Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
795/09.6SILSB.L1-9
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Descritores: ESTRANGEIRO
INTÉRPRETE
DEFENSOR
OBRIGATORIEDADE DE COMPARÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/19/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: Nos casos em que o arguido desconhece a língua portuguesa, é obrigatória a assistência de Defensor em todos os actos processuais, com excepção da constituição como arguido (art.º 64º/1-c) do CPP). Por isso, a prestação do Termo de Identidade e Residência sem a presença de Defensor constitui nulidade insanável (art.º 119º/c) do CPP), que afecta a validade de todos os actos posteriores.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Nos presentes autos de recurso, acordam, em audiência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

No Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, relativamente ao Arg.[1] XXX, com os restantes sinais dos autos (cf. TIR[2] de fls. 5[3]), em 15/07/2014, a fls. 147/148, foi proferido o seguinte despacho:

“…Fls. 133 a 135, dos autos: Indefere-se a requerida declaração de nulidade das notificações efectuadas ao arguido, nos presentes autos, porquanto sempre a Ex.ma defensora nomeada ao arguido foi notificada, nada tendo arguido, pelo que sendo nulidades sanáveis e não tendo sido ate agora arguidas, mostram-se sanadas.

Quanto ao transito em julgado da sentença, dos autos: Indefere-se ao requerido, uma vez que a data da prolação da sentença, dos autos, por força do disposto no artigo 397°, n° 2, do C. P. Penal, então em vigor, a sentença condenatória transitava, imediatamente, em julgado, portanto no caso, a mesma transitou no dia em que foi proferida -7 de Julho de 2010.

Assim sendo, por maioria de razão, se indefere a requerida declaração de prescrição do procedimento criminal, uma vez que a sentença transitou, não se coloca a questão da prescrição do procedimento mas, eventualmente e é o caso, das penas.

Na verdade, compulsados os presentes autos, verifica-se ter sido, o arguido, XXX condenado, por sentença transitada em julgado e pela pratica, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292°, do C6digo Penal, na pena de 80 dias de multa, a razão diária de €8, perfazendo a quantia global de €640 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses (cfr. fls. 54, dos autos).

Transitada a sentença em 07/07/2010, o arguido não procedeu, no prazo legal e ate hoje, ao pagamento voluntario da supra referida multa nem procedeu, no prazo legal e ate hoje, a entrega da sua carta de condução para cumprimento da supra referida pena acessória de proibição de conduzir, embora devidamente notificado para o efeito.

O arguido não requereu o pagamento, da pena de multa, em prestações.

Não requereu a substituição da pena de multa, em causa, por trabalho, nos termos do disposto no artigo 49°, do C.P.

Por outro lado, não se mostrou possível o pagamento coercivo da multa, atento o teor das informações constantes dos autos.

Nestes termos, atento o disposto no artigo 49°, n° 1, do C.P., teria o arguido que cumprir prisão subsidiaria que, no caso em apreço, foi já fixada e notificada aquele - cfr. despacho de fls. 78, dos autos - tendo sido já, para o efeito, emitidos os competentes mandados de detenção - cfr. fls. 84, dos autos.

Entretanto, atento o disposto no artigo 122°, n° 1, alínea d), do Código Penal, o prazo de prescrição das penas aplicadas ao arguido é de 4 anos, iniciando-se a contagem de tal prazo a partir do transito em julgado da sentença condenatória - 07/07/2010.

Não ocorreu qualquer causa de suspensão do prazo de prescrição, prevista no artigo 125°, do Código Penal.

Não ocorreu, igualmente, qualquer causa de interrupção do prazo de prescrição, prevista no artigo 126°, do Código Penal.

Face ao exposto e ao disposto no referido artigo 122°, do C.P., julgo extinta a pena de 80 dias de multa, bem como a pena acessória de proibição de conduzir de 3 meses, penas em que o arguido, XXX, foi condenado na sentença, dos autos, por efeito da prescrição. …”.

*

Não se conformando, o Arg. interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 188/205, com as seguintes conclusões:

“…1.ª Veio o Tribunal recorrido considerar sanadas as nulidades arguidas pelo ora Recorrente porque com a notificação à defensora do arguido de tais actos estes sanaram-se por falta de arguição da sua invalidado.

2.ª Contudo, assim não sucedeu porque, nuns casos, a defensora do arguido não foi notificada dos actos cuja invalidada foi suscitada tendo, aliás, estes sido praticados quando este nem sequer era representado por advogado, e porque, noutros casos, as nulidades não são susceptíveis de sanação, porque insanáveis, e porque não ocorreu trânsito em julgado, conforme se demonstrará.

3.ª        O ora Recorrente é um cidadão de nacionalidade irlandesa, que não conhece a língua portuguesa (como aliás consta dos autos a fls. 20).

4.ª Contudo, os actos processuais em que participou e todas as notificações que lhe foram praticados e redigidos em língua portuguesa, não se tendo providenciado pela nomeação de um intérprete, cm violação do disposto no artigo 92.°, n.° 1 do Código de Processo Penal.

5.ª Assim sucedeu quando o Recorrente foi constituído arguido ou quando prestou termo de identidade e residência, actos em que não foi também assistido por um defensor, conforme impunha também a alínea d) do n.° 1 do artigo 64.° do mesmo Diploma, nulidades, insanável, a prevista na alínea c) do n.° 1 do artigo 119.° do Código de Processo Penal e sanável, a prevista na alínea c) do n.° 2 do artigo 120.° do mesmo Diploma. A decisão recorrida nem sequer se pronunciou sobre a relevância da falta de defensor nos actos processuais de prestação de termo de identidade e residência e de constituição de arguido e da notificação do auto de notícia, bem como da ausência de nomeação de intérprete nesses actos, expressamente arguida, limitando-se a apreciar as notificações, apesar de a invalidade daqueles actos ter sido expressamente reconhecida pelo despacho constante de fls. 20 dos autos e, como tal, não poder considerar-se sanada.

6.ª No mesmo dia foi o ora Recorrente notificado, em língua portuguesa, para comparecer em julgamento em processo sumário, contudo, por não ter compreendido o teor da notificação que lhe foi dirigida, ao mesmo não compareceu.

7.ª Ora, nos termos do citado n.° 2 do artigo 92.° do Código de Processo Penal, desconhecendo o ora Recorrente a língua portuguesa e não lhe tendo sido nomeado intérprete está este acto também ferido de nulidade, nos termos previstos nos artigos 92.°, n.° 2, 120.°, n.° 2, alínea c) e 121.°, n.° 1, a contraria, todos do mesmo Diploma, como, aliás, foi reconhecido pelo despacho de fls. 20.

8.ª Uma vez mais, falece também neste concreto segmento a fundamentação do Tribunal recorrido na apreciação da nulidade invocada pois que, embora neste caso se tratasse de uma nulidade sanável, esta nulidade não se sanou pois a mandatária do arguido, ora Recorrente, nunca foi notificada de tal acto, tanto mais que este nem sequer era representado por advogado, e tanto mais que o tribunal a fls. 20 reconheceu a invalidada do acto, pelo menos devido à falta de assistência por intérprete.

9.ª Em 15.07.09 foi remetida ao ora Recorrente notificação para informar se concordava com a suspensão provisória do processo, notificação redigida em língua portuguesa, recepcionada por terceiro e que nunca chegou ao seu conhecimento.

10.ª Uma vez mais, falece também neste concreto segmento a fundamentação do Tribunal recorrido na apreciação da nulidade invocada, pois que, pese embora, neste caso, se tratasse de uma nulidade sanável, nos termos do artigo 120.°, n.° 2, alínea c) do Código de Processo Penal, esta nulidade não se sanou por não verificação das condições previstas no n.° 1 do artigo 121.° do Código de Processo Penal e muito menos, conforme se preconiza no despacho recorrido, por a mandatária do arguido ter sido deste acto notificada, tanto mais que este nem sequer era, à data, representado por advogado.

11.ª Em 20.05.10 foi remetida para o ora Recorrente notificação para informar se concordava com a aplicação de pena em processo sumaríssimo, nos termos do artigo 396.° do Código de Processo Penal, notificação redigida em língua portuguesa, remetida ao ora Recorrente por via postal e recepcionada por um terceiro.

12.ª Ora, sendo o ora Recorrente estrangeiro e aí residindo, tal notificação, que a lei exige que seja feita mediante contacto pessoal (seja realizada em Portugal ou no estrangeiro), teria necessariamente de ocorrer por carta rogatória, nos termos do n.° 2 do artigo 396.° do Código de Processo Penal, o que não sucedeu, não tendo sequer chegado ao conhecimento do arguido e, mesmo que tal tivesse sucedido, não compreenderia este o seu teor porque redigida em língua que não domina.

13.ª      Verifica-se, pois, que tal notificação está ferida de nulidade, insanável, nos termos da alínea c) do artigo 119.° do Código de Processo Penal, ou, no mínimo, de irregularidade, que afecta a validade do acto, nos termos do n.° 1 do artigo 123.° do Código de Processo Penal, não só por violação do disposto no já citado n.° 2 do artigo 92.° do Código de Processo Penal, mas também por violação da al. a), do n.° 1, do artigo 113.°, por remissão do n.° 2 do artigo 396.° do mesmo Diploma.

14.ª Padece, ainda, o despacho que considerou efectuada a notificação ao arguido nos termos do artigo 396.° do Código de Processo Penal e que aplicou ao Recorrente uma pena, de nulidade insanável, quer por ser afectado consequentemente pela nulidade insanável da própria notificação, quer ele próprio nos termos a alínea c) do artigo 119.° do Código de Processo Penal, ou, no mínimo, de irregularidade, que afecta a validade do acto, nos termos do artigo 123.° do Código de Processo Penal, por violação, não só do disposto no n.° 2 do artigo 92.° do Código de Processo Penal, como também em consequência da ausência de notificação ao arguido nos termos do artigo 396.°, n.° 2 do mesmo Diploma.

15.ª Impõe-se, pois, a revogação do despacho recorrido e a declaração de nulidade ou, no mínimo, de irregularidade, que afecta a validade do acto, dos actos supra discriminados.

16.ª Ora, conforme ficou demonstrado, o despacho que, pressupondo a não oposição do ora Recorrente, procedeu à aplicação da sanção, nos termos do n.° 1 do artigo 397.° do Código de Processo Penal, sempre estaria ferido de invalidade.

17.ª Vem a este propósito o Tribunal recorrido afirmar que a redacção em vigor do n.° 2 do artigo 397.°, à data da prolação do despacho, previa que este transitava em julgado no dia em que fosse proferido, ou seja, independentemente da sua notificação ao arguido, olvindando que tal apenas sucede porque o referido despacho é proferido no pressuposto de que o arguido já conheceu o teor da pena proposta pelo Ministério Público e aceite pelo juiz e ao mesmo não se opôs.

18.ª Contudo, o Recorrente a esse despacho nunca se poderia ter oposto porque do mesmo nunca foi notificado nos termos do n.° 2 do artigo 396.° do Código de Processo Penal.

19.ª Assim, por não se verificar a condição de que a primeira parte do n.° 1 do artigo 397.° do Código de Processo Penal faz depender a prolação do despacho (sentença condenatória) está este ferido de nulidade, insanável, nos termos supra referidos. Ou, no mínimo, de irregularidade que afecta o valor do acto.

20.ª Ora, sendo o despacho de aplicação de pena em processo sumaríssimo nulo e sendo nula a condenação do arguido, nulidades essas insanáveis, esta nunca seria sequer susceptível de transitar em julgado, contrariamente ao entendimento vertido no despacho recorrido. É que os actos nulos não produzem efeitos. E a sanação de nulidades com o trânsito em julgado da decisão final pressupõe que a própria decisão final seja, ela própria, válida, e susceptível de transitar em julgado, o que não sucedeu. Igual conclusão resultará do entendimento que considere tratar-se de irregularidades, pois se trata de irregularidades que afectam o valor do acto, que assim praticado não é adequado a produzir os efeitos a que se destina.

21.ª O despacho recorrido, ao retirar do artigo 397.°, n.° 1 e 2, do Código de Processo Penal entendimento normativo que permite considerar que o despacho de aplicação da sanção, previsto no seu n.° 1, transita em julgado imediatamente, nos termos do n.° 2, apesar de não ter ocorrido a notificação pessoal do arguido prevista no artigo 396.°, n.° 2 do Código de Processo Penal, está a aplicar norma inconstitucional por violação do disposto nos n.°s 1 e 6 do artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa, na medida em que consubstancia um julgamento na ausência sem que esteja salvaguardado o exercício dos direitos de defesa do arguido, ora Recorrente, inconstitucionalidade que aqui se argui para todos os efeitos legais. Ou seja, é inconstitucional a norma retirada do art. 397.°, n.° 1 e 2 do CPP, e aplicada pelo tribunal recorrido, que determina que o despacho de aplicação da pena em processo sumaríssimo pode ter lugar sem que o arguido seja notificado pessoalmente do requerimento do Ministério Público apresentado ao abrigo do disposto no art. 394.° do CPP e que, apesar dessa ausência de notificação, transita imediatamente cm julgado, por consubstanciar julgamento na ausência vedado pelo art. 32.°, n.° 1, e 32.°, n.° 6, da CRP.

22.ª O despacho recorrido, ao retirar do artigo 397.°, n.° 1 e 2, do Código de Processo Penal entendimento normativo que permite considerar que o despacho de aplicação da sanção, previsto no seu n.° 1, transita em julgado imediatamente, nos termos do n.° 2, apesar de a notificação ao arguido prevista no artigo 396.°, n.° 2 do Código de Processo Penal, não ter ocorrido em língua que este entenda, está a aplicar também norma inconstitucional por violação do disposto no n.° 1 do artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa, na medida em que consubstancia a sujeição a julgamento e a condenação de um cidadão por factos constantes de uma acusação que nunca lhe foi dada a conhecer, em língua que este entenda, inconstitucionalidade que aqui se argui para todos os efeitos legais. Ou seja, é inconstitucional a norma retirada do art. 397.°, n.° 1 e 2 do CPP, e aplicada pelo tribunal recorrido, que determina que o despacho de aplicação da pena cm processo sumaríssimo pode ter lugar sem que o arguido seja notificado do requerimento do Ministério Público previsto no art. 394.° do CPP em língua que compreenda e que, apesar dessa ausência de notificação em língua que o arguido entenda, transita imediatamente em julgado, por consubstanciar a sujeição a julgamento e a condenação de um cidadão por factos constantes de uma acusação que nunca lhe foi dada a conhecer, em língua que este entenda, o que é vedado pelo art. 32.°, n.° 1, da CRI).

23.ª Vem o Tribunal recorrido ainda dizer que a questão da prescrição não se coloca porque quando foi proferida a sentença condenatória (07.07.2010) o n.° 2 do artigo 397.° do Código de Processo Penal previa que o despacho de aplicação de sanção transitava imediatamente em julgado, não tendo, nessa data, ainda decorrido o prazo prescricional.

24.ª Esquece-se, contudo, que o despacho em causa apenas poderia ser proferido se o arguido tivesse sido notificado pessoalmente e não se opusesse ao requerimento do Ministério Público, o que, nos termos do n.° 1 do artigo 397.° do Código de Processo Penal, constitui condição para a sua prolação, o que não sucede.

25.ª Não podia, pois, o Tribunal recorrido ter proferido o despacho a que alude o artigo 397.°, não podendo entender-se que o facto de este transitar imediatamente em julgado legitima e sana todos os vícios em que assentou a sua prolação. Esse despacho é nulo, nos termos do art. 119.°, 21. c), do CPI', e, como tal não é susceptível de produzir efeitos, entre eles o trânsito em julgado.

26.ª Face a todo o supra exposto, impunha-se a repetição de todos os actos processuais feridos de invalidade, e supra enumerados, ou, no mínimo, a notificação ao ora Recorrente, que a Lei exige que seja pessoal, para informar os autos se se apõe à aplicação da pena em processo sumaríssimo, nos termos do n.° 2 do artigo 396.° do Código de Processo Penal.

27.ª Contudo, verifica-se tal acto ser actualmente desnecessário, uma vez que o procedimento criminal deve ser declarado extinto por prescrição que, neste caso, é de 5 anos, nos termos da alinea c) do n.° 1 do artigo 118.° do Código Penal, prazo que se iniciou em 13 de Junho de 2009.

28.ª Verificando-se a invalidade dos actos supra enunciados, nenhuma causa de interrupção da prescrição se verifica, nomeadamente a constituição do ora Recorrente como arguido, nem tão pouco se verifica qualquer causa de suspensão do prazo prescricional, uma vez que nunca ocorreu notificação válida da acusação, nem do requerimento para aplicação do processo sumaríssimo, nos termos supra expostos.

29.ª Contudo, mesmo que se verificasse como causa de interrupção da prescrição a constituição como arguido do ora Recorrente, o referido prazo teria sempre terminado no dia 13 de Junho de 2014, nos termos da referida disposição legal, impondo-se, pois, a declaração de extinção do procedimento criminal.

Termos em que, admitido o presente recurso e realizada a audiência oral a que se refere o art. 411.°, n." 5, do CPP, deve ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que:

Declare as nulidade e irregularidade invocadas e a prescrição do procedimento criminal contra o ora Recorrente ou, assim não se entendendo,:

Que se digne ordenar a efectivação da notificação pessoal do Recorrente para se opor à aplicação do processo sumaríssimo. …”.

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A Exm.ª Magistrada do MP[4] respondeu ao recurso, a fls. 209/211, nos seguintes termos:
“…No que toca à prescrição do procedimento criminal invocado pelo arguido, diremos em primeiro lugar que estamos perante processo sumaríssimo o qual se trata de “uma forma de processo especial que corresponde à ideia de privilegiar, no tratamento da pequena criminalidade, soluções de consenso”, célere por natureza e com vista à maior economia processual.
No caso dos autos, foi proferida sentença em 07.07.2010, depositada em 08.07.2010.
À data dos factos, era a seguinte a redacção do artigo 397º, nº 2 do CPPenal: “O despacho a que se refere o número anterior vale como sentença condenatória e transita imediatamente em julgado”.
Ora, tendo em conta em conta a data da prática dos factos – em 13.06.2009 – e a data do trânsito em julgado da decisão condenatória (em 07.07.2010), é manifesto que o procedimento não se mostra prescrito, pelo que deverá tal pretensão do arguido ser indeferida.
No que respeita às demais nulidades invocadas, começaremos por dizer que em face da declaração de prescrição das penas principal e acessória que lhe foram aplicadas, inexiste interesse em agir por parte do arguido, pelo que também nessa parte o recurso deverá ser rejeitado por manifesta improcedência – artigos 401º, nº2 e 420º, nº 1, al. a) ambos do CPPenal.
Sem conceder, assim não se entendendo, diremos que existindo uma sentença condenatória transitada em julgado nos autos (como se disse, em 07.07.2010), a qual, note-se, apesar de notificada à Ilustra defensora do arguido, nenhuma nulidade veio arguir, não é já admissível (mais de 4 anos volvidos) a arguição das invocadas nulidades.
Nesta sentido, veja-se a propósito o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.04.2011, com o seguinte sumário:
“I. O despacho judicial proferido em processo sumaríssimo ao abrigo do estatuído no nº2 do artº397º do CPP não transita «imediatamente», mas apenas decorrido o prazo de arguição de nulidades.
II. Na versão inicial do CPP, o mencionado despacho judicial transitava imediatamente em julgado, o que sanava quaisquer nulidades. Com a alteração introduzida pela Lei nº58/98, de 25/8, passou a prever-se, no nº3, a possibilidade de ser invocada a nulidade sanável daquele despacho o que, por maioria de razão, permite concluir que igualmente podem ser invocadas as nulidades insanáveis, sendo certo que, do despacho que conheça das arguidas nulidades cabe recurso (artºs 399º, 402º, nº1, 407º, nº1, 407º, nº1, al.b) e 408º a contrario). Assim, a conclusão é inelutável: em 1998, o legislador abrogou a palavra «imediatamente» na segunda parte do nº2 do artº397º do CPP. Por esse motivo, a decisão judicial em causa tem de ser notificada ao MP, ao arguido e seu defensor e ao assistente e respectivo mandatário.”.

Em face de tudo quanto se deixa escrito, rejeitando o recurso interposto ou julgando-o totalmente improcedente V. Ex.as farão a costumada e habitual Justiça. …”.

*

Neste tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto (fls. 218).

*
É pacífica a jurisprudência do STJ[5] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[6], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso[7].

Da leitura dessas conclusões, tendo em conta as de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as questões fundamentais a apreciar no presente recurso são as seguintes:

I – Interesse em agir do Recorrente; (questão suscitada pelo MP na sua resposta)

II – Nulidade insanável anterior à decisão condenatória;

III – Prescrição do procedimento criminal.

*

I – Entende o MP que o Recorrente não tem interesse em agir na interposição deste recurso, uma vez que a pena que lhe foi aplicada foi declarada prescrita.

Nos termos do art.º 401º/2 do CPP, não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.

O interesse em agir “…Consubstancia-se como pressuposto processual, com o significado de que o uso do recurso só se justifica se o recorrente tiver carência do mesmo para fazer valer o seu direito.

Conforme Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, Coimbra, 1984, págs. 170/171, o «interesse processual consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção, a qual não tem de ser uma necessidade absoluta, a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada, Mas também não bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um mero capricho (de vindicta sobre o réu) ou o puro interesse subjectivo (moral, científico ou académico) de obter um pronunciamento judicial … Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção.».

Segundo Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra, 1976, págs. 79/80, o interesse em agir, na designação alemã (Rechtsshutzbedurfniss) com o significado de «necessidade de tutela jurídica», consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial, o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo -, não se tratando de uma necessidade estrita, nem de um qualquer interesse por vago e remoto que seja, mas de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece.

Deste modo, implícita à necessidade atendível, está o efeito útil que da apreciação do recurso se possa extrair, não sendo aceitável que aquela redunde em dimensão puramente académica e sem consequência objectiva ao nível do direito. …”[8].

No presente caso, o Arg. pretende obter a extinção do procedimento criminal, por prescrição.

Ora a prescrição do procedimento criminal tem efeitos diferentes dos da prescrição da pena: naquele, o Arg. fica livre de qualquer condenação, e neste, fica livre da pena, mas continua com a qualidade de condenado, como, aliás, resulta das normas do registo criminal.

Na verdade, naquele caso não é feito qualquer averbamento no registo criminal do Arg. e é eliminado se tiver sido feito, mas no caso da prescrição da pena, a condenação mantém-se averbada e é feito o averbamento da decisão que declara a prescrição da pena (art.º 5º/1-a) da Lei 57/98, de 18/08), averbamento este que só desaparecerá passados 5 anos desta prescrição (art.º 15º/1-b) da Lei 57/98, de 18/08).

Não é, pois, indiferente do ponto de vista do Arg. o resultado deste recurso, pelo que tem interesse em agir.

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II – Entende o Recorrente que existe nulidade insanável anterior à decisão condenatória.

O Arg. é de nacionalidade estrangeira (irlandesa). Afirma desconhecer a língua portuguesa e a única vez em que se expressou nos autos, fê-lo por escrito, a fls. 24, em espanhol e inglês, informando qual o seu endereço na Irlanda.

É, pois, verosímil que não compreenda a língua portuguesa, questão que, como se afirma na motivação de recurso, já havia sido suscitada nos autos, pela Exm.ª Juíza que, por isso, não aceitou a tramitação sob a forma sumária (cf. despacho de fls. 20).

Nos casos em que o Arg. desconhece a língua portuguesa, é obrigatória a assistência de Defensor em todos os actos processuais, com excepção da constituição como Arg. (art.º 64º/1-c) do CPP, na versão em vigor naquela data).

O TIR foi prestado pelo Arg. sem a presença de Defensor (cf. fls. 5).

A ausência de Defensor neste acto processual constitui nulidade insanável (art.º 119º/c) do CPP, na versão em vigor naquela data).

Esta nulidade afecta todos os actos posteriormente praticados (art.º 122º/1 do CPP), nomeadamente todas as notificações efectuadas tendo em conta esse TIR, razão pela qual não podia ter havido condenação nos termos do art.º 396º e 397º do CPP.

Acresce que a notificação para decisão em processo sumaríssimo tinha que ser feita por contacto pessoal (art.ºs 396º/2 e 113º/1-a) do CPP), mas o Arg. foi notificado por carta registada com A/R (cf. fls. 49 e 53).

Há, pois, que concluir que aquela decisão condenatória é nula e não transitou em julgado.

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III – Entende o Recorrente que, atenta essa nulidade, o procedimento criminal se encontra prescrito.

E tem toda a razão.

Na verdade, os factos ocorreram em 13/06/2009 e o único facto interruptivo (art.º 121º/1-a) do CP - constituição como Arg.) ocorreu na mesma data (cf. fls. 4).

Atenta a nulidade supra referida, não ocorreram quaisquer outras causas de suspensão ou interrupção.

O prazo de prescrição deste procedimento criminal é de 5 anos (art. 118º/1-c) do CP).

É, pois, forçoso concluir que a prescrição ocorreu em 13/06/2014, pelo que há que a declarar, assim sendo procedente o recurso.

*****
Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos provido o recurso e, consequentemente, declaramos nulo o TIR, bem como todo o processado posterior, e declaramos extinto, por prescrição, o procedimento criminal.
Sem custas.

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Notifique.

D.N..

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Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP).

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Lisboa, 19/02/2015

(Abrunhosa de Carvalho)

(Maria do Carmo Ferreira)

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[1] Arguido/a/s.
[2] Termo/s de Identidade e Residência.
[3] Prestado em 13/06/2009.
[4] Ministério Público.
[5] Supremo Tribunal de Justiça.
[6]Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).” (com a devida vénia, reproduzimos a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt).
[7] Cf. Ac. 7/95 do STJ, de 19/10/1995, relatado por Sá Nogueira, in DR 1ª Série A, de 28/12/1995, que fixou jurisprudência no sentido de que é oficioso o conhecimento, pelo tribunal de recurso, dos vícios indicados no art.º 410.º/2 CPP, nos seguintes termos: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.”.
[8] Acórdão da RE de 06/11/2012, relatado por Carlos Berguete Coelho, no proc. 246/11.6GFELV.E1, in www.dgsi.pt.