Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2075/18.7T8LSB.L1-7
Relator: DIOGO RAVARA
Descritores: ASSOCIAÇÃO DE EMPREGADORES
ASSOCIADOS
LEGITIMIDADE INDIRECTA
REQUISITOS
ACÇÃO POPULAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I-Numa ação intentada por uma associação de empregadores, em que a mesma alega que as rés praticaram ilicitamente atividade concorrente com a das empresas suas associadas, fazendo-as perder clientela e reflexamente, fazendo com que a autora tenha perdido associadas e prejuízo na sua imagem enquanto defensora dos interesses das suas associadas, é de considerar que a autora dispõe de legitimidade direta relativamente aos danos que ela mesma sofreu em consequência dos comportamentos imputados às rés (art. 30º do CPC).

II-As associações de empregadores dispõem de legitimidade indireta para intentarem ações em nome dos seus associados, nos termos previstos no art. 443º do Código do Trabalho, desde que o façam nos termos previstos no art. 5º do Código de Processo do Trabalho.

III-Não se encontrando preenchidos os requisitos procedimentais consagrados no art. 5º do CPT, não pode considerar-se verificada a legitimidade indireta prevista no art. 443º do CT.

IV-A ilegitimidade indireta consagrada no art. 31º do CPC decorre do exercício do direito de ação popular, previsto no art. 52º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa, e regulamentado na Lei nº 83/95, de 31-08.

V-Sendo o objeto das atribuições da autora totalmente estranho às matérias previstas nos arts. 31º do CPC, 52º, nº 3 da CRP, é de concluir que a autora carece de legitimidade no tocante à pretensão de ressarcimento de danos sofridos pelas suas associadas em consequência dos atos imputados às rés.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


1.-Relatório

ANTRAL - Associação nacional dos transportadores rodoviários em automóveis ligeiros[1], intentou a presente ação declarativa com processo comum contra Uber Technologies Inc, com sede nos EUA, Uber BV, com sede nos Países Baixos, Uber Portugal, Lda[2], deduzindo os seguintes pedidos:

“Nestes termos e nos melhores de direito que V. Ex.ª doutamente suprirá, citadas as RR. para contestar, querendo, deve ser declarado que a atividade da R. e suas Associadas é ilegal, e que só poderá desenvolver-se em Portugal de acordo com a lei em vigor, devendo a R. e suas Associadas ser condenadas a parar de imediato com a referida atividade ilegal em Portugal, desligando do ar a APP que a permite, abstendo-se, quer seja por si quer seja por intermédio de qualquer outra empresa, de cadastrar motoristas, carros e utilizadores, e efetuar quaisquer parcerias privadas ou públicas para utilização da ferramenta em causa.

A indemnizar a. nos danos patrimoniais a liquidar com a realização de peritagem e em execução de sentença.”

Para tanto alegou em síntese, que é uma associação empresarial que agrega empresas de transporte rodoviário de passageiros em automóveis ligeiros, e que as rés exercem ilegalmente aquela atividade em Portugal, o que lhe causa, a si e às empresas suas associadas, prejuízos patrimoniais e danos não patrimoniais.

Citadas as rés as mesmas contestaram, invocando as exceções incompetência em razão da matéria; ineptidão da petição inicial, falta de personalidade judiciária da autora, ilegitimidade ativa, e ilegitimidade passiva das rés Uber INC e Uber PT para os termos desta ação, e impugnando substancialmente a factualidade invocada na petição inicial.

Seguidamente, a Mmª Juíza a quo proferiu despacho convidando a autora a pronunciar-se sobre a matéria das exceções, o que esta veio fazer, em novo articulado no qual pugnou pela improcedência das exceções de incompetência absoluta e ineptidão da petição inicial.

Realizou-se então audiência prévia, no decurso da qual a Mmª Juíza a quo informou as partes de que ponderava pronunciar-se pela inutilidade superveniente da lide quanto ao “pedido formulado em 1º lugar”, em consequência da ”entrada em vigor da Lei nº 45/2018 de 10 de agosto”, e que “quanto ao pedido de indemnização por danos patrimoniais, entende-se ser inepta a petição, designadamente por falta de causa de pedir”.

Na mesma ocasião, a Mmª Juíza a quo convidou as partes a pronunciar-se sobre as mencionadas questões, tendo os Ilustres Mandatários requerido a concessão de prazo para se pronunciarem por escrito, pretensão que foi deferida.

Na sequência, a autora pugnou pela improcedência da exceção de ineptidão da petição inicial (nada dizendo quanto à inutilidade superveniente da lide); ao passo que as rés pugnaram pela extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, “quanto ao primeiro pedido”, ou, em alternativa, pela sua manifesta improcedência; e no tocante ao segundo pedido, pela ineptidão da petição inicial e, consequentemente, pela sua absolvição da instância.

Seguidamente foi proferido despacho saneador, julgado extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide no tocante aos pedidos de declaração da ilegalidade da atividade das rés e consequente proibição da mesma atividade, e absolvendo as rés da instância, com fundamento na nulidade de todo o processado decorrente de ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir, no tocante ao pedido de condenação das rés a pagar-lhe uma indemnização.

Inconformada com o referido despacho, na parte em que absolveu as rés da instância relativa ao pedido de condenação das mesmas no pagamento de uma indemnização à autora, veio a autora interpor recurso para este Tribunal.

Tal recurso foi decidido por acórdão de 15-12-2020, com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação procedente, e, em consequência revogar o despacho saneador recorrido, na parte em que absolveu as rés da instância relativamente ao pedido de condenação das mesmas a pagar à autora uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais; o qual deverá ser substituído por outro em que, considerando a improcedência da exceção de ineptidão da petição inicial, aprecie as exceções de falta de personalidade judiciária e ilegitimidade ativa e, caso conclua pela improcedência destas, profira despacho de aperfeiçoamento, nos termos atrás expostos e nos demais que entender convenientes.”

Baixando os autos à 1ª instância, o Tribunal a quo veio a proferir despacho, julgando improcedente a exceção de falta de personalidade judiciária, e procedente a exceção de ilegitimidade ativa, absolvendo as rés da instância.

Novamente inconformada, a autora interpôs o presente recurso de apelação, cuja motivação sintetizou nas seguintes conclusões:
a)-Considerar que a presente ação visa apenas a defesa dos Associados, é redutor e não corresponde à verdade;
b)-De facto, a A. pretende, como A., ser ressarcida de danos a ela própria causados, enquanto pessoa jurídica, pelas RR., como se explica nos artigos 5°, 153°, 166°, 168°, 175°, e pedido constantes da petição inicial;
c)-Inexiste qualquer impedimento a que a A., tendo personalidade e capacidade jurídica e judiciária, possa estar, por si, em juízo, que a impeça de requerer ativamente, para si, o peticionado;
d)-No que toca à proteção dos interesses do consumo de bens e serviços (considerando a mera enumeração do artigo 31° do CPC), é evidente que a A. atua para proteção dos direitos do mercado universal de transportes de passageiros em táxi e dos utilizadores;
e)-A compressão que é feita na recondução do pedido apenas aos interesses dos associados, e seguindo a tese da douta decisão, deveria permitir ao universo dos mesmos o direito de se autoexcluírem, ou de legitimarem a substituição, se assim for a sua vontade;
f)-A intervenção das RR. afrontou não só o Estado Português, como os Tribunais, e, também, a ANTRAL, que foi vítima de maledicência e de engodo, para potenciar publicidade e intrusão no mercado em prejuízo dos utilizadores, consumidores; 
g)-A ANTRAL é, pois, parte no processo e não apenas substituta dos Associados;
h)-Como foi parte na Providência Cautelar prévia a esta ação, (processo n.° 7730/15.OT8LSB, de onde emana a sanção pecuniária compulsória incumprida pelas RR., julgada até ao Supremo e objeto da mesma questão julgada improcedente: “Como diz superiormente o Tribunal da Relação de Lisboa, apreciando a mesma questão e na senda da defesa dos interesses dos Associados, estatutariamente consagrada, “Não temos pois dúvidas que a Apelada Antral pode e deve exigir que a legislação que aqui é chamada à colação, mormente, o Decreto-Lei n.° 251/98, de 11 -VIII, demais legislação que o alterou, e, também, lhe é suplementar, cujo objeto é o licenciamento da atividade de transporte rodoviário, posto que se insere nos direitos que constituem os seus poderes de enquadramento estatutário.”);
i)-Termos em que não se verifica a decidida exceção de ilegitimidade, pelo que foram incorretamente aplicados os Art.°s 278°, n.° 1, alínea d), 576°, n.°s 1 e 2 e 577°, alínea e), do CPC, porquanto não estamos perante uma questão de falta de legitimidade da A., e
j)-Quanto aos Associados, a entender-se que a legitimidade da A. carece da não oposição daqueles, deveria ter-se dado aos mesmos a possibilidade de se autoexcluírem, caso contrário, estão manifestamente abrangidos e legitimada a ANTRAL a agir, por força dos Art.°s 30° e 31°, do CPC, e dos Estatutos da ANTRAL;
k)-Decidindo como decidiu a douta decisão recorrida, violou, entre outros, os Art.°s 30°, 31°, 278°, n.° 1, alínea d), 576°, n.°s 1 e 2 e 577°, alínea e), todos do CPC;
l)-Devendo ser substituída por outra que a revogue e ordene o prosseguimento dos autos.

As rés e ora recorridas apresentaram contra-alegações, cuja motivação resumiram nas seguintes conclusões:


A.-O presente recurso tem por objecto o Despacho proferido a 05.05.2022 pelo Tribunal a quo, que absolveu as Recorridas da instância relativamente ao pedido indemnizatório formulado pela Recorrente, em virtude da procedência da excepção dilatória de ilegitimidade da Recorrente, nos termos da alínea d) do n.° 1 do artigo 278.° do CPC;
B.-A Recorrente não tem legitimidade enquanto parte com um interesse próprio, nos termos do artigo 30.°, n.° 1 do CPC, uma vez que não está em causa nos autos um interesse da Recorrente, mas tão só os interesses patrimoniais dos seus associados, os verdadeiros sujeitos da relação material controvertida em análise;
C.-Por isto, a Recorrente está a agir em juízo em nome próprio na defesa de interesses alheios, o que só seria admissível caso agisse ao abrigo da substituição processual;
D.-Contudo, a Recorrente não age ao abrigo da substituição processual, uma vez que (i)- não existe nenhuma norma legal expressa que a habilite para tal, uma vez que os artigos 443.°, n.° 1, alínea d) do CT e 5.°, n.° 1 do CPT apenas lhe conferem legitimidade em acções referentes a litígios que respeitam a questões relativas ao estatuto das relações de trabalho; (ii)- não está em causa qualquer interesse colectivo dos associados da Recorrente, mas sim vários interesses patrimoniais individuais e diferenciados dos mesmos; e (iii)- os próprios Estatutos da Recorrente não preveem expressamente a possibilidade de a mesma agir em juízo em defesa dos interesses dos seus associados;
E.-A Recorrente também não age ao abrigo do direito à acção popular, uma vez que (i)- não está em causa na presente acção qualquer interesse difuso a ser tutelado, mas sim, vários interesses patrimoniais individuais e diferenciados dos associados da Recorrente; e (ii)- os próprios Estatutos da Recorrente não preveem expressamente a possibilidade de a mesma agir em juízo em defesa dos interesses dos seus associados;
F.-Não tendo a Recorrente legitimidade activa e não lhe tendo sido conferidos pelos seus associados poderes para propor a presente acção, mediante procuração, a Recorrente é parte ilegítima neste processo; 
G.-Pelo que andou bem o Tribunal a quo ao absolver as Recorridas da instância, devendo manter-se o Despacho recorrido.
Remata as suas conclusões, da seguinte forma:
NESTES TERMOS, E NOS MAIS DE DIREITO APLICÁVEIS:
a)-DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO IMPROCEDENTE, COM AS DEVIDAS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS; E
b)-DEVEM AS RECORRIDAS SER DISPENSADAS DO PAGAMENTO DO VALOR REMANESCENTE DA TAXA DE JUSTIÇA.

Admitido o recurso, e recebido o processo neste Tribunal da Relação, foram colhidos os vistos.


2.-Questões a decidir

Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[3]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC).

Não obstante, excetuadas as questões de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[4].

No caso em apreço, nenhuma das partes impugnou o despacho recorrido, na parte em que julgou improcedente a exceção de falta de personalidade judiciária da autora.

Assim, a única questão a apreciar e decidir reside em apreciar se se verifica a exceção de ilegitimidade ativa.


3.-Fundamentação

3.1.-Os factos

Os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede, que revelam a tramitação da presente causa, com especial ênfase no teor da petição inicial.


3.2.-Os factos e o Direito
3.2.1.-Da exceção de ilegitimidade ativa
3.2.1.2.-Considerações gerais

Como já se referiu, a única questão a apreciar neste recurso, reside em aferir se se verifica a exceção de ilegitimidade ativa.

Embora sem definir cabalmente o conceito de legitimidade processual, o art. 30º do CPC reporta-o ao interesse em demandar ou contradizer.

E, no nº 2 do mesmo preceito esclarece-se que o interesse em demandar se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação, enquanto que o interesse em contradizer se exprime pelo prejuízo que dela advenha.

Estas regras aplicam-se quer às situações de legitimidade singular, quer às situações de legitimidade plural, ou seja, aos casos de litisconsórcio e coligação (vd. arts. 32º a 36º do CPC).

Finalmente, e de acordo com o nº 3 do mesmo art. 30º do CPC, o critério supletivo para aferição da titularidade do interesse relevante para o efeito da legitimidade é o da titularidade da relação material controvertida tal como o autor a configura.

Mantém-se por isso atual a definição doutrinária de legitimidade processual proposta por CASTRO MENDES[5]: “A legitimidade é uma posição de autor e réu, em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo desse objecto do processo.”

Em sentido semelhante sustenta PAULO PIMENTA[6] que “a legitimidade consiste numa relação concreta da parte perante uma causa. Por isso a legitimidade não é uma qualidade pessoal, antes uma qualidade posicional da parte face à ação, ao litígio que aí se discute”.

Do mesmo modo, dizem RITA LOBO XAVIER, INÊS FOLHADELA, E GONÇALO ANDRADE E CASTRO[7] que “ser parte legítima é ter uma relação direta com o objeto do litígio”.

Finalmente, esclarecem ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA[8] que “o autor é parte legítima se, atenta a relação jurídica que invoca, surgir nela como sujeito suscetível de beneficiar diretamente do efeito jurídico pretendido; já o réu terá legitimidade passiva ser for diretamente prejudicado com a procedência da ação. A exigência de um “interesse” emergente da pronúncia judicial, reconduz-nos a um interesse direto e indica que é irrelevante para o efeito um mero interesse indireto, reflexo, ou mediato, ou ainda um interesse diletante ou de ordem moral ou académica”.

Não obstante, os mesmos autores advertem para a circunstância de que “casos há (…) em que é a própria lei que identifica o detentor da legitimidade ativa ou passiva, prevalecendo tal indicação sobre a eventual alegação do autor em sentido inverso (…)”.

Por outro lado, e como sublinham CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[9], haverá que distinguir os casos de legitimidade direta dos casos de legitimidade indireta,.

Para estes autores, a legitimidade direta pressupõe não só “o interesse em demandar em contradizer, ou seja, o interesse da parte na obtenção de uma tutela favorável de uma decisão de procedência ou de improcedência”, mas também “o poder de produção dos efeitos que podem decorrer da decisão de procedência ou improcedência da ação.”

Já a legitimidade indireta ou substituição processual,“assenta sempre na lei ou num negócio jurídico.”


3.2.1.2.-O caso dos autos

No caso em apreço, o Tribunal a quo considerou a autora parte ilegítima, fundamentando tal entendimento nos seguintes termos:

“Em sede de petição inicial a autora justifica a sua legitimidade para os termos desta acção invocando o disposto na alínea d) do n° 1 do art. 443° do Código do Trabalho, o disposto no art. 31° do CPC e os seus Estatutos, designadamente o art. 3° daqueles.

A legitimidade é um pressuposto processual que se refere à posição das partes em face da relação controvertida, ou por outro lado, em face do objecto do processo. Tal como se referiu supra, ao contrário dos pressupostos processuais de personalidade e de capacidade judiciárias que se referem a qualidades pessoais do sujeito para ser parte em qualquer processo (legitimatio ad processum), a legitimidade refere-se a uma posição ou qualidade do sujeito em relação a um dado litígio, que lhe permite ser parte num determinado processo concreto, que tem esse litígio como objecto (legitimatio ad causam).

Como resulta claramente do disposto no art. 30° do CPC, o interesse para efeito de legitimidade é um interesse directo e não indirecto ou meramente reflexo que não releva para o efeito.

Dispõe o n° 3 do art. 30° do CPC que: “Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.”

A ressalva constante da 1a parte deste n° 3, respeita às hipóteses em que, excepcionalmente, o legislador reconhece legitimidade a quem não é sujeito (ou só é em parte) da relação material controvertida submetida à apreciação do tribunal.

É o caso em que a relação controvertida afecta de tal maneira terceiros que o legislador entendeu por bem conferir-lhe o direito de propor a acção em seu nome e no interesse próprio, mas versando uma relação jurídica a que é estranho ou em que tem apenas um interesse indirecto ou reflexo.

Nestes casos verifica-se uma situação de substituição processual, também conhecida como legitimidade indirecta, como a designa Lebre de Freitas, no seu Cód. de Proc. Civil, Anotado, pg. 52, dado que se atribui o direito de acção a titulares de um interesse indirecto.

Assim acontece, por exemplo, no caso da acção popular prevista no art. 31° do CPC.

Por outro lado, ainda pode uma pessoa jurídica intervir ou propor uma acção, não sendo titular do interesse relevante para o efeito, quando o faz em representação voluntária ou legal dos titulares directos dos interesses relevantes em causa.

No caso da representação legal ou substituição processual, o substituto exerce o direito de acção em nome e no interesse próprio, embora o sujeito da relação controvertida seja outrem, por o legislador lhe haver atribuído esse direito por também estarem em causa interesses seus, embora directamente a relação jurídica lhe seja estranha.

Neste caso a parte processual é efectivamente o substituto e não o sujeito da relação jurídica controvertida.

É o caso, como se referiu da acção popular regulada na Lei n° 83/95 de 31/08, onde se prevê um regime especial de representação processual em que se atribui às associações em cujos estatutos se preveja a defesa dos interesses em causa, legitimidade para por iniciativa própria e com dispensa de mandato ou autorização propor acções de defesa de direitos ou interesses alheios, pelo menos parcialmente.

Porém, mesmo nestes casos os titulares dos direitos ou interesses sempre mantêm a possibilidade de se auto-excluírem - art. 14° da dita Lei.

Esta figura jurídica de substituição é excepcional, só ocorre em situações em que a lei expressamente o preveja, e tem sempre em vista a defesa de interesses colectivos, estando excluídos os direitos patrimoniais individuais de cada associado ou de cada interessado.

Feito este breve excurso teórico analisemos o caso submetido à apreciação deste tribunal.

Como se referiu supra, em sede de petição inicial a autora justifica a sua legitimidade para os termos desta acção invocando o disposto na alínea d) do n° 1 do art. 443° do Código do Trabalho, o disposto no art. 31° do CPC e os seus Estatutos, designadamente o art. 3° daqueles e em sede de resposta às excepções alega a este propósito que actua na defesa do sector e em conformidade com a sua natureza, lei habilitante e fins estatutários.

Actuando a autora, como a própria afirma, na defesa do sector, a sua legitimidade para os termos desta acção só poderia advir-lhe por via da substituição processual.

Mas, e como já referimos, a atribuição de legitimidade por via do instituto da substituição processual, dada a sua natureza excepcional, exige previsão legal expressa nesse sentido, que a autora entende será o art. 443° do Código do Trabalho.

Preceitua esta norma legal o seguinte:

1-As associações sindicais e as associações de empregadores têm, nomeadamente, o direito de:

d)- Iniciar e intervir em processos judiciais e em procedimentos administrativos quanto aos interesses dos seus associados, nos termos da lei.”

Por seu turno o art. 5° n° 1 do CPT dispõe que “1 - As associações sindicais e de empregadores são partes legitimas como autoras nas ações relativas a direitos respeitantes aos interesses colectivos que representam.”

Esta norma do CPT e a norma do Código do Trabalho que adjectiva não conferem legitimidade à autora, que é uma associação de empregadores, para instaurar acções como a presente, uma vez que são normas próprias do direito do trabalho e se referem a litígios que respeitam a questões relativas ao estatuto das relações de trabalho, apelando à natureza especifica das “associações de empregadores”, enquanto tais.

A autora nestes autos não está a actuar na qualidade de associação de empregadores da indústria de táxi, fazendo valer direitos respeitantes aos interesses colectivos que representa. Na verdade, aquelas normas, como claramente se infere das mesmas, não conferem legitimidade à autora para intentar acções onde se peticionam indemnizações com fundamento em responsabilidade civil extracontratual.

Acresce que, na alegação da autora, a actividade ilícita e dolosa das rés está a causar prejuízos às suas associadas na medida e, designadamente, porque retira clientes às empresas habilitadas e lesa o nome da classe a nível nacional. Daqui resulta que os titulares do direito à indemnização são os associados da autora.

Assim, decorre do que se deixa dito, que as normas supra referidas não conferem legitimidade à autora para intentar a presente acção, pela via da substituição processual.

A autora alega ainda que a sua legitimidade para os termos da acção assenta no disposto no disposto no art. 31° do CPC.

O art. 31° do CPC atribui legitimidade para propor e intervir em acções destinadas à tutela de interesses difusos a, no que ora interessa, a associações defensoras dos interesses em causa.

Por via desta norma atribuiu-se a titulo excepcional legitimidade a um determinado tipo de pessoas singulares e colectivas para propor acções naqueles casos em que não existe propriamente um direito subjectivo nem uma relação jurídica de que o autor seja titular.

Como se refere no Ac. do TRL de 5/06/2008, consideram-se interesses difusos a refracção, em cada indivíduo, de interesses comunitários da comunidade, global e complexivamente considerada, ou, dito de outra maneira, daqueles interesses que pertencem a todos os indivíduos ou a, pelo menos, a um grupo alargado de indivíduos que se encontram numa situação de contitularidade de um bem decorrente de serem membros de uma mesma comunidade, traduzindo-se a tutela de tais interesses difusos no reconhecimento aos cidadãos uti civese não uti singuli, do direito de promover, individual ou associadamente, a defesa de tais interesses.”

Os titulares dos interesses difusos não pertencem a uma pessoa isolada ou grupo delimitado de pessoas e os seus titulares não estão ligados por um vinculo jurídico definido.

Ora, na presente acção, não está em causa a tutela de qualquer interesse difuso, não se configurando esta acção, nem tendo como configurar-se, como uma acção popular, para lá de que não se afigura a este tribunal que a autora tivesse sequer legitimidade, nos termos dos seus Estatutos, para intentar uma acção popular para defesa de interesses relacionados com a concorrência no sector dos transportes em automóveis ligeiros de passageiros.

Esta acção versa sobre a alegada defesa dos direitos dos associados da autora a operarem num mercado que não esteja ameaçado pela concorrência ilegal das rés, a qual deu causa a danos dos seus associados que devem ser ressarcidos mediante indemnização a cargo dessas rés.

Claramente não está em causa qualquer interesse pertencente a uma série de pessoas indeterminadas, nem a qualquer bem indivisível, pelo que a referencia ao art. 31° do CPC é manifestamente desajustada e sem qualquer possibilidade de legitimar a actuação da autora.

Assim, e em conclusão:
- a autora, apesar de formular o pedido de lhe ser paga a indemnização não actua a coberto de um interesse próprio, que aliás nem se vislumbra. Não lhe pertencendo a relação jurídica que se discute a autora é parte ilegítima.
- a autora está, no dizer da própria, a actuar defesa dos seus associados e do sector, em conformidade com a sua natureza, lei habilitante e fins estatutários.
- para poder estar em juízo, pertencendo a relação jurídica às suas associadas era necessário poder afirmar-se que está em juízo pela via da substituição processual.
- esta figura jurídica de substituição é excepcional, só ocorre em situações em que a lei expressamente o preveja, e tem sempre em vista a defesa de interesses colectivos, estando excluídos os direitos patrimoniais individuais de cada associado ou de cada interessado.
- inexiste norma legal, como resulta do que se deixou dito supra, que habilite a autora a propor acções como a presente, fundadas em responsabilidade civil extracontratual e em que estão em causa direitos patrimoniais individuais, embora comuns a uma generalidade de associados.

Por tudo o exposto, temos de concluir que não assiste à autora legitimidade para os termos desta acção.”

Como resulta das alegações de recurso da apelante, a mesma discorda do entendimento manifestado pelo Tribunal a quo, invocando três argumentos:
- também invocou danos próprios, relativamente aos quais detém legitimidade direta;
- dispõe de legitimidade indireta, por atuar no âmbito da ação popular, nos termos previstos no art. 31º do CPC.

3.2.1.2.1.-Da legitimidade direta

Da leitura da decisão apelada resulta que a mesma assenta na ideia de que o pedido indemnizatório deduzido pela autora não visa ressarcir nenhum dano sofrido diretamente pela demandante, e que ao intentar a presente ação, a mesma atuou apenas em representação dos seus associados e em substituição destes e/ou no âmbito da tutela de interesses difusos.

Vejamos se assim é.

Na parte final da petição inicial pediu a autora a condenação das rés “a indemnizar a. dos danos patrimoniais a liquidar com a realização de peritagem e em execução de sentença.”

Contudo, como reconhece o próprio Tribunal a quo bem reconhece, “ainda que não formule nenhum pedido específico nesse sentido, a autora pede também a condenação das rés a pagar uma indemnização por danos não patrimoniais pela lesão do bom nome da classe a nível nacional”.

Estão por isso em causa danos patrimoniais e não patrimoniais.

A decisão apelada entendeu que a autora se reportou apenas a danos sofridos pelos associados da autora.

Contudo, como este Tribunal teve oportunidade de salientar no acórdão proferido em 15-12-2020, a autora invocou também danos diretamente sofridos na sua esfera jurídica, já que no art. 5º da petição inicial havia alegado que em consequência do comportamento das rés perdeu associados, a ponto de a sua sobrevivência enquanto associação de empresas do setor do transporte público rodoviário de passageiros em veículos ligeiros (vulgo táxi) se encontrar em risco. E foi, aliás, nesse sentido, que no mesmo aresto se apontou a necessidade de a autora concretizar, clarificar e ampliar a factualidade alegada na petição inicial.[10]

Por outro lado, e como também se apontou no já referido acórdão deste coletivo, nos arts. 166º, e 175º a 182º da petição inicial, a autora invocou danos não patrimoniais sofridos não só pelos seus associados, mas também por si mesma.

No tocante a danos não patrimoniais que considera ter sofrido na sua própria esfera jurídica alegou a autora, nos arts. 181º e 182º da petição inicial, que “foi descredibilizada junto dos seus associados” “como sendo incompetente na actuação contra esta actividade ilícita e sua responsável”.

Portanto, pelo menos quanto a estes danos patrimoniais (decorrentes da perda de associados), e não patrimoniais (lesão da sua credibilidade) a autora tem interesse direto em demandar, e é titular dos direitos a que se arroga, sendo por isso inegável a sua legitimidade processual.


3.2.1.2.2.-Da legitimidade indireta, decorrente da qualidade de associação de empresas

Como já tivemos oportunidade de referir, a ressalva inicial contida no nº 3 do art. 30º do CPC prevê a possibilidade de a Lei atribuir legitimidade processual a sujeitos que não a deteriam à luz do critério geral enunciado no mesmo preceito.

No caso em apreço na petição inicial a autora e ora apelante invocou o disposto no art. 443º nº 1, al. d) do Código do Trabalho.

Estabelece este preceito:

“Artigo 443.º

Direitos das associações
1-As associações sindicais e as associações de empregadores têm, nomeadamente, o direito de:
a)-Celebrar convenções coletivas de trabalho;
b)-Prestar serviços de carácter económico e social aos seus associados;
c)-Participar na elaboração da legislação do trabalho;
d)-Iniciar e intervir em processos judiciais e em procedimentos administrativos quanto a interesses dos seus associados, nos termos da lei;
e)-Estabelecer relações ou filiar-se, a nível nacional ou internacional, em organizações, respetivamente, de trabalhadores ou de empregadores.
2-As associações sindicais têm, ainda, o direito de participar nos processos de reestruturação da empresa, especialmente no respeitante a ações de formação ou quando ocorra alteração das condições de trabalho.
3-As associações de empregadores não podem dedicar-se à produção ou comercialização de bens ou serviços ou de qualquer modo intervir no mercado, sem prejuízo do disposto na alínea b) do n.º 1.

Mas será a autora e ora apelada de qualificar como associação de empregadores?

A resposta a tal questão deve buscar-se no art. 3º, nº 1 dos estatutos da autora[11], que dispõe que a mesma tem como associadas as pessoas individuais e coletivas que explorem a indústria de transportes públicos rodoviários em automóveis ligeiros de passageiros (vulgo táxi), ou qualquer outra atividade afim da indústria rodoviária, bem como entidades privadas cuja atividade esteja relacionada com o setor automóvel.

Por outro lado, nos termos previstos nas als. b), g), e l) dos mesmos estatutos, “Para a realização dos seus fins compete à ANTRAL, designadamente:
b)-Representar os seus associados junto de todas as entidades públicas e privadas, com as quais devam manter relações para a defesa dos seus legítimos interesses, quer no plano nacional, quer no plano internacional, e, nomeadamente, por si ou através de entidade em quem delegue, no que toca a contratação coletiva e demais relações sociais e de trabalho, de acordo com a respetiva legislação em vigor;
(…)
g)- Prestar assistência aos associados, pelos meios e nos termos a definir em regulamento, nos domínios jurídico, social, técnico, económico, e financeiro;
l)- Em geral, desempenhar todas as funções e tomas as iniciativas de interesse para os sócios e para a atividade transportadora rodoviária em automóveis ligeiros.”

Das citadas disposições estatutárias resulta, de forma clara, que a autora pode e deve ser qualificada como associação de empregadores, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 443º do CT.

Contudo, as apeladas entendem que este preceito não tem aplicação ao caso dos autos, por considerarem que o mesmo se aplica tão somente à atuação das associações de empregadores em domínios estritamente laborais. Portanto, na ótica das apeladas este preceito apelas se aplicaria às ações da competência dos Tribunais do Trabalho.

Discordamos deste entendimento.

Na verdade, não descortinamos na letra do preceito nenhum elemento que justifique a interpretação restritiva proposta pelas apeladas, sendo certo que a alínea b) prevê que as associações de empregadores possam prestar aos seus associados serviços de natureza económica e social, o que denota que a âmbito da sua atividade transcende o domínio das relações de trabalho subordinado.

Consideramos, por isso, que o citado preceito se aplica também a litígios em que as associações de empregadores pretendam defender interesses dos seus associados que não tenham natureza estritamente laboral.

No caso em apreço, verificamos que, nos termos do art. 3º, nº 1 dos estatutos da autora[12], a mesma tem como associadas as pessoas individuais e coletivas que explorem a indústria de transportes públicos rodoviários em automóveis ligeiros de passageiros (vulgo táxi), ou qualquer outra atividade afim da indústria rodoviária, bem como entidades privadas cuja atividade esteja relacionada com o setor automóvel.

Tal significa que os estatutos da autora admitem que empresários em nome individual sejam seus associados, não impondo, como condição para a sua filiação, que os mesmos tenham trabalhadores ao seu serviço. Ou seja: que podem ser sócios da autora pessoas singulares que não são empregadores.

Por outro lado, nos termos previstos nas als. b), g), e l) dos mesmos estatutos, “Para a realização dos seus fins compete à ANTRAL, designadamente:
b)- Representar os seus associados junto de todas as entidades públicas e privadas, com as quais devam manter relações para a defesa dos seus legítimos interesses, quer no plano nacional, quer no plano internacional, e, nomeadamente, por si ou através de entidade em quem delegue, no que toca a contratação coletiva e demais relações sociais e de trabalho, de acordo com a respetiva legislação em vigor;
(…)
g)- Prestar assistência aos associados, pelos meios e nos termos a definir em regulamento, nos domínios jurídico, social, técnico, económico, e financeiro;
l)- Em geral, desempenhar todas as funções e tomas as iniciativas de interesse para os sócios e para a atividade transportadora rodoviária em automóveis ligeiros.”

As fórmulas genéricas “representação dos associados junto de todas as entidades públicas” e “prestar assistência (…) nos domínios jurídico (…)” abre espaço a uma interpretação que inclua em tais poderes de representação a possibilidade de intentar ações judiciais para defesa dos seus associados, nos termos previstos no art. 443º, nº 1, al. d) do Código do Trabalho.

Porém, este preceito refere expressamente que tal poder de representação legal deve ser exercido “nos termos previstos na lei”.

Ora, tal regulamentação legal consta do art. 5º do Código de Processo do Trabalho[13], que tem o seguinte teor:

“Artigo 5.º

Legitimidade de estruturas de representação coletiva dos trabalhadores e de associações de empregadores
1-As associações sindicais e de empregadores são partes legítimas como autoras nas ações relativas a direitos respeitantes aos interesses coletivos que representam.
2-As associações sindicais podem exercer, ainda, o direito de ação, em representação e substituição de trabalhadores que o autorizem:
a)-Nas ações respeitantes a medidas tomadas pelo empregador contra trabalhadores que pertençam aos corpos gerentes da associação sindical ou nesta exerçam qualquer cargo;
b)-Nas ações respeitantes a medidas tomadas pelo empregador contra os seus associados que sejam representantes eleitos dos trabalhadores;
c)-Nas ações respeitantes à violação, com carácter de generalidade, de direitos individuais de idêntica natureza de trabalhadores seus associados.
3-Para efeito do número anterior, presume-se a autorização do trabalhador a quem a associação sindical tenha comunicado por escrito a intenção de exercer o direito de ação em sua representação e substituição, com indicação do respetivo objeto, se o trabalhador nada declarar em contrário, por escrito, no prazo de 15 dias.
4-Verificando-se o exercício do direito de ação nos termos do n.º 2, o trabalhador só pode intervir no processo como assistente.
5-Nas ações em que estejam em causa interesses individuais dos trabalhadores ou dos empregadores, as respetivas associações podem intervir como assistentes dos seus associados, desde que exista da parte dos interessados declaração escrita de aceitação da intervenção.
6-As estruturas de representação coletiva dos trabalhadores são parte legítima como autor nas ações em que estejam em causa a qualificação de informações como confidenciais ou a recusa de prestação de informação ou de realização de consultas por parte do empregador.”

Como decorre da leitura deste preceito, o nº 1 reporta-se à defesa de interesses coletivos, pelo que não tem aplicação no tocante à pretensão de ressarcimento de danos sofridos pelas associadas da autora.

Já o nº 2 consagra uma regra de legitimidade indireta, embora a letra do preceito o restrinja às associações sindicais.

Admite-se, contudo, que esta norma seja objeto de interpretação extensiva, considerando-se aplicável também às associações de empregadores, na medida em que o art. 443º do CT prevê essa legitimidade indireta quer para associações de empregadores, quer para associações sindicais.

Assim, consideramos que no que diz respeito ao pretendido ressarcimento pelos danos sofridos pelos associados da autora resultantes da atividade alegadamente ilícita das rés, seria aplicável a al. c) do nº 2 do art. 5º do CPT.

Não obstante, sempre diremos que, no caso vertente, a autora e ora apelada não apresentou procurações outorgadas pelas empresas suas associadas que a habilitassem a intentar a presente ação para defender interesses individuais de tais empresas, nem tão-pouco fez prova da circunstância de ter efetuado as comunicações a que se reporta o nº 3 do mesmo preceito, o que aliás pressupunha igualmente que tivesse identificado todas as empresas associadas que pretendia representar.

Não o tendo feito, forçoso será concluir que, à luz destas disposições legais, a apelada carece de legitimidade para a presente causa, no que diz respeito ao ressarcimento de danos sofridos pelas suas associadas (nomeadamente os que estas sofreram em resultado da perda de clientela, ou diminuição de faturação).

À mesma conclusão chegaríamos caso entendêssemos inaplicável o disposto nos art. 443º CT e 5º CPT, como fez o ac. RL 17-01-2012 (Mª João Areias), p. 9814/03.9TVLSB.L1-7, que entendeu que uma associação representativa de empresas de determinado setor de atividade necessitava de obter poderes de representação das suas associadas para alcançar legitimidade processual ativa, entendimento que sustentou no disposto nos arts. 26º, nº 3 do CPC1961 e 258º e 262º do CC.


3.2.1.2.3.-Da legitimidade indireta: ação popular?

Alegou também a apelada, como fonte da sua legitimidade indireta, o disposto no art. 31º do CPC.

Dispõe este normativo:

“Artigo 31.º

Ações para a tutela de interesses difusos

Têm legitimidade para propor e intervir nas ações e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público, bem como à proteção do consumo de bens e serviços, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público, nos termos previstos na lei.”

A lei regulamentadora deste preceito é a Lei nº 83/95, de 31-08[14].

Nos termos previstos no art. 1º, nº 1 deste diploma, o mesmo regulamenta “os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de ação popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição.”

Por seu turno, estabelece o art. 52º, nº 3 da Lei Fundamental :

3.-É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:
a)-Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural;
b)-Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.”

Na interpretação deste preceito deveremos atentar no conceito legal de consumidor constante do art. 1º, nº 1 da Lei de Defesa dos Consumidores[15], que define consumidor como “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios”.

Como ensina PAULO OTERO[16], «a acção popular, sendo sempre uma acção judicial e, neste sentido, a expressão do direito fundamental de acesso aos tribunais, distingue-se de todas as demais modalidades de acções pela amplitude dos critérios determinativos da legitimidade para a respectiva propositura.

Mediante a acção popular, pode dizer-se que todos os membros de uma comunidade - ou, pelo menos, um grupo de pessoas não individualizável pela titularidade de qualquer interesse directamente pessoal - estão investidos de um poder de acesso à justiça visando tutelar situações jurídicas materiais que são insusceptíveis de uma apropriação individual.

A acção popular traduz, deste modo, uma forma de tutela jurisdicional de posições jurídicas materiais que, sendo pertença de todos os membros de uma certa comunidade, não são, todavia, apropriáveis por nenhum deles em termos individuais. Deparamos aqui, por isso mesmo, com um conjunto de interesses materiais solidariamente comuns aos membros de uma comunidade e cuja titularidade se mostra indivisível através de um processo de apropriação individual.

Neste sentido, deverá afirmar-se que o actor popular age sempre no interesse geral da colectividade ou da comunidade a que pertence ou se encontra inserido, isto sem que tal meio de tutela judicial envolva a titularidade de qualquer interesse directo e pessoal.»

Ainda segundo o mesmo AUTOR, do art. 52.º, n.º 3, da CRP podem extrair-se «três principais aspectos sobre a configuração da acção popular:

a)- Em termos de legitimidade activa, a Constituição consagra dois modelos de acção popular:

(i)- Temos, por um lado, a acção popular desencadeada em termos pessoais, representando aquilo que se pode chamar a acção popular individual;

(ii)- Reconhece-se, por outro lado, a possibilidade de associações de defesa de certos interesses poderem também desencadear a acção popular, caso este que se reconduz a uma acção popular colectiva;

b)- No que respeita aos bens tutelados pela acção popular, sem prejuízo de se deferir para o espaço da liberdade conformadora do legislador a definição de outros bens, a Constituição elenca os seguintes:

•      Saúde pública;

•      Direitos dos consumidores;

•      Qualidade de vida;

•      Preservação do ambiente;

•      Preservação do património cultural;

•      Defesa dos bens de entidades públicas territoriais;

c)- Quanto ao objecto da acção popular, a Constituição, uma vez mais sem excluir a intervenção ampliativa do legislador, estabelece que aquela se pode traduzir numa das cinco seguintes modalidades de acção judicial:

(i)- Pode tratar-se de uma acção que tem por objecto prevenir infracções contra certos interesses gerais da colectividade, falando-se aqui em acção popular preventiva;

(ii)- Poderá ocorrer que a acção popular sirva de instrumento tendente a determinar a cessação de tais infracções, existindo aqui uma acção popular destrutiva ou anulatória;

(iii)- Pode a acção popular visar, por outro lado, a perseguição judicial de certo tipo de infracções ou, talvez de modo mais rigoroso, dos agentes protagonistas de tais infracções, deparando-se aqui com uma acção popular repressiva;

(iv)- A acção mostra-se ainda susceptível de visar o ressarcimento de danos decorrentes da infracção aos referidos interesses da comunidade, situação em que depararemos com uma acção popular indemnizatória;

(v)- Por último, a acção popular poderá visar a defesa de bens integrantes do património de entidades públicas, especialmente em casos de omissão ou negligência de actuação pública na sua defesa, situação esta reconduzível à tradicional acção popular supletiva ou substitutiva.»

À luz destas considerações, e revertendo ao caso dos autos, verificamos que a apelada não pode qualificar-se como associação de consumidores, porque as empresas suas associadas não têm a qualidade de consumidoras, pelo contrário, atuam no mercado prestando serviços (de transporte) mediante retribuição em dinheiro.

Por outro lado, os atos ilícitos invocados na petição inicial nada têm que ver com os valores da saúde pública, qualidade de vida, preservação do ambiente, defesa do património cultural, ou defesa de bens públicos.
Nessa medida, concluímos que na presente causa, e no que tange ao pedido indemnizatório tendente ao ressarcimento de danos sofridos pelos associados da apelada não estão em causa interesses difusos, tutelados nos termos previstos no regime jurídico da ação popular, razão pela qual não é aplicável o disposto no art. 31º do CPC.
Donde, também nesta perspetiva, a apelada carece de legitimidade para, em representação dos associados, peticionar indemnização tendente ao ressarcimento de danos por estes sofridos.

3.2.1.2.4.-Conclusões

Do que acima se expôs resulta que a autora e ora apelada tem legitimidade (direta) para a presente causa, no que respeita ao pretendido ressarcimento dos danos que alega ter sofrido em resultado das condutas imputadas às rés, mas carece de legitimidade (direta ou indireta) no que diz respeito ao pretendido ressarcimento dos danos que alega terem sido sofridos pelas suas associadas em resultado das mesmas condutas.

Tal significa que a decisão apelada deve ser revogada no que respeita ao primeiro segmento acima delimitado, e confirmada quanto ao demais.

Cumpre assim, alterar o despacho recorrido, julgado improcedente a exceção de ilegitimidade ativa no que respeita ao pretendido ressarcimento dos danos que a autora alega ter sofrido em resultado das condutas imputadas às rés, e determinando o prosseguimento da causa quanto a esta pretensão, devendo o Tribunal a quo atender ao determinado no acórdão antecedente, na parte em que se reportou à necessidade de ser proferido despacho de aperfeiçoamento para ampliação da factualidade alegada, no que respeita à concretização dos danos sofridos pela própria autora, e ora apelante.


3.2.2.-Das custas

Nos termos do disposto no art. 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”

A interpretação desta disposição legal, no contexto dos recursos, deve atender ao elemento sistemático da interpretação.

Com efeito, o conceito de custas comporta um sentido amplo e um sentido restrito.

No sentido amplo, as custas tal conceito inclui a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cf. arts. 529º, nº1, do CPC e 3º, nº1, do RCP).

sentido restrito, as custas são sinónimo de taxa de justiça, sendo esta devida pelo impulso do processo, seja em que instância for (arts. 529º, nº 2 e 642º, do CPC e 1º, nº 1, e 6º, nºs 2, 5 e 6 do RCP).

O pagamento da taxa de justiça não se correlaciona com o decaimento da parte, mas sim com o impulso do processo (vd. arts. 529º, nº 2, e 530º, nº 1, do CPC). Por isso é devido quer na 1ª instância, quer na Relação, quer no STJ.

Assim sendo, a condenação em custas a que se reportam os arts. 527º, 607º, nº 6, e 663º, nº 2, do CPC, só respeita aos encargos, quando devidos (arts. 532º do CPC e 16º, 20º e 24º, nº 2, do RCP), e às custas de parte (arts. 533º do CPC e 25º e 26º do RCP).

Tecidas estas considerações, resta aplicar o preceito supracitado ao caso em apreço.

E fazendo-o diremos que tendo ambas as partes decaído, deverão as mesmas ser e condenadas em custas, na proporção que resultar do decaimento que se apurar em função do julgamento da causa[17].

Não obstante, cumpre ainda assim determinar se se mostram reunidos os pressupostos da dispensa do remanescente de taxa de justiça requerido pelas apeladas.

Dispõe o art. 6º, nº 7 do Regulamento das Custas Processuais que “nas causas de valor superior a € 275.000, o remanescente da taxa de justiça é considerado a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento”.

No caso em apreço o valor da causa é de € 11.000.000,00 (onze milhões de euros); sendo certo que a única questão apreciada no presente recurso residiu em determinar se se verificava a exceção de ilegitimidade ativa.

Atenta a simplicidade de tal questão, que contrasta com o muito elevado valor da causa, justifica-se plenamente a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça relativa ao presente recurso.

Mas sublinha-se que tal dispensa vale apenas para a taxa de justiça relativa ao presente recurso de apelação.


4.-Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação parcialmente procedente:
a)- alterando o despacho recorrido, na parte em que absolveu as rés da instância relativamente ao pedido de condenação das mesmas a pagar à autora uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, sofridos por ela mesma, com fundamento na ilegitimidade ativa …
b)-… o qual deverá ser substituído por outro em que, considerando a improcedência da mesma exceção, profira despacho de aperfeiçoamento, nos termos expostos no acórdão deste Tribunal, de 15-12-2020 (refª 16343419, fls. 990-1000), e nos demais que entender convenientes;
c)- confirmando o despacho recorrido, na parte em que absolveu as rés da instância relativamente ao pedido de condenação das mesmas a pagar à autora uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelas empresas suas associadas.

Custas relativas ao presente recurso por apelante e apeladas, na proporção que vier a apurar-se a final, com dispensa do remanescente de taxa de justiça.

Lisboa, 11 de outubro de 2022 [18]


Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa

[1]Pessoa coletiva nº 500885303.

[2]Pessoa coletiva nº 510481442-

[3]Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117.

[4]Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 119.

[5]“Direito processual civil”, II vol., AAFDL, 1987, p. 187.

[6]“Processo Civil declarativo”, 2ª ed., Almedina, 2018, p. 75.

[7]“Elementos de direito processual civil – Teoria geral – Princípios – Pressupostos”, Universidade Católica Portuguesa Editora – Porto, 2014, p. 164

[8]“Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, Almedina, 2018, p. 59.

[9]“Manual de Processo Civil”, Vol. I, AAFDL, 2022, pp. 340-345.

[10]P. 19 do mencionado acórdão, a fls. 999 dos autos.

[11]Publicados no Diário da República, II Série, de 22-04-1975, e com alterações pulicadas no Boletim do Trabalho e do Emprego nº 39, de 22-10-2007, nº 1, de 08-01-2008, e

[12]Publicados no Diário da República, II Série, de 22-04-1975, e com alterações pulicadas no Boletim do Trabalho e do Emprego nº 39, de 22-10-2007, nº 1, de 08-01-2008, e

[13]Aprovado pelo DL nº 480/99, de 09-11, e alterado pelo DL nº 329/2001, de 17-12; pelo DL nº 38/2003, de 08-03; pelo DL nº 295/2009, de 13-10; retificado pela Dec. Retif. nº 86/2009, de 23-11; pela Lei nº 63/2013, de 27-08; pela Lei nº 55/2017, de 17-07; pela Lei nº 73/2017, de 16-08; e pela Lei nº 107/2019, de 09-09. Este diploma passara a ser mencionado pela sigla “CPT”.

[14]Retificada pela Decl. Retif. nº 4/95, de 12-10, e alterada pelo DL nº 214-G/2015, de 02-10.

[15]Aprovada pela Lei nº 24-96, de 31-07; Retificada pela Decl. Retif. nº 16/96, de 13-11; pela Lei nº 85/98, de 16-12; pelo DL nº 67/2003, de 08-04; pela Lei nº 10/2013, de 28-01; pela Lei nº 47/2014, de 28-07; pela Lei nº 63/2019, de 16-08; pelo DL nº 59/2021, de 14-07; pela Lei nº 84/2021, de 18-10; e pelo DL nº 109-G/2021, de 10-12. Muito embora a presente ação tenha sido intentada em data anterior à publicação das quatro últimas alterações ao mencionado diploma, a redação da disposição que citamos em seguida remonta à redação inicial do diploma.

[16]“A acção popular: configuração e valor no actual direito português”, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 59, dezembro de 1999, pp. 871-873, disponível em https://portal.oa.pt/upl/%7Bc2d6cd49-2a30-4cd6-9481-2791485902b2%7D.pdf.

[17]Ou seja, considerando que foi deduzido um pedido de € 11.000.000,00

[18]Acórdão assinado digitalmente – cfr. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.