Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10015/2006-9
Relator: RIBEIRO CARDOSO
Descritores: ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: 1. Para as situações em que se verifique um afastamento crítico entre o modelo formal de integração de uma conduta em determinado tipo legal e as circunstâncias específicas que façam situar a ilicitude ou a culpa aquém desse modelo, a lei dispõe de um instituto que funciona como instrumento de segurança do sistema: a atenuação especial da pena com os pressupostos do artigo 72º do Código Penal.

2. Para além dos casos para os quais a lei expressamente determine uma pena especialmente atenuada - v. g., tentativa (art.23, n.º 2), cumplicidade (art. 27, n.º 2), o que, em termos gerais, levará o Tribunal a atenuar especialmente a pena, será a constatação de uma acentuada diminuição da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena, decorrente de circunstâncias anteriores, contemporâneas ou posteriores ao crime, nomeadamente das que, exemplificativamente, se apontam no nº 2 do preceito.
Decisão Texto Integral: Acordam, precedendo audiência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I

1. No processo comum colectivo n.º 44/05.6TAVFC do Tribunal Judicial de Vila Franca do Campo, foi submetido a julgamento o arguido J., melhor identificado a fls. 309, sob acusação da prática, em autoria material, de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172 n.º1 e 2 do Código Penal.

2. O arguido não apresentou contestação.

3. Efectuado o julgamento, o tribunal, por acórdão proferido em 14 de Julho de 2006, na procedência da acusação, deliberou condenar o arguido pela prática do referido crime na pena especialmente atenuada de dois anos de prisão e suspender a execução daquela pelo período de dois anos.

4. Inconformado com a pena aplicada e com a suspensão da sua execução, o Ministério Público veio interpor recurso, pugnando pela condenação do arguido em pena não inferior a 3 anos de prisão, ou de três anos de prisão, mas sempre efectiva, extraindo da sua motivação, as conclusões que a seguir se transcrevem:

1.ª - A matéria de facto provada não fornece fundamentos objectivos que permitam uma atenuação especial da pena;

2.ª - A matéria de facto provada não fornece fundamentos objectivos assentes na personalidade do arguido, nas suas condições de vida, na sua conduta anterior e posterior ao crime, nas circunstâncias deste (pelo menos dois actos de coito anal com o menor) de expectativas de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarão de forma adequada e suficiente as finalidades da punição;

3.ª - O acórdão em apreço violou os art. 71 n.º 1; 72 e 50 n.º1, do Código Penal;

4.ª - O acórdão em apreço deve ser revogado e substituído por outro que condene o arguido em pena não inferior a 3 anos de prisão, ou de 3 anos de prisão, mas sempre efectiva.”

5. O recurso foi admitido por despacho de 13 de Setembro de 2006 (v. fls.331).

6. O arguido não respondeu.

7. Subidos os autos a este Tribunal, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto, não emitiu qualquer parecer.

8. Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre decidir.

II

9. Na primeira instância foram dados como provados e não provados os seguintes factos:

9.1 – Factos Provados:

No dia 25 de Setembro de 2005, na parte da tarde, R., nascido a … de 1992, através de uns pastos, entrou no quintal anexo à residência de J., sita na Rua N., em Vila Franca do Campo.

Era sua intenção apoderar-se de fruta existente naquele quintal.

Uma vez lá dentro foi surpreendido pelo arguido, o qual entabulou com ele conversa.

A dada altura o arguido ofereceu um isqueiro da marca «Zippo» ao menor, a troco de este manter consigo relações sexuais, ao que ele acedeu.

Chegando-se para o interior da casa o J. e o R. despiram as roupas que envergavam, ficando nus da cintura para abaixo. Depois, sem usar preservativo, o arguido aproximou o pénis erecto do ânus de R., exerceu pressão até entrar e friccionou-o até ejacular.

Logo após, o J. deu o referido isqueiro ao R., que se encaminhou para o quintal, com vista a regressar a casa pelo mesmo caminho.

Já no quintal, junto a uma casa de despejo ali existente, o arguido voltou a agarrar o menor por trás, mostrando a intenção de reatar as relações sexuais. Então, ambos despiram novamente as calças e de seguida J. introduziu novamente o pénis no ânus do R., passando a fazer os movimentos sincopados semelhantes aos da cópula até que foram surpreendidos por J S., vizinho do arguido.

Sentindo-se espiados o arguido e o menor esconderam-se dentro de casa, de onde este veio a sair mais de uma hora depois, voltando a saltar o muro do quintal para os pastos em direcção a sua casa.

O arguido agiu com o propósito de satisfazer os seus desejos sexuais, apesar de saber que o R. tinha menos de catorze anos.

Sabia que o seu comportamento era proibido por lei mas isso não o inibiu de levar por diante a sua vontade.

Mais se provou: que o arguido tem 56 anos de idade e é solteiro. Tem como habilitações literárias a 3.ª classe. Está aposentado, mas antes disso era trabalhador indiferenciado do município vilafranquense. Antes de preso (encontra-se preso preventivamente desde 20/10/2005 - cfr.fls. 73/78) vivia sozinho em casa própria que herdou dos seus progenitores. Essa casa não é fornecida de electricidade nem de água. A higiene da casa é assegurada pela visita periódica de uma empregada. O arguido tem hábitos alcoólicos e atitude débil, o que muitas vezes o torna alvo da chacota dos rapazes da vizinhança. Não regista antecedentes criminais

O arguido é vizinho do menor, o qual reside numa rua paralela à sua.

O menor R. tinha, em 25/9/2005, 13 anos de idade. Tem uma idade aparente correspondente à sua idade real e uma personalidade estruturada de acordo com essa idade, apesar de ser portador de uma ligeira oligofrenia.. E o facto acontecido ficará marcado na memória da sua história de vida na área sexual,

9.2 – A respeito de factos não provados, o tribunal recorrido fez constar que não se provou que: “O menor R . tenha entrado no quintal do arguido pela janela da residência.”

9.3 - 3 – O tribunal recorrido exarou a seguinte fundamentação da matéria de facto:
“O tribunal colectivo estribou a sua convicção quanto aos factos que julgou provados a partir das declarações do menor ofendido (tomadas para memória futura - cfr. fls. 136/141 e apenso com as transcrições) dos depoimentos das testemunhas M B. (mãe do menor R.), J S (vizinho do arguido e que avistou da sua casa a cena passada na casa de despejo) e D. S. (vizinho de muitos anos do arguido e conhecedor da vida deste), conjugados com as fotografias de fls. 86/94 e 96/98 (da casa e quintal do arguido, onde os factos ocorreram), relatório de exame médico-legal ao menor (feito quase um mês depois dos factos), relatório do exame à personalidade do menor (realizado por psicóloga clínica no Hospital de Ponta Delgada) e certificado de registo criminal (fls. 234).

O arguido confirmou conhecer o menor R., por ser seu vizinho. Referiu tê-lo surpreendido no seu quintal no dia dos factos. Disse que então o interpelou, perguntando-lhe o que estava ali a fazer e que ele se foi embora pelo mesmo caminho, nada mais se passando. Mesmo depois de confrontado com o facto de haver um vizinho que afirma tê-lo visto nas circunstâncias acima referidas continuou a negar que tenha mantido qualquer contacto de natureza sexual com o menor.
O menor nas suas declarações para memória futura conta, a custo, o que terá acontecido na tarde do dia 25/9/2005 na casa e depois na casa de despejo sita no quintal do arguido, confirmando no essencial o que vinha descrito na acusação. A sua mãe apenas é conhecedora do que lhe foi dito pelo menor (e por vergonha foi pouco) ou pela Comissão de Protecção de Menores, acrescentando ser sua convicção que tudo não terá passado de um facto isolado, mostrando ter pena do arguido.

J. S., por seu turno, descreveu com pormenor as circunstâncias em que avistou o menor no quintal do seu vizinho J. e com este, de molde a confirmar o que o menor já havia dito. A testemunha D. S. confirmou o que já antes havia sido afirmado por MB e por J S, no sentido de o arguido ser pessoa pouco considerada e alvo de chacota da «rapaziada». Por seu turno as fotografias mostram o quadro em que os factos terão ocorrido, em termos que correspondem aos relatos do menor e da testemunha J.S. O relatório médico pouco acrescenta, concluindo apenas que está excluída a prática continuada de coito anal. E o relatório à personalidade do menor evidencia que ele tem uma personalidade estruturada de acordo com a sua idade, apesar da ligeira oligofrenia que lhe foi diagnosticada e que o facto acontecido ficará marcado na memória da sua história de vida na área sexual. O certificado de registo criminal mostra que o arguido não tem antecedentes criminais.

Os autos não foram providos com relatório social, elemento que não sendo essencial se mostra sempre importante para conhecer as condições pessoais do arguido quando estão em causa (ainda que meramente em potência) penas de prisão elevadas (como e o caso).
Não obstante as testemunhas inquiridas foram-se referindo à personalidade e modo de vida do arguido, acabando este depois por completar o quadro nas declarações finais, confirmando o que foi sendo dito.

Tanto o arguido como o menor referem que este terá entrado no quintal “pelas terras» ou «pelos pastos», o que afasta do rol dos factos provados a alegação constante do libelo de que teria entrado por uma janela.

Os documentos e exames referidos constam dos autos. As declarações do arguido e os depoimentos testemunhais foram gravados, constando os respectivos registos nas cassetes, nas rotações indicadas na acta.”.

10. O recurso é um meio processual que visa provocar uma reapreciação de uma decisão judicial de forma a corrigi-la de imperfeições, que pela sua importância não consentem uma forma de remédio menos solene (cf. Simas Santos e Leal - Henriques in Recursos em Processo Penal - 2ª edição - Rei dos Livros pág. 19).

As Relações julgam de facto e de direito - art. 428 nº 1 do C.P.P. mas o duplo grau de jurisdição está condicionado e limitado à previsão do art. 412 nºs 2 e 3 do C.P.P.

Sem embargo dos vícios de conhecimento oficioso, são as conclusões do recurso delimitam o âmbito do conhecimento do mesmo, pois são estas que habilitam o tribunal superior a conhecer as pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida (art. 402.º, 403.º e 412.º n.º1, todos do C. P. Penal).

No caso, não foi impugnada a matéria de facto, pelo que o recurso é restrito à matéria de direito, importando examinar (já que não se detecta no texto do acórdão recorrido qualquer dos vícios arrolados nas alíneas a), b) e c) do art. 410.º/2, do CPP, nem, aliás, a questão foi suscitada em sede de recurso), se:

a) Se o tribunal recorrido errou ao atenuar especialmente a pena de prisão aplicada ao arguido e ao decretar a sua suspensão;

b) Se deve ser aplicada ao arguido pena não inferior a 3 anos de prisão efectiva.

11. Comecemos pela primeira questão elencada.

Embora o digno recorrente não questione de nenhum modo o enquadramento do jurídico dos factos, sempre se dirá que nenhuma censura merece a decisão do tribunal. De facto, mostram-se preenchidos quer o tipo objectivo quer o tipo subjectivo do ilícito em questão - crime p. e p. pelo artigo 172 n.º 2 do Código Penal (coito anal com menor de 14 anos).

Quanto à questão de saber se a decisão revidenda, no plano da determinação da medida da pena, padece de inadequação, impõe-se referir que o tribunal colectivo tratou a questão da medida da pena e sua suspensão nos termos seguintes:

“ Na determinação da medida concreta da pena deve atender-se à culpa e às necessidades de prevenção exigidos pelo artigo 71° do Código Penal. O primeiro fornecerá o limite máximo da pena que ao caso cabe aplicar, sendo depois razões de prevenção (geral de integração - e especial de socialização), que condicionam a medida final e concreta da pena a aplicar.

O crime previsto no n.º 2 é punível com uma pena de 3 a 10 anos de prisão.

Conforme se provou, o arguido tem 56 anos de idade, está reformado, vive em condições precárias (sem água nem luz em casa e com as condições que as fotografias documentam) e é pessoa pouco mais que débil. Já conta com quase 10 meses de prisão preventiva. E se é certo que não confessou o facto, isso ficará a dever-se à circunstância de o arguido estar profundamente envergonhado do que fez e de o facto se ter tornado público, o que aliado às circunstâncias referidas relativas à sua condição, à cultura da comunidade que integra e às demais características idiossincráticas do meio se compreende. A isto acresce a circunstância de a vítima em questão estar na data dos factos à beira dos 14 anos (faltavam 4 meses), o que tornaria inexistente o crime, ou pelo menos um crime com uma moldura tão pesada. Tudo isto para considerar que as circunstâncias do caso justificam uma atenuação especial da pena, conforme previsto no artigo 72° do C. Penal, se não por via de uma acentuada diminuição da culpa, pelo menos por via de acentuada diminuição da necessidade da pena.

Desta atenuação especial decorre que a moldura abstracta da pena de prisão é reduzida no seu limite máximo de um terço e o limite mínimo ao mínimo legal (artigo 73°, n.º1, als. a) e b) do C. Penal. Assim, a moldura abstracta do crime em causa passa a ser de l mês a 6 anos e 8 meses de prisão.
Analisando e pesando agora cada o facto criminoso de acordo com as orientações constantes do artigo 71° do Código Penal, importa nomeadamente ponderar que foi directa a forma do dolo; que o arguido não regista antecedentes criminais; e que é de modesta condição social.

Porque o arguido é pouco mais que débil o juízo sobre a culpa há-de reflectir essa circunstância, atenuando-a. Já no que respeita à prevenção geral positiva, tendo em conta as características do meio social em causa e o facto de o arguido já ter estado 10 meses em prisão preventiva, ter-se-á de concluir não serem elevadas as exigências comunitárias para a manutenção da confiança na validade da norma violada.

No que tange às necessidades de prevenção especial, tendo em conta a prisão preventiva sofrida entretanto pelo arguido e o que isso necessariamente terá para ele representado, também não poderão considerar-se elevadas. Tudo considerando julga-se adequado fixar a pena concreta do crime praticado em 2 anos de prisão.

Isto posto, coloca-se agora o problema de aquilatar se a pena que o arguido deve cumprir é a prisão efectiva ou se pode aqui haver o concurso de alguma pena de substituição cuja aplicação seja ainda suportada pelas expectativas comunitárias e adequada à sua reinserção social. Imbrica o raciocínio exigido no princípio político-criminal básico da necessidade da pena ínsito no n° 2 do artigo 18° da Constituição da República.

Importará ter presente que nesta matéria não intervêm quaisquer considerações decorrentes nem da turba justiceira que tem campeado no país (sobretudo nalguns meios; em razão da mediatização de um concreto processo judicial de Lisboa), nem da moda que tem suscitado interesses e até paixões exacerbadas. Os critérios são unicamente os da lei, tendo o julgador o dever estrito de os seguir, sob pena de deslegitimar a sua intervenção. Claro está que os critérios da lei fazem posicionar, logo em primeira linha (que nunca é demais relembrar), que esta área da criminalidade não está amputada das respostas criminais substitutivas.

A função primordial do direito penal é, como sabido, a protecção de bens jurídicos, traduzindo-se a finalidade primária da pena na estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada (prevenção geral). A pena deve em toda a sua extensão possível evitar a quebra de inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade (prevenção especial) - artigo 40° do Código Penal.

A própria lei estabelece no artigo 50°, n° l do Código Penal que:

«1- O tribunal suspende a execução da pena de prisão não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarão de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.»

Seguindo os ensinamentos da doutrina, a propósito desta matéria, relembra-se que: «a finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente no futuro da prática de novos crimes (...), por isso, um prognóstico favorável fundante da suspensão não está excluídos.» - Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, 1993 Aequitas, Editorial Noticias, pág. 343.


Nesta matéria diz Jescheck - Tratado de Derecho Penal, 2, vol., pág. 1152.
que na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose social favorável ao agente, baseada num risco prudencial. O Tribunal deverá assumir um risco prudente; mas se existirem sérias dúvidas sobre a capacidade do condenado para compreender a oportunidade de ressocialização que se oferece, a prognose deve ser negativa.

Já passou quase 1 ano sobre a data da prática dos factos e a mãe do ofendido manifestou claramente em audiência ter pena da situação actual do arguido. Por outro lado, no que é mais relevante, o arguido é primário e merece por isso ter a oportunidade de fazer agulha e mudar o curso da sua vida. Para isso a experiência prisional entretanto sofrida e a reflexão que dentro das suas capacidades terá tido oportunidade de fazer poderá ser um bom tónico. Para além disso o arguido passará a conviver com a vigilância que os seus familiares e amigos necessariamente sobre ele exercerão. É por isso de crer que a simples ameaça da prisão será suficiente para o afastar, definitivamente, da prática de actos congéneres. Pelo que, assim considerando, nos termos do disposto no artigo 50 do Código Penal deverá tal pena ser suspensa na sua execução, pelo período de 2 anos.”

O Digno recorrente insurge-se quanto à atenuação especial da pena e à moldura estabelecida, tendo argumentado nos termos seguintes:

Não pode o recorrente aceitar pacificamente tal decisão. Ela não está prevista expressamente na lei substantiva para o caso em apreço; não se verifica qualquer das circunstâncias elencadas, a título exemplificativo, no n.º 2 do artigo 72° do Código Penal; pelo contrário, o arguido não se mostrou arrependido, nem envergonhado - nem tal ficou provado - pois que nem confessou o cometimento do crime. Se bem que aceitemos que os actos cometidos pelo arguido integrem um único crime, não devemos esquecer que tais actos foram de coito anal por duas vezes.

Foi o tribunal que atribuiu à vergonha que admitiu que o arguido sente, o facto de ele não ter confessado o crime.

E o tribunal não usa de objectividade quando procura justificar tal ausência de confissão. Recorre a uma suposição, subjectiva, sem qualquer suporte fáctico, à cultura da comunidade que o arguido integra e às demais características idiossincráticas do meio, sem gastar uma única palavra que permita compreender o que tal significa.

Também o tribunal recorre a critérios subjectivos de avaliação quando distingue o que a lei não distingue, referindo-se ao facto de o ofendido ter 14 anos menos 4 meses, e à quase desnecessidade de pena.

Do mesmo passo desvaloriza o facto provado de que "o facto acontecido ficará marcado na memória da sua história de vida na área sexual", quando estamos na presença normas cujo valor protegido é precisamente a liberdade de determinação sexual das pessoas.

Nem se aceita pacificamente que não sejam elevadas as exigências comunitárias para a manutenção da confiança na validade da norma violada, sobretudo num tempo em que as comunidades tendem para perder (finalmente) a vergonha de denunciar actos como os praticados pelo arguido, e tendo em conta que o arguido é vizinho do ofendido.

No que concerne à suspensão da execução da pena, não se compreende que expectativa pode ter o tribunal quando, após 10 meses de prisão preventiva, durante as quais o tribunal imaginou que o arguido terá reflectido, o arguido não confessou a prática do crime. O tribunal valorizou "a vigilância que os familiares e amigos" do arguido "necessariamente sobre ele exercerão", sem qualquer fundamento, salvo o devido respeito, pois que tudo indica - e isto é matéria provada - que o arguido vive ao abandono, entregue a si próprio, em condições próximas da miséria.

Estes são factos provados: a casa do arguido "(...) não é fornecida de electricidade nem de água. A higiene da casa é assegurada pela visita periódica de uma empregada. O arguido tem hábitos alcoólicos e atitude débil, o que muitas vezes o toma alvo da chacota dos rapazes da vizinhança.(...)". Em suma, o arguido é indigente e tomado como marginal na localidade onde vive.

Por tudo isto se entende que o arguido deveria ter sido condenado em pena de prisão efectiva por 3 anos.

E com esta alegação não se pretende integrar "a turba justiceira que tem campeado no país" nem seguir a "moda que tem suscitado interesses e até paixões exacerbadas". Simplesmente se afigura que os critérios seguidos não foram unicamente os da lei, ou que estes não foram correctamente aplicados.

Vejamos:

O instituto da atenuação especial da pena, envolvido por várias cambiantes e apelando a diversas vertentes, não inibe, na peculiaridade dos seus pressupostos, no rigor dos seus ditames e na inconveniência da sua vulgarização, uma certa flexibilidade do julgador conducente a admitir, em certos casos concretamente muito especiais e mesmo que aparentemente não pareça dever ser admitida, a possibilidade da sua aplicação (cf. Ac. do STJ de 7.10.99, in proc.598/99, SASTJ n.º34, pag.78).

Para as situações em que se verifique um afastamento crítico entre o modelo formal de integração de uma conduta em determinado tipo legal e as circunstâncias específicas que façam situar a ilicitude ou a culpa aquém desse modelo, a lei dispõe de um instituto que funciona como instrumento de segurança do sistema: a atenuação especial da pena com os pressupostos do artigo 72 do Código Penal.

Com efeito, quando o legislador dispõe sobre a moldura penal para certo tipo de crime tem de prever as mais diversas formas e graus de realização do facto, desde os de menor até casos de maior gravidade, especialmente para ter em conta situações pessoais do agente em que a prevenção geral não imponha e a prevenção especial não exija uma pena a encontrar nos limites da moldura penal do tipo.

Para resolver situações em que «a capacidade de previsão do legislador é necessariamente ultrapassada pela riqueza e multiplicidade de situações reais da vida» e em que, «em consequência, mandamentos irrenunciáveis de justiça, adequação (ou necessidade) da punição» impõem-se que o sistema disponha de uma válvula de segurança que permita responder a casos especiais, em que concorram circunstâncias que «diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada relativamente ao complexo normal» de casos que o legislador terá previsto e para os quais fixou os limites da moldura respectiva (cfr., JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, "Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime", 1990, p. 302).

A esta ideia político-criminal responde o instituto da atenuação especial da pena, previsto no artigo 72 do Código Penal.

O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existam circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena - artigo 72 n.º1.

O nº 2 enumera algumas circunstâncias que podem ser consideradas para o efeito de diminuir de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa ou a necessidade da pena, ou seja, também diminuição das exigências de prevenção.

Pressuposto material da atenuação da pena, autónomo ou integrado pela intervenção valorativa das situações exemplificativamente enunciadas, é a acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção.

Mas acentuada diminuição significa casos extraordinários ou excepcionais, em que a imagem global do facto se apresenta com uma gravidade tão específica ou diminuída, que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em tais hipóteses quando estatuiu os limites normais da moldura do tipo respectivo (cfr. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, idem, p. 306; e v. g., acórdãos do STJ de 18-10-2001, proc. 2137/01, e de 30-10-2003, in CJ (STJ), ano XI, tomo III, p. 208, de 3-11-2004, in CJ (STJ), Ano XII, tomo III, p. 217, e de 25.05.2005, proc.1566/05).

No entanto, quando estiverem verificados os pressupostos materiais, a atenuação especial da pena só pode, pois, ser decretada (mas se puder deve sê-lo) quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, quer pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, com a consequente atenuação da necessidade da pena - vista a necessidade no contexto e na realização dos fins das penas.

No caso, o tribunal a quo interpretou a complexidade da situação concreta (a imagem global do facto) e encontrou aí elementos que determinaram a atenuação especial da pena, atendendo, particularmente, a que o arguido tem 56 anos de idade, está reformado, vive em condições precárias (sem água nem luz em casa e com as condições que as fotografias documentam) e é pessoa pouco mais que débil. Já conta com quase 10 meses de prisão preventiva. A circunstância da vítima em questão estar na data dos factos à beira de perfazer os 14 anos (faltavam 4 meses), o que tornaria inexistente o crime, ou pelo menos um crime com uma moldura tão pesada.

Salienta ainda o tribunal recorrido que,” se é certo que não confessou o facto, isso ficará a dever-se à circunstância de o arguido estar profundamente envergonhado do que fez e de o facto se ter tornado público, o que aliado às circunstâncias referidas relativas à sua condição, à cultura da comunidade que integra e às demais características idiossincráticas do meio se compreende.”

Tudo isto para considerar que as circunstâncias do caso justificam uma atenuação especial da pena, conforme previsto no artigo 72 do C. Penal, se não por via de uma acentuada diminuição da culpa, pelo menos por via de acentuada diminuição da necessidade da pena.

Será de manter este entendimento?

Para além dos casos para os quais a lei expressamente determine uma pena especialmente atenuada - v. g., tentativa (art.23, n.º 2), cumplicidade (art. 27, n.º 2), o que, em termos gerais, levará o Tribunal a atenuar especialmente a pena, será a constatação de uma acentuada diminuição da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena, decorrente de circunstâncias anteriores, contemporâneas ou posteriores ao crime, nomeadamente das que, exemplificativamente, se apontam no nº 2 do preceito.

Dessas três vertentes - ilicitude, culpa ou necessidade da pena - de cuja diminuição acentuada há-de resultar tal efeito especialmente atenuativo da pena, a primeira e a terceira estarão, no caso, fora de cogitação.

Com efeito:

Quanto à ilicitude da conduta do arguido, o quadro fáctico apurado é bem elucidativo, não apenas recusando qualquer diminuição acentuada dessa ilicitude, antes apontando decididamente para a sua acentuada exasperação, uma vez que o arguido praticou, por duas vezes, coito anal com o menor.

No caso, verifica-se um dolo com alguma intensidade, atento o iter do crime em presença, evidenciador de uma firme vontade, por parte do arguido, de praticar os factos, atentando contra a liberdade e autodeterminação sexual do menor.

Com efeito, até aos 14 anos, a lei fornece uma protecção absoluta dos menores no que concerne ao seu desenvolvimento e crescimento sexuais. A lei protege-os, inclusivamente, deles próprios, considerando irrelevante o eventual consentimento que prestem para a prática de actos sexuais.


Sem embargo, não pode deixar de se reconhecer, por um lado, que «a plasticidade do instinto sexual faz com que o livre exercício da sexualidade (mormente nos primeiros estádios da vida), revista uma importância fundamental para o desenvolvimento da personalidade individual, justificando assim a sua especificidade no seio dos crimes contra a liberdade em geral» (cfr. Karl Prelhaz Natscheradetz, «O Direito Penal Sexual», p. 158) e, por outro lado, que «os tipos de experiências sexuais que uma pessoa tem, especialmente durante a adolescência, são importantes na direcção ou reforço do fluxo da sua preferência sexual» (cfr. Weinberg, Williams e Prior, citados por José Mouraz Lopes, em «Os Crimes Contra a Liberdade e Autodeterminação Sexual no Código Penal», 1998, p. 81), «sendo por isso importante que, nesta fase da formação da personalidade se procure de sobremaneira um desenvolvimento adequado da sexualidade, no sentido de proteger a liberdade do menor no futuro, para que decida, em liberdade, o seu comportamento sexual» (José Mouraz Lopes, ibidem) ou, ainda, que «a especificidade destes crimes reside como que numa obrigação de castidade e virgindade quando estejam em causa menores, seja de que sexo forem» (cfr. Figueiredo Dias, em «Código Penal – Actas e Projecto da Comissão de Revisão», Ministério da Justiça, 1993, p. 261).

Por outro lado, como salienta, o magistrado e professor da Escola de Magistratura Francesa, Xavier Lameyre, em artigo publicado no « Le Monde, de 6.5.2005, acessível in http://www.ldh-toulon.net/spip.php?article624, impõe-se ter presente que:

«Il existe aujourd'hui, même si ce n'est pas facile à entendre, un traitement pénal démesuré des infractions sexuelles. Souvent, les règles élémentaires de présomption d'innocence et d'examen des preuves ne sont pas respectées, on l'a vu au procès d'Outreau.

Il y a une espèce d'assourdissement de la justice pénale face à la clameur publique, l'hyper-répression de cette criminalité étant une des facettes de ce que Denis Salas nomme le "populisme pénal" - Le Monde du mardi 3 mai.

L'utilisation de la loi comme simple outil de communication, le recours croissant à ce que Pierre Mazeaud, le président du Conseil constitutionnel, a nommé "des lois d'affichage", traduit une surenchère démagogique bien plus que l'intérêt du législateur pour l'application effective des dispositions votées. En voulant répondre à l'attente des victimes, on tolère une inquiétante déshumanisation des auteurs, systématiquement assimilés à des"monstres", à des "prédateurs".

Comme pour la viande bovine, on parle de leur "traçabilité" au moyen d'un fichage spécial et d'une éventuelle surveillance électronique mobile. Cette démesure pénale est aussi perceptible dans le renversement des valeurs. Plus sévèrement condamné, en particulier quand il a été commis sur mineur, le meurtre psychique qu'est le viol semble, plus que le meurtre physique, être devenu le crime absolu.

C'est une évolution majeure que le "Tu ne tueras point" soit remplacé, après plusieurs millénaires, par le Noli me tangere : "Ne me touche pas."»

De profondes mutations traversent nos institutions, l’Etat, l’école, la famille, et provoquent ce que le philosophe Ruwen Ogien nomme une "panique morale" .

Face à cette irrépressible inquiétude de la société, la justice pénale se trouve bien démunie pour répondre aux attentes d’une opinion qui peine à comprendre que le droit ne peut être confondu avec la morale, que le récit et la temporalité judiciaires ne sont ni ceux des médias ni ceux des politiques.

Il n’a pas besoin de lois nouvelles pour réprimer efficacement les infractions sexuelles mais de moyens humains, en personnel et en formation, et du temps, pour appliquer correctement les nouvelles normes.
Le procès d’Angers, les doutes relevés sur la conduite de l’enquête montrent à leur manière l’écart entre une législation devenue très complète et des pratiques encore malheureusement défaillantes. »

Mas se, pela vertente da ilicitude, se não pode lograr a almejada atenuação especial da pena, tão-pouco ela será viável pela vertente da necessidade da pena, não se vendo qualquer factor que reduza de algum modo - menos ainda, acentuadamente - as exigências de prevenção, geral e especial, que a aplicação da pena deverá satisfazer (art. 40, n.º 1, e 71, n.º1, do C. Penal).

Logo no plano da prevenção geral, essas exigências são consabidamente muito elevadas, se tivermos presente a marcada sensibilidade e o alarme da sociedade em relação aos comportamentos desta natureza, o que, à partida, reclama penas suficientemente desencorajadoras.

E, no caso, não se antolham quaisquer circunstâncias que permitam supor que, nesse plano, essas exigências se mostrem assim esbatidas, o que basta para concluir que não será por razões de diminuição acentuada da necessidade da pena que aqui se poderá justificar a sua atenuação especial.

Resta, assim, a possibilidade dessa atenuação assentar na diminuição acentuada da culpa do arguido.

Como resulta dos factos provados, o arguido tem 56 anos de idade e é solteiro. Tem como habilitações literárias a 3.ª classe. Está aposentado, mas antes disso era trabalhador indiferenciado do município vilafranquense. Antes de preso, vivia sozinho em casa própria que herdou dos seus progenitores. Essa casa não é fornecida de electricidade nem de água. A higiene da casa é assegurada pela visita periódica de uma empregada. O arguido tem hábitos alcoólicos e atitude débil, o que muitas vezes o torna alvo da chacota dos rapazes da vizinhança. Não regista antecedentes criminais.

Se bem interpretamos a expressão usada pelo tribunal colectivo ao dar como provado que o arguido tem uma “atitude débil”, estaremos perante um indivíduo com deficit de inteligência, dotado de pouco poder crítico, com enfraquecimento da vontade e consequente menor resistência perante impulsos sexuais, no limiar da imputabilidade.

Tal deficiência, aliada aos hábitos alcoólicos do arguido, permitirão entender que o arguido viva nas condições em que vive.

O abuso sexual do menor ocorreu, pois, num ambiente muito especial associado à pobreza, baixa cultura e consumo de álcool do arguido, que revela problemas de socialização, ainda que não possua antecedentes criminais.

Tudo aponta, pois, para uma diminuição considerável da culpa do arguido, ainda que este não tenha reconhecido o erro do seu procedimento, pois negou a prática dos factos, o que, saliente-se, é muito comum neste tipo de crimes em que o abusador nega ou minimiza o acto de abusar como mecanismo de defesa.

Assim, não obstante, a situação em apreço se encontrar no limiar, entende-se ser de aplicar a atenuação especial da pena, como decidiu o tribunal recorrido.


12. Da medida da pena:

O tribunal recorrido, dentro da moldura abstracta aplicável ao crime em causa, após a atenuação especial, que se situa entre l mês a 6 anos e 8 meses de prisão, fixou a pena em dois anos de prisão.

Entende o Ministério Público que o arguido deve ser condenado em pena de prisão efectiva, não inferior a 3 anos.

A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra aquele – art. 71 do Código Penal.

A pena não pode ultrapassar a medida da culpa – art. 40, n.º2, do mesmo Código.

O modelo de determinação da medida da pena que melhor combina os critérios da culpa e da prevenção é, na impressiva síntese do Prof. Figueiredo Dias, «aquele que comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos – dentro do que é consentido pela culpa – e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto de pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente» (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, pp. 186/187).

No caso, verifica-se dolo com alguma intensidade, atento o iter do crime em presença, evidenciador de uma firme vontade, por parte do arguido, de praticar os factos. Ainda assim, o grau de ilicitude dos factos, apesar de ter incontornável significado, não se figura de grau tão elevado, na medida em que os contactos sexuais estabelecidos entre o arguido e a vítima, com o consentimento desta, não evidenciam, em tão acentuada escala, uma conduta sexual susceptível de prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da personalidade do ofendido, que, à data dos factos, tinha quase com 14 anos.

Acresce salientar a primariedade delitiva e que nenhumas referências existem a outros comportamentos como o que aqui está em causa e a idade do arguido (56 anos), o que atenua sobremaneira as exigências de prevenção especial.

Por outro lado ainda, deve reconhecer-se que, se é verdade que, em abstracto, o crime em presença tem grande impacto na comunidade (impacto que, conceda-se, tem sido induzido, inflacionado e acirrado, quantas vezes até ao intolerável, por certos, imoderados, meios de comunicação social), não é menos certo que, não havendo conhecimento de outros actos do arguido de idêntica índole e não sendo o presente dos mais graves actos que podem configurar-se no alcance do tipo-de-ilícito, as necessidades de prevenção geral não atingem um grau que suporte a determinação da pena concreta para além do ponto médio da moldura abstracta, antes devendo ponderar-se que o mínimo de pena imprescindível à manutenção da confiança colectiva na validade da norma violada se situa um pouco abaixo do referido termo médio da moldura penal resultante da atenuação especial.

Termos em que se afigura adequada, relativamente ao crime em presença, estabelecer a pena concreta em 3 anos de prisão.

Procede, pois, o recurso quanto à medida da pena.

E será de manter a suspensão da execução da pena ou, antes, decretar a prisão efectiva como pugna o ilustre recorrente?

O decretamento da pena de substituição consistente na suspensão da execução da pena de prisão (art. 50.º, do CP) decorre da seguinte ordem de considerações.

Para a aplicação da suspensão da execução da pena, a lei define um requisito objectivo (condenação em pena de prisão não superior a 3 anos) No Anteprojecto do Código Penal alarga-se o âmbito de aplicação desta medida de modo a abranger penas de prisão até 5 anos.e estabelece pressupostos subjectivos, determinados por finalidades político-criminais – os que permitam concluir pelo afastamento futuro do delinquente da prática de novos crimes, através da sua capacidade de se reintegrar socialmente.

Trata-se, de alcançar a socialização, prevenindo a reincidência – veja-se, a respeito, com particular impressividade, Anabela Miranda Rodrigues, «A posição jurídica do recluso», pág. 78 e ss. e «O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena privativa da liberdade», in Problemas Fundamentais de Direito Penal – Homenagem a Claus Roxin, Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2002, pág. 177-208.

Assim, sempre que o julgador puder formular um juízo de prognose favorável, à luz de considerações de prevenção especial sobre a possibilidade de ressocialização do arguido, deverá deixar de decretar a execução da pena.

Estão em causa, não considerações sobre a culpa mas prognósticos acerca das exigências mínimas de prevenção.

Pretende-se, como sublinha, com incontornável autoridade, o Prof. Figueiredo Dias, «o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer correcção, melhora ou – ainda menos – metanóia das concepções daquele sobre a vida e o mundo. É, em suma, como se exprime Zipf, uma questão de legalidade e não de moralidade que aqui está em causa. Ou como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o conteúdo mínimo da ideia de socialização, traduzida na prevenção da reincidência».

Depois de se optar por uma pena detentiva, à luz das considerações e com os critérios legais sobre-expostos, importa pois determinar se existe a esperança fundada de que a socialização em liberdade pode ser alcançada, a partir de razões fundadas e sérias que levem a acreditar na capacidade do delinquente para a auto-prevenção do cometimento de novos crimes, devendo negar-se a suspensão sempre que, fundadamente, seja de duvidar dessa capacidade.

Nos termos prevenidos no art. 50 do Código Penal, a averiguação de tal capacidade deve ser feita em concreto, através da análise da personalidade do arguido, das suas condições de vida, da conduta que manteve antes e depois do facto e das circunstâncias em que o praticou.

Se, dessa análise, resultar que é possível esperar que a ameaça da pena de prisão e a censura do facto são idóneos a permitir a formulação do referido juízo de confiança na capacidade do arguido para não cometer novos crimes, deverá ser decretada a suspensão da execução da pena.

O arguido não confessou os factos em causa e não há razões para concluir que o não fez por vergonha.

Sabe-se que, em abstracto, são acentuadas as exigências de prevenção geral nos crimes de natureza sexual em que o ofendido é menor de 14 anos, mas igualmente se sabe que a medida da intensidade das razões da prevenção geral tem de ser vista caso a caso, isto é, mesmo para esta questão, importa sempre analisar/ponderar o concreto facto praticado, designadamente o modo de execução, as suas consequências na pessoa do ofendido e no tecido social.

A distância no tempo, para além de limites razoáveis, esbate a utilidade e a função, aqui específica, da prevenção geral, com necessários reflexos na proporcionalidade entre meios (a natureza e a medida da pena) e os fins (a prevenção geral primária); para além de um tempo adequado e razoável, o afastamento entre os factos e a aplicação da pena dilui a perspectiva utilitária da prevenção, e por isso, pode enfraquecer a necessidade de uma determinada pena mais intensa e exigente.

No caso sob apreciação, decorreu pouco mais de um ano após a data dos factos. A uma tal distância não pode já dizer-se, com segurança, que a pena de prisão efectiva seja necessária na dimensão funcional da prevenção geral; não sendo estritamente necessária, as necessidades de prevenção não se opõem à aplicação de uma pena de outra natureza. Como se salienta no acórdão recorrido, a própria mãe do menor manifestou em julgamento ter pena do arguido, acrescentando ser sua convicção que tudo não terá passado de um facto isolado.

Por outro lado, também o já referido comportamento anterior do arguido (primariedade delitiva), as circunstâncias do facto e os cerca de 9 meses de prisão preventiva sofridos pelo arguido à ordem destes autos, podem fazer razoavelmente supor que a simples censura e a ameaça de execução da pena serão injunções fortes e suficientes para garantir a irrepetibilidade de comportamento semelhante, satisfazendo as finalidades da punição.

E a aplicação ao arguido dessa pena de substituição, pelo poder persuasivo da ameaça da prisão, que no caso permite fazer um prognóstico favorável sobre o seu comportamento futuro, não põe em crise a confiança dos cidadãos no sistema penal.

Não havendo, assim, exigências preventivas a oporem-se à suspensão da execução da prisão, não podia ela deixar de ser decretada.

III

13. Em face do exposto, acordam os juízes desta 9.ª Secção Criminal em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, condenam o arguido J., como autor material de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172 n.º2 do Código Penal, na pena especialmente atenuada de 3 (três) anos de prisão, cuja execução se suspende pelo prazo de 2 (dois) anos, mantendo, no mais, o acórdão recorrido.

Não são devidas custas.


(Processado por computador e revisto pelo relator)


Lisboa, 2007.01.18