Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JOÃO ABRUNHOSA | ||
Descritores: | SIGILO PROFISSIONAL BUSCA RECLAMAÇÃO FUNDAMENTAÇÃO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 06/22/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIMENTO | ||
Sumário: | Quando a reclamação prevista no art.º 77º do Estatuto da Ordem dos Advogados é acompanhada de fundamentação, não tem que ser junta nova fundamentação no previsto prazo de 5 dias. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
No Juízo de instrução criminal de Lisboa, nestes autos supra identificados, em 26/12/2017, foi proferido o despacho de fls. 13, que decidiu julgar deserta a reclamação apresentada pela Recorrente, nos termos do art. 77.º, do EOA[1], no decurso da diligência de busca e apreensão nas suas instalações, por a mesma, no prazo legalmente previsto, não ter apresentado a fundamentação da sua reclamação. * Não se conformando, a “…” interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 2/11, com as seguintes conclusões: “… 1. O presente Recurso tem por objeto o douto Despacho do Mm.º Juiz de Instrução Criminal, nos termos do qual foi julgada «deserta» a «reclamação» apresentada pela Mandatária da Recorrente no decurso das buscas não domiciliárias realizadas nas instalações desta, em 13.12.2016, uma vez que «não foi remetida aos autos fundamentação da mesma, no prazo legal a que alude o artigo 77.º, n.º 3, EOA». 2. A Recorrente discorda em absoluto da decisão proferida, porquanto no âmbito das referidas diligências não foi realizada qualquer reclamação nos termos e para os efeitos do artigo 77.º, n.º 1, do EOA. 3. Na sequência das buscas realizadas às instalações da ora Recorrente, foi apreendido um vasto acervo de documentação física e digital, incluindo um correio electrónico, datado de 15 de janeiro de 2016, identificado no respetivo Auto de Busca e de Apreensão como «doc. 8». 4. Este documento consiste em correspondência trocada entre a Dr.ª E…, Advogada, e seus clientes, pelo que está sujeito a segredo profissional de Advogado. 5. O referido email continha ainda a indicação expressa do seu caráter confidencial. 6. A Mandatária da Recorrente invocou os artigos 76.º, 92.º e 113.º,do EOA, por forma a impedir a apreensão de correspondência e documentos que respeitem ao exercício da advocacia. 7. A Mandatária suscitou a nulidade ou, no limite, a irregularidade do ato de apreensão do email identificado como «doc. 8», ao abrigo dos artigos 118.º a 123.º, 179.º, n.º 2 e 182.º, todos do CPP, assim como a remessa e apreciação pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em cumprimento da tramitação prevista no artigo 135.º, n.ºs 2 e 3, do CPP. 8. A Mandatária da Recorrente não apresentou a reclamação a que alude o artigo 77.º do EOA, pois limitou-se a suscitar a nulidade ou, no limite, a irregularidade do ato de apreensão dos documentos sujeitos a segredo profissional de advogado e com caráter confidencial. 9. Por este motivo, a Mandatária não tinha de apresentar, no prazo de cinco dias a que alude o artigo 77.º, n.º 3, do EOA, qualquer fundamentação escrita de uma reclamação que nunca teve lugar. 10. O segredo profissional é um dever que impende sobre todos os advogados, que o deverão proteger e efetivar sempre que se vejam confrontados com situações em que a violação de factos sigilosos é eminente ou efetiva. 11. O dever de segredo profissional não é absoluto, mas só pode ser levantado em casos muito excecionais e após a observância do correspondente procedimento. 12. É proibida, sob pena de nulidade, a apreensão de correspondência entre o advogado e o seu defensor. 13. Os advogados podem invocar, por escrito, o dever de segredo profissional a que estão adstritos, de molde a não terem de apresentar à autoridade judiciária os documentos ou quaisquer objetos que estejam na sua posse e que devam ser apreendidos. 14. O levantamento do segredo profissional segue a tramitação prevista no artigo 135.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, pelo que a autoridade judiciária competente deverá verificar se o segredo profissional foi invocado de forma legítima e, em caso afirmativo, deverá remeter-se a questão ao tribunal superior para aferir da necessidade de levantar o segredo profissional. 15. Foi este o procedimento adotado no decurso das buscas pela Mandatária da Recorrente, o que de modo algum consistiu na realização da reclamação a que alude o artigo 77.º, n.º 1, do EOA. 16. Confrontada com a apreensão de um documento sujeito a segredo profissional e com caráter confidencial, a Mandatária suscitou, no próprio ato, a nulidade ou, no limite, a irregularidade do mesmo, nos termos e ao abrigo dos artigos 118.º a 123.º, 179.º, n.º 2 e 182.º, todos do CPP, pelo que é a esta arguição a que importa atender. 17. Sem prescindir, mesmo que se entenda que está em causa uma reclamação realizada ao abrigo do artigo 77.º, n.º 3, do EOA, é inequívoco que a necessária fundamentação já tinha sido apresentada no decurso das buscas, pois consta do respetivo Auto uma fundamentação precisa, clara e legalmente esclarecedora dos motivos pelos quais a Mandatária da Recorrente atuou no sentido de proteger o segredo profissional inerente a email cuja apreensão se visava. 18. Não é possível retirar da letra da lei nem do bom entendimento dos tribunais superiores que a remessa da fundamentação no prazo de cinco dias a que alude o artigo 77.º, n.º 3, do EOA, assume um caráter obrigatório. 19. Decorre do espírito e da teleologia desta norma que a necessária fundamentação terá de ser remetida apenas se não tiver sido avançada no momento da realização da reclamação. 20. Nestes termos, o douto Despacho ora sob recurso violou de forma inequívoca os artigos 76.º, 92.º e 113.º, do EOA, e os artigos 118.º a 123.º, 135.º, n.ºs 2 e 3, 179.º, n.º 2 e 182.º do CPP. Nestes termos e nos demais de Direito, requer-se a V. Exa. se digne revogar o Despacho datado de 09.01.2017 e, em consequência, conhecer da nulidade ou da irregularidade arguida pela Mandatária da Recorrente no decurso da realização das buscas não domiciliárias realizadas nas instalações da Recorrente, nos termos e ao abrigo dos artigos 76.º, 92.º e 113.º, EOA, 118.º a 123.º, 179.º, n.º 2 e 182.º, CPP, devendo a questão ser conhecida pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, para análise da necessidade de o segredo profissional ser, ou não, levantado, em cumprimento da tramitação invocada e prevista no artigo 135.º, n.ºs 2 e 3, CPP, só assim se fazendo o que é de mais elementar JUSTIÇA! …”. * A Exm.ª Magistrada do MP[2] respondeu ao recurso, nos termos de fls. 52/56, concluindo da seguinte forma: “… 1. É obrigatória a apresentação de fundamentação da reclamação de existência de sigilo profissional a que se refere o art. 77.º, n.º 3, do E.O.A.. 2. Não sendo apresentada a fundamentação da reclamação, o incidente de verificação de existência de levantamento de sigilo profissional, fica deserto por falta de impulso processual do interessado. 3. A apreensão de correspondência entre advogado e cliente, já aberta, ocorrida em espaço que não seja o escritório do advogado ou de sociedade de advogados ou que não constitua o arquivo de advogado, não está coberta pelo sigilo profissional, tratando-se de documento, não sendo geradora da nulidade contemplada nos arts. 179.º, n.º 2, e 180.º, n.º 2, ambos do C.P.P., nem de irregularidade. Farão Vas. Exas. Justiça negando provimento ao recurso ou, assim o entendendo, determinando que a Mma JIC profira decisão sobre a nulidade/irregularidade suscitada pela recorrente. …”. * Neste tribunal a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o parecer de fls. 25, em suma, subscrevendo a posição assumida pelo MP na 1ª instância e pugnando pela improcedência do recurso. * Da leitura dessas conclusões, afigura-se-nos que a única questão fundamental que a Recorrente suscita no seu recurso é a de saber se, quando a reclamação prevista no art.º 77º do EOA é acompanhada de fundamentação, ainda tem que ser junta fundamentação no prazo de 5 dias. * Cumpre decidir. O art.º 77º[5] do EOA é uma norma processual penal avulsa. Uma vez que não existe qualquer especialidade a assinalar quanto à interpretação das normas processuais penais[6], há que ter em conta os princípios consagrados no art.º 9º do CC[7], isto é, na intepretação das leis, há que reconstituir o pensamento legislativo, não podendo este valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência verbal na sua letra, atendendo às circunstâncias históricas em que a norma foi aprovada e às condições específicas do tempo em que a mesma é aplicada, bem como à sua inserção sistemática. No presente caso, sendo verdade que a letra da lei não diz que a fundamentação pode ser entregue quando a reclamação é formulada, também não diz que não pode, pelo que o argumento é reversível. Aliás, se a fundamentação não pudesse ser junta aquando da formulação da reclamação, o autor do respectivo auto teria que recusar fazê-la constar do mesmo, o que não aconteceu. Ao fazer-se constar do auto tal fundamentação, criou-se no espírito de quem fez a reclamação o convencimento de que a respectiva fundamentação foi aceite, pelo que, considerar que tal fundamentação deveria ser de novo apresentada, no prazo de 5 dias, sobretudo sem que o reclamante tenha sido alertado para esse entendimento do tribunal, colocaria em causa, de modo grave, o princípio da segurança e da confiança jurídicas decorrentes do princípio do Estado de Direito Democrático (art.º 2º da CRP) bem como o processo equitativo e as garantias de defesa do arguido consagradas no artigo 32.º/1, da CRP, o que seria inconstitucional[8]. O fim do prazo estabelecido é o de permitir ao reclamante ponderar devidamente a reclamação e a sua fundamentação, pelo que fica ao seu dispor usar ou não o mesmo, desde que não ultrapasse o seu limite. Recorde-se que numa situação normalmente mais grave e complexa, a interposição de recurso da decisão final de um processo criminal, a lei permite ao recorrente fundamentar em acta o recurso (art.º 411º/2/3 do CPP), pelo que seria incongruente que o não pudesse fazer no caso em apreço. Para além disto, o entendimento de que, mesmo que a fundamentação acompanhasse a reclamação sempre teria que ser de novo junta, ou reafirmada, no prazo de 5 dias, violaria gravemente o princípio da economia processual. No sentido que defendemos, pronunciou-se Carlos Mateus, a propósito de norma similar constante de versão anterior do EOA, in “DEONTOLOGIA FORENSE - GARANTIAS E DEVERES DO ADVOGADO NO EXERCÍCIO DA PROFISSÃO”, Verbojurídico, o que fez nos seguintes termos: “… Estando em causa o segredo profissional (art. 87.º do EOA) qualquer um dos presentes (advogado visado, familiares e funcionários deste e o representante da Ordem dos advogados) podem apresentar reclamação oral, no sentido de sobrestar a diligência – art.72.º do EOA. Recebida a reclamação, o juiz deve de imediato suspender as diligências relativamente aos documentos ou objectos que forem postos em causa, fazendo-os acondicionar, sem os ler ou examinar, em volume selado no mesmo momento. Se a fundamentação da reclamação não for feita de imediato, que pode ficar a constar da acta da diligência, deve ser entregue na secretaria judicial onde corre o processo nos de 5 dias seguintes. Recebida a reclamação, o Juiz remete ao presidente da Relação o seu parecer e, sendo caso disso, o volume selado, no prazo de 5 dias. …”. Não pode, pois, deixar de ser procedente o recurso. * Notifique. D.N.. ***** Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP). ***** Lisboa, 22/06/2017 (João Abrunhosa) (Vítor Morgado) _______________________________________________________ |