013 passou a fazer cerca de 2 a 4 horas diárias que distribuía pelo dia de modo a ajudar a assistente nas suas tarefas diárias.
Para além disso esclareceu quais as dificuldades sentidas pela assistente naquela altura. No depoimento da testemunha DS, cirurgião ortopedista e perito médico da companhia de seguros, o qual explicou as divergências existentes entre o seu relatório e o do IML, e procurou justificar as mesmas.
- Nos relatórios periciais fls. 49 a 52, 160 a 163, 185, 186, 209, 228, 325 a 327, 436 a ' 442, 473 e 474.
- Na participação de acidente de fls.6 a 9.
- Relatório de fls. 33 e 34.
- Nos documentos de fls. 18, 56 a 135, 138, 139,171, 174 a 181, 199 a 206, 209, 219, 220, 225, 363.
- No teor de fls.562 de onde resulta que no local não existe qualquer passadeira.
- No Certificado de Registo Criminal, junto aos autos, no que concerne aos antecedentes criminais do arguido.
Assim, face à prova produzida em sede de audiência de julgamento mais a prova documental e pericial junta aos autos, conjugada com as regras de experiência, e no que à dinâmica do acidente concerne, e em particular quanto à culpa, não nos restam dúvidas de que qualquer dos intervenientes não prestou a devida atenção e cuidado na sua actuação, quando podiam e deviam ter actuado de outro modo:
- o arguido porque sabia que devia realizar uma condução mais atenta e cuidada, nomeadamente sabia que tinha de se certificar que não estava ninguém a atravessar a estrada quando efectuava a manobra de marcha atrás. Sendo que não obstante saber que não podia realizar a manobra de marcha atrás sem se certificar que nenhum obstáculo ou pessoa circulava na via, assim, não actuou, quando podia e devia ter previsto que o seu descuido e desatenção poderiam provocar um acidente, conforme aconteceu.
- a assistente porque sabia que para atravessar a via e deparando-se com o veículo do arguido imobilizado na mesma, deveria ter passado pela frente do XO, ao invés da retaguarda, de modo a dar a conhecer a sua presença ao arguido, contudo, assim, não actuou, quando podia e devia ter previsto que o seu descuido poderia provocar um acidente, conforme aconteceu.
Ou seja, qualquer um dos intervenientes não avaliou correctamente a situação, ambos dirigindo-se para o ponto de colisão, tendo assim contribuindo para o embate e suas consequências.
Isto porque o arguido sabia que tendo em conta o veículo que tripulava tinha um dever acrescido de cuidado, dever esse que não cumpriu.
A assistente porque quando iniciou a travessia já tinha visto a carrinha do arguido parada, pelo que, como é óbvio, de modo a possibilitar a sua visibilidade deveria ter passado pela frente do mesmo.
Ou seja, face à prova produzida e face às regras de experiência, entende o Tribunal que o embate não teria ocorrido se o arguido tivesse tido mais atenção antes de fazer a marcha atrás. Bem como não teria ocorrido se a vítima tivesse atravessado a estrada passando à frente da carrinha do arguido ao invés de passar por trás da mesma.
Quanto às lesões e sequelas sofridas pela assistente devido ao acidente o tribunal baseou-se nas suas declarações bem como nos vários relatórios periciais e elementos médicos juntos aos autos.
Quanto à discrepância existente no relatório pericial do IML e o da seguradora, o tribunal valorou o do IML porque o mesmo se apresentou mais objectivo e descreveu e justificou a atribuição de tal valor, o que convenceu o Tribunal quanto ao mesmo.
Em relação ao facto descrito em 2.1.24. o Tribunal baseou-se no depoimento das testemunhas V. Silva e Maria Russo.
Para além disso resultou que desde a data em que Maria Russo tomou conta da assistente esta já tem mais autonomia, motivo porque se entendeu que duas horas diárias seriam suficientes para cuidar daquela.
Já quanto ao facto 2.1.26. o Tribunal baseou-se nas regras de experiência e no teor das facturas juntas nos autos a fls. 203 e 204.
*
Conhecendo o Tribunal da Relação de facto e de direito (art.º 428º do CPP) o recurso pode ter como fundamento a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, devendo, nesse caso, o recorrente dar cumprimento ao disposto no art.º 412º, nº3 do CPP, isto é, tem de indicar, especificamente: os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e as provas que devem ser renovadas, devendo estas duas últimas especificações, quando as provas tenham sido gravadas, fazer-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º2 do art.º 364º e ser feita a indicação concretamente das passagens em que se funda a impugnação (nº4 do art.º 412º).
Se assim o fizer, poderá o tribunal modificar a decisão sobre a matéria de facto nos termos do art.º 431º, al. b) do CPP.
A propósito da culpa do acidente a recorrente faz apelo à prova produzida em julgamento, transcrevendo passagens das declarações do arguido e da demandante  e dos depoimentos de três testemunhas, sendo um deles o agente da PSP que esteve no local após o acidente. Porém, não o faz para impugnar qualquer facto concreto que o tribunal tenha dado como provado mas antes para demonstrar que o tribunal recorrido deveria ter concluído em sentido diverso daquele que concluiu quanto à atribuição de 50% da culpa do acidente à recorrente.
Poderia considerar-se que a recorrente está a impugnar o ponto 2.1.25 da matéria de facto provada em que o tribunal recorrido considerou:
“MLS sabia que para atravessar a via e deparando-se com o veículo do arguido imobilizado na mesma, deveria ter passado pela frente do XO, ao invés da retaguarda, de modo a dar a conhecer a sua presença ao arguido. Contudo, assim, não actuou, quando podia e devia ter previsto que o seu descuido poderia provocar um acidente, conforme aconteceu”
Pois é com base nesse ponto que o tribunal conclui quanto à questão da culpa da demandante na produção do acidente.
Porém, aquele ponto, que não constava sequer da acusação e foi aditado em sede de julgamento como uma alteração não substancial dos factos, nada tem de factual sendo antes conclusões e considerações jurídicas que não encontram fundamento na fundamentação de facto, nos factos provados quanto à dinâmica do acidente, nem na lei.
Com efeito, não existe qualquer preceito legal que imponha que a travessia dos peões da faixa de rodagem, perante uma viatura que nela está parada, se faça pela frente da viatura.
O que o Código da Estrada prescreve no seu artigo 99º, n.º2, al. a) é que:
«os peões podem transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, quando efectuam o seu atravessamento»
E no seu artigo 101º que:
«1 – Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente.
2 - O atravessamento da faixa de rodagem deve fazer-se o mais rapidamente possível.
3 – Os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem.
4 - Os peões não devem parar na faixa de rodagem ou utilizar os passeios e as bermas de modo a prejudicar ou perturbar o trânsito.»
Quanto à forma como o acidente se deu, o que resulta dos factos provados é que: o arguido estava imobilizado com o veículo ligeiro de mercadorias na Rua Dona Inês de Castro, Amadora, (facto 2.1.1), quando o peão MLS iniciou a travessia a pé da via, do lado esquerdo para o lado direito, atento o sentido de marcha do veículo, passando pela retaguarda do mesmo (facto 2.1.3). Já quando o peão se encontrava junto ao passeio mais distante de onde iniciou a travessia, ou seja quase a terminar a travessia, o arguido iniciou a realização da manobra de marcha atrás (facto 2.1.4) e, como não viu o peão, embateu com a traseira do veículo que conduzia naquele, provocando a sua queda no solo e ficando o peão com os membros inferiores debaixo do veículo (facto 2.1.5).
Não existindo no local passadeira para fazer o atravessamento da via (facto 2.1.7) e estando o veiculo imobilizado, porque razão se impunha que o peão não atravessasse a faixa de rodagem por detrás do veículo, sendo certo que atento o sentido de marcha do mesmo, o previsível seria que este, quando iniciasse a circulação o fizesse para a frente no sentido da via em que se encontrava imobilizado e não para trás?
Que regra estradal afinal violou o peão, se o veículo não estava em circulação quando aquele iniciou a travessia da faixa de rodagem, mas antes parado na faixa de rodagem num sentido e direcção contrários àquele em que o peão atravessou.? Quando até se afirma, em sede de fundamentação de facto, que a recorrente (peão) afirmou que, antes de iniciar a travessia a carrinha do arguido já estava parada mais à frente, não era sequer exigível ao peão que, perante o veículo imobilizado do lado de lá da estrada, mais à frente do local onde aquele pretendia atravessar, este tivesse de se desviar para ir atravessar à frente do veículo.
Há pois que considerar, sem necessidade de recurso à prova gravada, como não escritas as considerações jurídicas infundamentadas que o tribunal consignou como facto provado sob o ponto 2.1.25.
Assim, tendo em conta o que resulta dos factos provados quanto à dinâmica do acidente, não pode deixar de se concluir, tal como a recorrente, pela culpa exclusiva do mesmo, por parte do condutor do veículo de mercadorias conduzido pelo arguido, que iniciou a manobra de marcha atrás sem o dever de cuidado que lhe era exigido, designadamente sem atentar que o podia fazer no local e que dessa manobra não resultaria perigo para os utentes da via, ou para o trânsito, em violação do disposto no artigo 35.º do C. Estrada.
2.2. Dos valores da indemnização
O tribunal recorrido fixou a indemnização a título de danos patrimoniais no valor total de €21.420, aqui já incluindo os danos futuros, decorrentes das despesas com a assistência à demandante; em €10.000,00 a indemnização pelos danos não patrimoniais; e em 10.000,00 a indemnização pelo dano biológico, em função da culpa da demandante no acidente que  fixou em 50%. Tem de se considerar, pois, que o valor da indemnização seria o dobro dos valores fixados pelo tribunal recorrido se tivesse atribuído a culpa exclusiva do acidente ao condutor.
A demandada não interpôs recurso da decisão, não pondo, pois, em causa os valores atribuídos a título de indemnização, nem os danos sofridos pela demandante em consequência do acidente.
No recurso que interpôs, a recorrente apenas aduz, a esse propósito (conclusão 25), que o tribunal recorrido não tomou em consideração os gravíssimos danos que o acidente causou na Assistente, por culpa exclusiva do arguido, e que esses danos, como consta dos relatórios médicos do Instituto de Medicina Legal juntos aos autos, a acompanharão no resto da sua vida, o que não tem qualquer fundamento pois o tribunal ponderou, em sede de direto, todos os danos sofridos pela lesada.
Estando em causa danos, sem dúvida, merecedores da tutela do direito, não podendo este tribunal alterar o decidido quanto aos mesmos, porque não impugnado o seu quantum nem o seu conteúdo, em função do ora decidido quanto à culpa do acidente ser de atribuir em exclusivo ao condutor da viatura, cuja responsabilidade civil pelos danos resultantes da sua circulação estava transferida para a demandada, há que fixar em dobro o valor das várias parcelas da indemnização atribuída e, consequentemente, fixar o valor global da indemnização em €82.840,00 (oitenta e dois mil, oitocentos e quarenta euros).
Uma vez que, como resulta da decisão recorrida, os valores atribuídos a título de indemnização por facto ilícito são valores actualizados, sobre os mesmos só há juros de mora, a partir da presente decisão e não a partir da citação (cf. Ac. do STJ de fixação de jurisprudência n.º4/2002, de 9/05/2002, DR, I Série - A, de 27/06/2002).
III – Dispositivo
Pelo exposto acordam os Juízes na 5ª Secção deste Tribunal da Relação em:
1. Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela demandante civil e, em consequência, declarando o arguido como único e exclusivo culpado pelo acidente que vitimou aquela, condenar a recorrida Companhia de Seguros K, S.A., a pagar à recorrente a título de indemnização por todos os danos sofridos em consequência de tal acidente, o valor global de €82.840,00 (oitenta e dois mil, oitocentos e quarenta euros), acrescido de juros de mora, à taxa legal, a partir da presente decisão, correspondente aos seguintes valores parcelares:
a) €42.840 (quarenta e dois mil, oitocentos e quarenta euros) a título de danos patrimoniais;
b) €20.000 (vinte mil euros) a título de danos não patrimoniais;
c) €20.000 (vinte mil euros) a título de dano biológico;
2. Condenar a recorrente e a recorrida, nas custas do recurso na proporção do respectivo decaimento, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (art.º 523.º do CPP).

Lisboa, 17 de Abril de 2018
(processado e revisto pela relatora)

Maria José Costa Machado

Carlos Manuel Espírito Santo