Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7988/2006-7
Relator: ANA RESENDE
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
DIREITO REAL DE GARANTIA
REGISTO PREDIAL
CANCELAMENTO DE INSCRIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- A reserva de propriedade não surge na lei tipificada como direito real de garantia sendo certo que, se o fosse, por ela se iniciaria a penhora do bem sobre a qual incidia a garantia, só podendo recair noutros uma vez reconhecida a sua insuficiência para conseguir o fim da execução (artigo 835.º, n.º1 do Código de Processo Civil).
II- Ora, assim sendo, porque não estamos face a direito real de garantia, o Tribunal não pode determinar o seu cancelamento nos termos do artigo 824.º,nº2 do Código Civil, pois só caducam com a venda os direitos reais de garantia e os demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia.
III- Por isso, o cancelamento só pode ser determinado pelo respectivo beneficiário, não podendo ser ordenado oficiosamente, não se aplicando ao caso manifestamente o disposto no artigo 119.º do Código do Registo Predial pois tal preceito tem o seu âmbito de aplicação referenciado às situações em que o registo de penhora, apreensão ou arresto tenha sido lavrado provisoriamente, não subsistindo, aliás, quaisquer dúvidas relativamente à propriedade os bem penhorado

(SC)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA 7ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I – Relatório

1. BANCO MAIS, SA veio interpor recurso de agravo do despacho que sustou os termos da acção executiva relativamente à venda do veículo de matrícula 51-03-LI, até que se mostre efectuado o cancelamento do registo de propriedade a favor daquela, juntando certidão de ónus e encargos comprovativa de tal cancelamento, nos autos que move contra A.[…] e OUTROS.

2. Nas suas alegações, formula as seguintes conclusões:
- Nos autos em que sobe o presente recurso foi logo pedida a penhora sobre o veículo automóvel com a matrícula […], penhora que foi ordenada pelo Senhor Juiz a quo.
- Não é por existir uma reserva de propriedade sobre o veículo dos autos em nome do ora recorrente que é necessário que este requeira o cancelamento da dita reserva, não tendo aliás o Senhor Juiz a quo competência para proceder a tal notificação ao exequente, ora recorrente.
- O facto de a reserva de propriedade estar registada não impede o prosseguimento da penhora, pois de acordo com o disposto no art.º 824, do CC e 888 do CPC, aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam.
- No caso de surgirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora, deve-se agir de acordo com o que se prescreve no art.º 119, do CRPredial caso a penhora já tenha sido realizada.
- Tendo o ora recorrente optado pelo pagamento coercivo da dívida em detrimento da resolução do contrato de funcionamento da reserva de propriedade para chamar a si o bem sobre a qual a mesma incide – o que, como referido, seria, neste caso, ilegítimo – tendo a exequente renunciado ao domínio sobre o bem – pois desde o início afirmou que o mesmo pertencia ao recorrido – tendo como dos autos ressalta, a reserva de propriedade sido constituída apenas como mera garantia, para os efeitos antes referidos; prevendo-se nos artigos 824, do CC e 888 do CPC, que aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam; e não se prevendo no art.º 119 do CRP que se notifique o detentor da reserva de propriedade para que requeira o seu cancelamento é manifesto que no despacho recorrido se errou e decidiu incorrectamente.
- Caso, assim, não se entenda, sempre se dirá, que deveria o exequente – titular da reserva de propriedade – ter sido notificado para se pronunciar pela renúncia ou não à propriedade do veículo, como o foi, tendo respondido, mas não notificado para requerer o seu cancelamento.
3. Foi proferido despacho de sustentação.
  4. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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II –  Enquadramento facto - jurídico

1. da factualidade
Para o conhecimento do presente recurso relevam as seguintes ocorrências processuais:
·  Na execução de sentença movida contra A.[…], G.[…] e A.[…], veio a Agravante, como exequente, Nos termos do artigo 924º do Código de Processo Civil, nomear à penhora, entre outros bens, (vi) o veículo automóvel da marca FIAT, modelo PUNTO 55 SX, com matrícula […], que pode ser encontrado junto à residência do executado […], a quem pertence.
· Efectuada a penhora veio a Agravante juntar nota de registo e certidão de encargos comprovativa do registo da penhora efectuada, requerendo que fosse dado cumprimento ao disposto no art.º 864, do CPC.
· Foi proferido despacho que convidou a exequente a juntar aos autos certidão do registo automóvel devidamente actualizada e da qual já não resulte a inscrição de reserva de propriedade.
· A agravante veio informar que não aceitava o convite.
·  Foi então proferido o despacho sob recurso, fazendo-se constar que até que se mostre efectuado o cancelamento do indicado registo, susto os termos da acção executiva relativamente à venda do veículo de matrícula […] de harmonia com o disposto nos artigos 276, n.º1, alínea c), 279, n.º1 e 466, n.º1 do Código de Processo Civil.

2. do direito

Sabendo-se que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formulado, importando em conformidade decidir as questões nas mesmas colocadas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, retenha-se desde logo que o Tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos ou fundamentos que a parte possa indicar para fazer valer o seu ponto de vista, sendo que, quanto ao enquadramento legal, não está sujeito às razões jurídicas pela mesma invocadas, pois o julgador é livre na interpretação e aplicação do direito, art.º 664, do CPC.

Assim, e em primeira linha, importa saber se como pretende a Agravante, o Mmo. Juiz a quo não tinha competência para proceder à sua notificação com vista ao cancelamento do registo de reserva de propriedade para o prosseguimento dos autos de execução, no concerne ao veículo penhorado.

Ora, atentando que segundo a Recorrente, está em causa a violação e errada interpretação dos preceitos indicados (1), sem delongas pode-se concluir que se visa discutir a legalidade do despacho proferido em confronto com tais normativos, e não qualquer tipo de incompetência que nesses termos devesse ser conhecida.

Reportando-se à ilegalidade do decidido, diz a Agravante, em síntese, que o facto de a reserva de propriedade estar registada não impede o prosseguimento da execução relativamente ao bem penhorado, após a realização desta, pois de acordo com art.º 824, do CC e 888, do CPC, aquando da venda deve o Tribunal ordenar o cancelamento oficioso de todos os registos que incidam sobre tal bem, sendo as eventuais dúvidas sobre a respectiva propriedade sanadas com recurso a disposto no art.º 119, do CRPredial.

Não desconhecendo a falta de unanimidade no que a esta questão diz respeito, patenteada nas indicações efectuadas nas alegações produzidas, bem como nos despachos recorrido e de sustentação, temos como bom, e adiantando, o entendimento perfilhado na decisão sob recurso.

Vejamos.

Como se sabe é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações, pela outra parte, ou até à verificação de qualquer outro evento, dependo a oponibilidade a terceiros de tal cláusula, do respectivo registo, no caso da alienação de bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, art.º 409, n.º1, e 2, do CC.

Daí, mas também face ao disposto no art.º 5, n.º1, b) do DL 54/75 de 12.2, resulta que em contratos de alienação de veículos, como o em causa nos presentes autos, a reserva de propriedade está sujeita ao registo.

Compreende-se que assim seja, porquanto tendo presente a função essencial da reserva de propriedade, isto é, permitir a restituição do bem ao vendedor através da resolução do contrato, o registo da clausula respectiva garante ao mesmo que, no caso de execução, o bem não passa para o domínio de terceiro, antes continuando a fazer parte do acervo patrimonial do devedor, como tal susceptível de ser executado, pretendendo-se desse modo que o bem possa apenas ser objecto de alienação, ou execução, por parte do vendedor.
   
Neste último caso, isto é, na venda em execução, transmitindo-se para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida, consigna-se no n.º2, do art.º 824, do CC, que os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior aos de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo, prevendo-se no art.º 888 (2), agora do CPC, que após o pagamento do preço e do imposto devido pela transmissão, são oficiosamente mandados cancelar os registos dos direitos reais que caducam, nos termos do n.º2, do art.º 824, do Código Civil, entregando-se ao adquirente certidão do respectivo despacho.

Decorre da conjugação destas disposições legais enunciadas que o tribunal só ordena o cancelamento dos direitos que caducam com a venda, que são tão só os enumerados no n.º2 do citado art.º 824, do CC, isto é, os direitos reais de garantia, bem como os demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia.

Em conformidade, para que o tribunal pudesse ordenar, oficiosamente, o cancelamento do registo de reserva de propriedade sempre seria necessário que o tal direito assumisse a natureza de direito real de garantia, pois como direito real de gozo, anterior ao registo de penhora, subsistiria após a venda executiva, tal como estipula o mencionado n.º2, do art.º 824, do CC.

Ora, apesar de não haver unanimidade quanto à natureza da reserva de propriedade (3), certo é que a mesma não nos surge incluída na enumeração legal dos direitos reais de garantia, sabendo-se que no nosso sistema jurídico prevalece o princípio da tipicidade dos direitos reais, para além de, adite-se, a entender-se como garantia real, impor que a Agravante, como exequente, formulasse o requerimento de nomeação de bens à penhora em observância do então art.º 835, do CPC, isto é, com a indicação que a penhora começava, independentemente de nomeação, pelos bens em que incidia a garantia, no caso o veículo automóvel, e só podia recair noutros se reconhecida a insuficiência deles para conseguir o fim da execução.
 
Do exposto decorre a necessidade de se proceder ao cancelamento do registo da reserva de propriedade, em momento anterior ao da realização da venda judicial, permitindo até o cabal aproveitamento na mesma de todo o potencial económico do bem em causa (4), no atendimento de, não caducando o registo em causa com a venda judicial, o respectivo cancelamento só poderá ocorrer por iniciativa do seu beneficiário (5).

Salienta-se ainda que o mecanismo previsto no art.º 119, do CRPredial, ex vi art.º 29, do DL 54/75, de 12.2, não permite, como pretende a Agravante, que os autos prossigam sem que se mostre cancelado o registo da reserva de propriedade, pois e desde logo, tal preceito tem o seu âmbito de aplicação, como expressamente no mesmo se prevê, às situações em que o registo da penhora, apreensão ou arresto, tenha sido lavrado como provisório, o que não se verifica no caso sob análise (6), mas também porque é manifesto que não existem quaisquer dúvidas relativamente à propriedade do bem penhorado (7).

Assim, e na conformação legal do decidido, não pode deixar de concluir-se pela improcedência das conclusões formuladas pela Agravante.

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III – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em negar provimento ao agravo, mantendo o despacho sob recurso.

Custas pela Agravante.
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Lisboa, 14 de Novembro de 2006
Ana Resende
Dina Monteiro
Luís Espírito Santo



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1.-Art.º 888, do CPC, 5º, n.º1 b) e 29 do DL 54/75, de 12.2, 7º e 119, do CRPredial e 408, 409, n.º1, 601, e 879, a) do CC.

2.-Na redacção anterior às alterações decorrentes do DL 38/03, de 8.3, como decorre do n.º 1, do art.º 21, desse mesmo diploma.

3.-Inocêncio Galvão Telles, in Direito das Obrigações, pag. 471, e Antunes Varela in Das Obrigações em Geral, vol. I, pag. 313, qualificam a cláusula de reserva de propriedade como condição suspensiva da alienação, Pedro Romano Martinez e Pedro Fuseta da Ponte, in Garantia de Cumprimento, pag. 221, consideram a reserva de propriedade como garantia indirecta, mas não garantia real, Luis Lima Pinheiro, in A Cláusula de Reserva de Propriedade, pág. 104, considera a cláusula de reserva de propriedade como uma convenção de garantia acessória do contrato de compra e venda.

4.-No Ac. RL de 14.12.2004, in www.dgsi.pt, fez-se constar que o cancelamento do registo da reserva antes de se passar à fase de venda impede que possam sair goradas ou agravadas as expectativas de terceiro que venha a adquirir o bem na venda judicial., confrontado posteriormente com a necessidade de cancelar tal registo, pensando que obtivera um bem totalmente desonerado.

5.-Cfr. Acs da RL de 21.02.2002 e de 30.04.2002, in respectivamente CJ 2002, tomo I, pág. 112, CJ 2002, tomo II, pág. 124 .

6.-Sem cuidar de saber se a existência de uma inscrição de reserva de propriedade a favor do exequente sobre o bem não determinaria o registo provisório da penhora do mesmo.

7.-Daí compreende-se que, na prática, quando existe um registo de reserva de propriedade sobre o bem penhorado, o registo da penhora seja lavrado definitivamente, a não ser que esta última seja relativa a terceiro não beneficiário daquela reserva.