Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2251/18.2T8BRR-F.L1-1
Relator: NUNO TEIXEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
VENDA DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
EXECUÇÃO COMUM
EXECUÇÃO FISCAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/04/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – O artigo 244º do CPPT é apenas aplicável à execução fiscal.
II – Na execução comum, tal como na execução insolvencial, é aplicável o Código de Processo Civil (na segunda, subsidiariamente, conforme artigo 17º do CIRE), diploma que não contém norma semelhante àquela.
II – Assim, nada justifica o cancelamento da venda da casa morada de família do insolvente e do seu cônjuge, quando estamos no âmbito da liquidação de um bem imóvel que integra a massa insolvente, a qual, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo (artigo 46º, nº 1 do CIRE).
(Pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa,

1. A. e esposa, M., devidamente identificados nos autos, ele na qualidade de insolvente no proc. 2251/18.2T8BRR e ela como interveniente acidental naquele processo, vieram requerer que fosse cancelada a venda do imóvel que alegam constituir casa de morada de família e que fosse ordenada a sua devolução aos ora requerentes.
O administrador da insolvência e a credora Lx Investment Partners III, SARL opuseram-se contra o requerido.
Em 07/02/2022 foi proferido despacho (Refª 412806157) a indeferir o requerido pelo insolvente e seu cônjuge.
Não se conformando com este despacho, dele interpôs recurso o insolvente, cujas alegações conclui da seguinte forma:
a) Veio o Insolvente, requerer o cancelamento da venda do imóvel, alegando que o mesmo constitui casa de morada de família e que a mesma não se encontrava habitada num momento definido no tempo porquanto o mesmo foi alvo de obras de melhoramento.
b) Alegou ainda que tais obras ocorreram pois naquele imóvel foi detectada a “… existência de uma continuidade de manchas enegrecidas com fungos, bem como manchas de humidade de diversas dimensões que se estendem até maio altura (…) observam-se também diversas eflorescências nesta zona…”
c) Alegou e comprovou ainda que “a mulher do Insolvente, é uma pessoa muito doente e que não pode viver em ambientes húmidos”.
d) Alegou e comprovou ainda que “a mulher do Insolvente, é uma pessoa muito doente e que não pode viver em ambientes húmidos”.
e) Alegou também que tal condição de saúde da mulher do Insolvente “implicou que fossem realizadas obras na fração autónoma que era detida pelo Insolvente, de modo a dotá-la dos elementos de conforto, e principalmente debelar a grande humidade que existia na referida habitação”.
f) Mais alegou que nos termos do CPPT “Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim.”
g) Mais alegava o Insolvente que “O legislador consagrou um grau de importância superior à manutenção da habitação, do que à cobrança coerciva de uma dívida de natureza tributária.”
h) O Tribunal “a quo” por despacho a Fls., “indefere o requerido pelo insolvente e seu cônjuge”, baseando a sua decisão, salvo o devido respeito, numa aplicação básica e linear dos formalismos previstos, entendendo que “não se mostra verificada qualquer das situações que poderia determinar a invalidade da venda”.
i) Ora é esta conclusão que o Insolvente não considera correta, tanto mais que o período em que o Insolvente e o seu cônjuge não se encontravam naquela habitação foi o período em que decorreram as obras anteriormente descritas, nem tendo o Tribunal a quo proferido qualquer pronúncia quanto a estas questões;
j) Tanto mais que o período em que o Insolvente e o seu cônjuge não residiram no imóvel sub judice coincidiu com a necessidade da realização de obras profundas no referido imóvel;
k) A casa morada de família encontra-se protegida no nosso ordenamento jurídico, constituindo ela própria um meio de proteger a família, de modo a proporcionar-lhe uma estabilidade e unidade.
l) Tal facto, justifica a consagração da limitação consagrada no n.º 2 do artigo 244.º do CPPT que indica que “Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim.”
m) Encontra-se consagrado no artigo 65.º da CRP que “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.”
n) Para além desta consagração constitucional também a Lei de Bases da Habitação, no seu artigo 10.º estabelece que “A habitação permanente é a utilizada como residência habitual e permanente pelos indivíduos, famílias e unidades de convivência. 2 - Todos têm direito, nos termos da lei, à proteção da sua habitação permanente.”
o) O Legislador estabeleceu no artigo 1.º da Lei n.º 13/2016, de 23/5, que “A presente lei protege a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, estabelecendo restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado.”
p) Pretendeu com esta disposição o legislador conferir um grau de importância superior à manutenção da habitação, do que à cobrança coerciva de uma dívida de natureza tributária.
q) Perante a situação descrita, deveria ser aplicada extensivamente a norma consagrada no n.º 2 do artigo 244.º do CPPT, não devendo ter sido promovida a venda da habitação própria e permanente do Insolvente.
r) Encontram-se junto a fls …, duas certidões do Serviço de Finanças, que comprovam que o bem que se encontra apreendido é a casa de morada de família do Insolvente e do seu cônjuge.
s) O Insolvente e mulher são pessoas idosas pois, têm 76 e 72 anos de idade, encontrando-se ambos em grande fragilidade, ambos portadores de doença oncológica em estado avançado, tendo inclusivamente sido fixada ao insolvente uma taxa de incapacidade de 60%,
t) O imóvel apreendido é a única residência do casal, constituindo a sua casa de morada de família,
u) Deve a norma identificada ser aplicada extensivamente às ações executivas comuns, onde o prosseguimento da execução seja requerido unicamente por entidades publicas, cuja cobrança dos seus créditos deveriam ocorrer através de execuções fiscais. Pelo que deve ser ordenado o cancelamento da venda da casa morada de família do Insolvente e do seu cônjuge.
Termina as suas alegações, pedindo a revogação do despacho e que se ordene o cancelamento da venda do imóvel do Insolvente e do seu cônjuge, que é a casa morada de família dos mesmos.
Não foram deduzidas contra-alegações.
A apelação foi correctamente admitida com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
2. Como é sabido, o teor das conclusões formuladas pela recorrente define o objecto e delimitam o âmbito do recurso (artigos 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 3 e 639º, nº 1 todos do Código de Processo Civil).
Assim, de acordo com as conclusões apresentadas pelo Recorrente, cumpre analisar se in casu deve ser ordenado o cancelamento da venda do imóvel do insolvente por este constituir a sua casa de morada de família.
3. No despacho impugnado foram dados como provados os seguintes factos, factualidade essa que o Recorrente não impugnou:
a) A. foi declarado insolvente por sentença de 11/09/2018, confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07/03/2019;
b) A administrador da insolvência nomeado procedeu à apreensão, em 13/09/2018, da fracção autónoma designada pela letra “F” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial da Moita sob o n.º … da freguesia de Alhos Vedros;
c) Foi inscrita provisoriamente no registo predial a declaração de insolvência sobre o referido imóvel em 04/10/2018, vindo o registo a ser convertido em definitivo em 08/05/2019;
d) Por despacho de 05/12/2019 proferido no processo principal foi determinada a notificação do insolvente para entregar o aludido imóvel, livre de pessoas e bens, no prazo de 10 dias, sob pena de recurso à força pública para efectiva apreensão e entrega, não havendo o insolvente entregue voluntariamente o imóvel;
e) Por despacho de 21/01/2020, transitado em julgado, proferido no apenso de liquidação foi autorizado o recurso à força pública, com arrombamento se necessário, para efectiva apreensão e entrega do imóvel apreendido;
f) Na data da diligência de entrega do imóvel (18/10/2021), este encontrava-se livre de pessoas e bens, com excepção dos elencados na informação de 18/10/2021, tendo sido colocada uma placa no frontal da varanda a anunciar que a venda iria ocorrer por leilão electrónico;
g) Por escritura pública de compra e venda outorgada em 13/01/2022, o sr. administrador da insolvência, em representação da massa insolvente de A., declarou vender e R. declarou comprar pelo preço de € 109.000 o imóvel apreendido nos autos, tendo já sido liquidado o preço na íntegra.
4. Entende o Recorrente que, estando a casa de morada de família protegida pelo nosso ordenamento jurídico, designadamente com consagração constitucional (artigo 65º da CRP), deveria ser aplicada extensivamente às acções executivas comuns a norma consagrada no nº 2 do artigo 244º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (abreviadamente CPPT)[1], não devendo ter sido promovida a venda da habitação própria e permanente do insolvente.
Contudo, não lhe assiste razão.
Na verdade, apesar de a Lei nº 13/2016, de 25 de Maio – que alterou o CPPT e nomeadamente o nº 2 do artigo 244º – ter como fim principal a protecção do direito à habitação perante a cobrança coerciva de dívidas fiscais, o certo é que, por força daquela norma do CPPT, a Autoridade Tributária apenas fica impedida de promover a venda judicial do imóvel que constitua casa de morada de família do executado ou do seu agregado familiar.[2] Por isso, mesmo nos processos de execução fiscal, a casa de morada de família do executado não deixa de constituir um bem susceptível de penhora.
Por outras palavras, “o objectivo do legislador (com as alterações introduzidas pela Lei nº 13/2016, de 23/05), foi o de impedir a venda da casa morada de família no âmbito dos processos de execução fiscal, protegendo, por essa via, o executado e o seu agregado familiar”.[3] Daí a razão de o legislador lhe conferir “aplicação imediata em todos os processos de execução fiscal que se encontrem pendentes à data da sua entrada em vigor” (artigo 5º da Lei nº 13/2016, de 23 de Maio).
No entanto, a protecção conferida por esta lei (sustação da venda dos imóveis para habitação nas execuções fiscais) não é aplicável aos credores particulares, como aliás, tem decidido, recorrentemente, a jurisprudência.[4] Como refere esta Relação, no já citado Acórdão de 24/03/2022 (proc. 1320/11.4TBMTA-C.L1-2), “se fosse intenção do legislador estender tal proibição de venda no âmbito de execuções comuns, bastaria legislar nesse sentido, o que não o fez, pois de outro modo estaria a restringir direitos privados (a intenção do legislador foi apenas a de proteger o direito de habitação, quando, num processo de execução fiscal, a habitação é objecto de venda judicial por iniciativa do Estado).”[5] Assim entendem ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, quando, em comentário ao artigo 794º do CPC, referem que “o artigo 244º, nº 2 do CPPT, configura um impedimento à venda judicial do imóvel penhorado que apenas vigora no âmbito do processo de execução fiscal, e já não no processo de execução comum.”[6]
Em suma, o artigo 244º do CPPT é apenas aplicável à execução fiscal. Na execução comum, tal como na execução insolvencial, é aplicável o Código de Processo Civil (na segunda, subsidiariamente, conforme artigo 17º do CIRE), diploma que não contém norma semelhante àquela. Contrariamente à casa de morada de família arrendada que, por ser um bem absolutamente impenhorável, não pode integrar a massa insolvente, a casa de morada de família própria, “é insuscetível de exclusão da execução insolvencial, encontrando-se adstrita ao pagamento dos credores”.[7]
Assim, nada justifica o pretendido cancelamento da venda da casa morada de família do insolvente e do seu cônjuge, quando estamos no âmbito da liquidação de um bem imóvel que integra a massa insolvente, a qual, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo (artigo 46º, nº 1 do CIRE). De todo o modo, para alcançar esse objectivo, teria o Recorrente, desde logo, de provar que o imóvel apreendido nos autos constituía a sua casa de morada de família e do seu cônjuge, o que não conseguiu. Na verdade, resulta do relatório sobre o estado da liquidação apresentado pelo administrador da insolvência (Refª 40175323) que em 18/10/2021 (data em que se procedeu ao arrombamento da porta de entrada da habitação dos autos e respectiva mudança de fechadura) o imóvel se encontrava devoluto de pessoas e bens, designadamente daqueles que se afiguram essenciais à economia doméstica.
Além do mais, uma vez que já se havia realizado a escritura de compra e venda do imóvel apreendido nos autos que o Recorrente alega constituir a sua casa de morada de família e do seu cônjuge, somente o comprador poderia pedir a respectiva anulação, caso se reconhecesse a existência de algum ónus ou limitação que não tivesse sido tomado em consideração e que excedesse os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria ou de um erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que havia sido anunciado (artigo 838º, nº 1 do CPC, ex vi artigo 17º do CIRE). Poderia ainda dar-se o caso de a venda ficar sem efeito por ineficácia superveniente (artigo 839º, nº 1, alíneas a) e d) do CPC) ou por invalidade processual (artigo 839º, nº 1, alíneas b) e c) do CPC).
Desta feita, improcedem, na totalidade, as alegações de recurso.

5. Pelo exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso de apelação, e, consequentemente, confirmar integralmente a decisão recorrida.
Custas a cargo da massa insolvente (artigos 303º e 304º do CIRE).

Lisboa, 04/10/2022
Nuno Teixeira
Rosário Gonçalves
Manuel Marques
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[1] Com a entrada em vigor da Lei nº 13/2016, de 23 de Maio o nº 2 do artigo 244º do CPPT passou a ter a seguinte redacção: “Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim.”
[2] Este impedimento não é absoluto, dadas as excepções previstas nos nºs 3 e 6 do artigo 244º do CPPT.
[3] Cfr. TRL, Ac. de 24/03/2022 (proc. 1320/11.4TBMTA-C.L1-2), publicado em www.direitoemdia.pt.
[4] Cfr. TRL, Ac. de 24/03/2022 (já citado) e TRP, Acs. de 29/04/2021 (proc. 25742/19.3T8PRT-A.P1) e de 07/06/2021 (proc. 936/17.0T8PRT-B.P1), todos publicados em www.direitoemdia.pt.
[5] Na exposição dos motivos constantes do projecto de Lei nº 87/XIII/1ª, que deu início ao processo de alteração legislativa com vista à protecção da casa de morada de família no âmbito dos processos de execução fiscal, ficou a constar o seguinte: “com esta medida, pretende-se proteger um direito essencial dos cidadãos, com maior relevância social, no caso do direito à habitação, posto em causa quando, num processo de execução fiscal, a habitação é objecto de venda judicial por iniciativa do Estado, por vezes em razão de quantias irrisórias face ao valor do imóvel.”
[6] Cfr. Código de Processo Civil Anotado, volume II, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 209.
[7] Cfr. MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Manual de Direito da Insolvência, 7ª Edição, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 117.