Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
496/11.5IDLSB.L1-3
Relator: JORGE RAPOSO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
RESPONSABILIDADE DO GERENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/17/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I-A jurisprudência, reiteradamente, vem afirmando que o crime de abuso de confiança fiscal é um crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente não entregou a prestação tributária que devia, ou seja, consuma-se no momento em que o mesmo não cumpre a obrigação tributária a que estava adstrito, haja ou não haja entrega da declaração tributária.
II-Por isso, torna-se essencial que seja o arguido que no momento da consumação do crime tenha o domínio funcional dos factos.
III-Se se apura que o arguido não era sócio nem gerente da sociedade, nem que estivesse naquele momento à frente dos destinos da sociedade arguida (como gerente de facto) não lhe pode ser assacada responsabilidade criminal por abuso de confiança fiscal.
IV-Se é certo que face ao disposto no art.º 7º do RGIT, a responsabilidade criminal da pessoa colectiva não exige a responsabilização do seu agente, bastando que seja possível estabelecer e demonstrar o nexo de imputação do facto à pessoa física, independentemente de posterior condenação desta, o certo é que nos casos em que não é investigado e acusado o sócio (de facto ou de direito) a condenação da sociedade arguida levaria à adição de factos que não estão na acusação, donde, em tal circunstancialismo importa, atendendo ao disposto o artº 402º, nº 1, al. a) do CPP, absolver a sociedade arguida.
Decisão Texto Parcial:Acordam do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO

Nos presentes autos, M..., filha de ... e de ..., nascida a ..., natural da freguesia de ..., concelho de Lisboa, com residência na Rua ..., n.º ..., e “F...., Ld.ª”, pessoa colectiva NIPC ..., com sede na Rua ..., Loja ..., Junqueiro, ..., foram condenados em processo comum com intervenção do tribunal singular, a arguida M..., pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.º 1 do R.G.I.T. (Regime Geral das Infracções Tributárias), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), o que perfaz o montante global de € 840,00 (oitocentos e quarenta euros) e a arguida “F..., Lda.” pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo art. 105.º, n.º 1 do R.G.I.T. (Regime Geral das Infracções Tributárias), aprovado pela Lei n.º 15/2001, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros), o que perfaz o montante global de € 1.200,00 (mil e duzentos euros).

Inconformada, a arguida M... interpôs o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

(...)

Respondeu o Ministério Público concluindo:

(...)

*

O recurso foi admitido.

Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer fundamentado, sustentando a procedência do recurso, dizendo:

Nos termos do n° 1 do artº105º do RGIT comete o crime de abuso de confiança fiscal quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava obrigado a entregar, determinando, o n° 2 do mesmo preceito que para efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação leal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.

Integra o elemento objectivo do tipo de abuso de confiança fiscal o recebimento, pelo agente, de prestações tributárias, devidas e destinadas ao Estado através da Administração Tributária, por si liquidadas (ou retidas nos pagamentos a efectuar) e "cobradas" a terceiros, e a não entrega de tais prestações que o agente assim recebeu.

O crime de abuso de confiança fiscal fica preenchido com a falta de entrega total ou parcial, à administração tributária, de prestação deduzida nos termos da lei a que o sujeito passivo estava obrigado a entregar ao credor tributário.

Trata-se de um crime que consiste na ilegítima apropriação de coisa móvel que foi entregue por título não translativo da propriedade.

Segundo Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, in "Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado", Áreas Editora, 3a edição, p. 742, "a inversão do título resulta da não entrega [de prestação tributária ou equiparada] a que o agente estava legalmente adstrito, elemento que releva para a determinação do momento da consumação".

Segundo o mesmo autor, ob. citada, no que se refere ao abuso de confiança fiscal esse momento deve ser situado, por força do disposto no n° 2 do artº 5º do RGIT, na "data em que termine o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários" (funcionando o decurso de 90 dias sobre o termo do prazo de entrega legal da prestação do n° 4, como condição de punibilidade).

No caso vertente, e tal como se deu como provado no ponto 6 da matéria de facto provada, está em causa a entrega da prestação de IVA relativa ao 3º trimestre de 2010, que deveria ter sido efectuada até 15 de Novembro de 2010.

3.2. A matéria de facto provada

A arguida, insurge-se contra a sentença recorrida, e impugna os pontos 3, 4 e 6 a 12 da matéria de facto provada, invocando que não foi feita prova, e/ou esta foi erradamente apreciada, de que após a "venda" da sua quota, em 10.11.2010, manteve funções de gerência na sociedade arguida "F..., Lda".

No ponto 3 da matéria de facto provada é dado como assente que:

"A arguida M... é sócia gerente da sociedade "F..., Lda", desde a sua constituição, em 09.08.2007, e, pelo menos, até 26.4.20011 (cf. fls. 11 a 14)".

De acordo com a respectiva fundamentação, relativamente a tal matéria, foi determinante para a formação da convicção do tribunal a certidão permanente por NIPC de fls. 11 a 14, e os depoimentos das testemunhas AA, Inspectora Tributária, e CF, contabilista da sociedade, que, segundo a fundamentação, asseverou que, durante esse período, era à arguida M... que incumbia tomar todas as decisões relativas à gestão da sociedade.

Salvo o devido respeito, e tal como sustenta a recorrente, a prova produzida não permite tal conclusão.

Desde logo a certidão de fls. 11 a 14 atesta que em 10 de Novembro de 2010 a arguida renunciou às funções de gerente.

Tal facto, por si só, não seria determinante no sentido de excluir que, posteriormente, e, decisivamente até ou após 15 de Novembro, a arguida tivesse, de facto, exercido funções de gerente. Contudo, nem as declarações prestadas em julgamento pela testemunha AA nem as prestadas pela testemunha CF, contabilista da sociedade, o confirmam, sendo de notar que este último declarou que recebeu da arguida a documentação do 3º trimestre de 2010, a que estava reunida até 30 de Setembro, que a arguida lhe disse que tinha sido vendida a empresa, e que o conhecimento que refere sobre quem tomava as decisões se reportam ao período em que a arguida lhe dava a documentação, ou seja, não se reporta a momento posterior ao da venda da empresa, depoimento que não permite, como se afirma em sede de fundamentação, que a testemunha asseverou que no período em que foi contabilista da empresa, até Dezembro de 2010, incumbia à arguida tomar as decisões relativas à gestão da sociedade.

Por seu turno, foi junto pela recorrente aos autos cópia de um contrato de cessão de quotas, datado de 10.11.2010 (fls. 197e 198), sendo, também, que a declaração de IVA (fls.22) do 3º trimestre foi submetida electronicamente, via internet, no dia 15.11.2010, pelas 10,49 h, o que, conjugado com as declarações da testemunha CF, torna plausível a afirmação da recorrente de que a documentação pertinente foi por si entregue ao contabilista antes dessa data e que antes da mesma a sociedade havia sido "vendida", não permitindo, seguramente, quanto a nós, concluir que a arguida exerceu funções de gerente até, pelo menos, 16.4.2011, como se deu como provado, e antes justifica, pelo menos, sérias dúvidas sobre o exercício de funções de gerência pela arguida a partir de 10.11.2011, dúvidas que, em todo o caso não permitiriam dar como provada a matéria de facto provada questionada pela recorrente.

Assim, e consumando-se o crime de abuso de confiança fiscal a 15.11.2010, não havendo prova em que se alicerce a conclusão de que nessa data a arguida exercia, de facto, funções de gerência da sociedade devedora do imposto em causa, afigura-se-nos que o recurso deve ser julgado procedente.

4. Termos em que se emite parecer no sentido da procedência do recurso. 

*

Foram observadas as formalidades legais, nada obstando à apreciação do mérito do recurso (art.s 417º nº 9, 418º e 419º, nºs 1, 2 e 3, al. c) do Código de Processo Penal).

II – FUNDAMENTAÇÃO

As relações reconhecem de facto e de direito (art. 428º do Código de Processo Penal) e, in casu, foi interposto recurso sobre a matéria de facto.

É jurisprudência constante e pacífica[i] que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação[ii] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal)[iii].

*

A questão a decidir cinge-se à reapreciação da matéria de facto que, na perspectiva da Recorrente deverá conduzir à sua absolvição.

*

Na decisão sob recurso é a seguinte a matéria fáctica provada e não provada:

A) Matéria de Facto Provada

Da discussão da causa com interesse para a decisão resultou provada a seguinte matéria de facto:

1. A arguida F..., Lda. é uma pessoa colectiva que se dedica, além do mais, ao comércio, importação e exportação de artigos de vestuário e acessórios.

2. Por essa actividade, a sociedade arguida é sujeita passiva de Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA), encontrando-se enquadrada no regime normal de periodicidade trimestral, estando obrigada a liquidar e a entregar as prestações tributárias necessárias à satisfação do montante exigível em sede de IVA.

3. A arguida M... é sócia gerente da sociedade “F..., Lda.”, desde a sua constituição, em 09.08.2007, e, pelo menos, até 26/04/2011 (cfr. fls. 11 a 14).

4. A arguida M... é a responsável pela gestão efectiva e por todas as responsabilidades financeiras e fiscais da sociedade arguida.

5. Nessa qualidade, a arguida M... reteve a prestação tributária da sociedade arguida, necessária à satisfação do (IVA), referente ao 3.º trimestre do ano de 2010, no valor de € 8.147,73 (oito mil, cento e quarenta e sete euros e setenta e três cêntimos).

6. A arguida sociedade “F..., Lda.”, através da arguida M..., deveria ter liquidado e entregue a prestação tributária do 3.º trimestre de 2010, até 15 de Novembro de 2010, o que não fez.

7. A arguida M..., na qualidade de legal representante da sociedade arguida, estava obrigada, pelo regime do IVA, a proceder ao apuramento do imposto e a entregá-lo na Direcção de Serviços de Cobrança do IVA, simultaneamente com a respectiva declaração.

8. A arguida M..., apesar de devidamente notificada, não regularizou a situação fiscal da sociedade arguida que representa, tendo decorrido mais de 90 (noventa) dias sobre o termo legal para esse cumprimento.

9. A arguida M... foi notificada, em 28.04.2011, para, no prazo de 30 (trinta) dias, proceder ao pagamento da quantia aqui em apreço (€ 8.147,73), acrescida dos respectivos juros e dos valores das coimas aplicáveis, não o tendo feito até à presente data.

10. A arguida M... recebeu dos adquirentes dos serviços da sociedade “F..., Lda.” o supra referido IVA e não procedeu à entrega da aludida importância que, por sua vez, passou a integrar o património da sociedade arguida.

11. A sociedade “F...., Lda.”, através da arguida M..., fez suas quantias que não lhe pertenciam.

12. A arguida M..., enquanto sócia-gerente da sociedade arguida, sabia que estava obrigada por lei a entregar a quantia supra referida ao Estado e, não obstante, de forma livre, deliberada e consciente, não o fez, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mais se provou, com interesse para a decisão do mérito:

13. A arguida M.... possui, como habilitações literárias, o 7.º ano de escolaridade.

14. Tem dois filhos, com as idades de 38 e de 22 anos, respectivamente.

15. Desde que, no mês de Novembro de 2010, procedeu à venda da sociedade “F..., Ld.ª”, a arguida mantém-se inactiva em termos laborais, tencionando ir trabalhar para Angola.

16. A arguida não suporta despesas relativas ao pagamento de renda e/ou de prestações referentes à compra da casa.

17. A arguida não tem antecedentes averbados no respectivo Certificado de Registo Criminal.

B) Matéria de Facto Não Provada

Da discussão da causa resultaram provados todos os factos constantes da acusação, pelo que inexistem factos não provados.

A que se segue a “motivação de facto” que ora se reproduz:

Cumpre, em obediência ao disposto no art. 374.º, n.º 2 do Cód. Processo Penal, indicar as provas que serviram para fundar a convicção do Tribunal.

O Tribunal fundou a sua convicção sobre a factualidade apurada, desde logo, no depoimento da testemunha AA, Inspectora Tributária, a prestar serviço na Direcção de Finanças de Lisboa – Divisão de Processos Criminais Fiscais, em conjugação com a análise crítica da prova documental junta aos autos, designadamente o auto de notícia de fls. 3, certidão permanente por NIPC, que integra fls. 11 a 14 (determinante para prova da factualidade a que é feita referência em 1. a 3. da Matéria de Facto Provada), notificação de fls. 15, 16 e 16v., modelo comprovativo da entrega da declaração periódica, que integra fls. 22 e 23, e elementos contabilísticos de fls. 26 a 28.

A testemunha AA, signatária do Relatório das Averiguações que integra fls. 72 a 78 dos autos, clarificou que a sociedade comercial “F..., Lda.” liquidava I.V.A., recebia dos clientes o valor correspondente ao imposto devido a título de I.V.A., e, depois de ter procedido ao envio à administração fiscal da competente declaração periódica, relativa ao terceiro trimestre de 2010, não entregou, nos cofres do Estado, esse meio de pagamento, no prazo legal, tendo-se o seu depoimento revelado credível, seguro e isento, coincidindo, no essencial, com o teor dos documentos a que é feita referência no parágrafo que antecede. Explicitou, ainda, que, no período em análise, era a ora arguida M... quem desempenhava as funções de gerente de facto e de direito da sociedade arguida, tendo-lhe, inclusivamente, esta, na altura, dado conta de ser a ela que incumbia o poder decisório na sociedade comercial.

O tribunal alicerçou, igualmente, a sua convicção no depoimento testemunhal de CF, que desempenhou as funções de contabilista da sociedade “F..., Ld.ª”, no período compreendido entre os meses de Junho e de Dezembro de 2010, tendo a testemunha asseverado que, no aludido período, era à arguida M... que incumbia tomar todas as decisões relativas à gestão da sociedade.

A arguida confirmou não ter procedido ao pagamento da prestação tributária da sociedade arguida, necessária à satisfação do IVA, referente ao 3.º trimestre do ano de 2010, tendo adiantado, a este propósito, que a pessoa a quem vendeu a sociedade “F..., Ld.ª” lhe afirmou que assumia a dívida, e que iria proceder ao pagamento da referida prestação, bem como requerer, junto das Finanças, proceder ao seu pagamento faseado. Neste particular, as declarações da arguida não nos mereceram credibilidade, uma vez que tratando-se esta de uma empresária experimentada (atente-se que a constituição da sociedade “F..., Ld.ª”, remonta ao mês de Agosto de 2007), de acordo com as regras da experiência comum e com critérios de verosimilhança, não é crível que a arguida não tivesse conhecimento que, independentemente da alegada venda, era a si, na qualidade de gerente de facto e de direito da sociedade, à data da prática dos factos enunciados na acusação do Ministério Público, que incumbia a responsabilidade pela regularização da prestação tributária omitida, sendo certo que, suscitando-se-lhe qualquer dúvida a este respeito, sempre se poderia esclarecer junto do contabilista que, à data dos factos, aí prestava funções.

No que se reporta à ausência de antecedentes criminais da arguida M..., o tribunal alicerçou a sua convicção no respectivo certificado de registo criminal, junto a fls. 152, emitido em 30/03/2012, e, no que se refere aos factos pessoais, nas declarações da própria arguida.

*

Matéria de facto

“A censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”[iv]. No mesmo sentido vai a jurisprudência uniforme dos Tribunais da Relação: “Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”[v].

Consequentemente, a crítica à convicção do tribunal a quo sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do Recorrente sobre a prova produzida. 

Efectivamente, o julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”[vi].

Essa apreciação livre da prova não pode ser confundida com a apreciação arbitrária da prova nem com a mera dúvida gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; tem como valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio.

Trata-se da liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou no dizer de Castanheira Neves da “liberdade para a objectividade”[vii].

Também a este propósito, salienta o Prof. Figueiredo Dias[viii] “a liberdade de apreciação da prova é uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a verdade material - de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo”.

É na audiência de julgamento que tal princípio assume especial relevo, tendo, porém, que ser sempre motivada e fundamentada a forma como foi adquirida certa convicção, impondo-se ao julgador o dever de dar a conhecer o seu suporte racional, o que resulta do art. 374° n° 2 do Código de Processo Penal.

Assim, a livre convicção não pode confundir-se com a íntima convicção do julgador, impondo-lhe a lei que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso.

O art. 127° do Código de Processo Penal indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova[ix].

Assim, ao tribunal de recurso cumpre verificar se o tribunal a quo recorreu às regras de experiência e apreciou a prova de forma objectiva e motivada, se na sentença se seguiu um processo lógico e racional de apreciação da prova, ou seja, se a decisão recorrida não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum[x], todavia sem esquecer que, face aos princípios da oralidade e da imediação, é o tribunal de 1ª instância que está em condições melhores para fazer um adequado uso do princípio de livre apreciação da prova.

In casu, em causa está, essencialmente, a prova da ilicitude da conduta do arguido, para apreciação da qual é fundamental o recurso às regras da experiência. A propósito convém recordar, conforme ensina o Professor Manuel Cavaleiro de Ferreira[xi], que sendo grandes as dificuldades para dar praticabilidade a conceitos que designam actos internos, de carácter psicológico e espiritual, recorre-se a regras da experiência, que as leis utilizam quando elas podem dar aos conceitos maior precisão...

*

Relembrados estes princípios na análise do recurso sobre a matéria de facto, vejamos, então, a prova questionada[xii].

Atalhando: têm razão a Recorrente e a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta. Em 10 de Novembro de 2010 a Recorrente renunciou à gerência da sociedade arguida e cedeu a sua quota na sociedade a RC. É o que resulta da certidão permanente de fls. 11 a 14, do contrato de cessão de quotas, com renúncia à gerência da sociedade por parte da Recorrente e assumpção de todas as dívidas da sociedade por parte do cessionário certificado pela Conservatória de Registo Comercial de Lisboa, a fls. 196 a 198 dos autos. Esta factualidade foi reconhecida pela testemunha AF, investigadora tributária que adiantou que apesar de terem conhecimento que a Recorrente já não era nem sócia nem gerente da sociedade a notificaram em sua representação. A testemunha CF, TOC da sociedade no 2º semestre de 2010 confirmou que a Recorrente era a sócia e gerente da sociedade e que lhe entregou toda a documentação para comunicação do IVA relativo ao 3º trimestre de 2010 que se vencia em 15.11.2010. A arguida, ao prestar declarações reconheceu que efectivamente a dívida respeitava ao período em que ainda era sócia e gerente da sociedade mas que tinha ficado acordado com o cessionário que ele assumia essa dívida de que tinha conhecimento. Ao ser notificada pelas Finanças para pagar predispôs-se a fazê-lo mas foi alertada pelo seu advogado de que a responsabilidade não era sua face ao que consta do contrato. Não há qualquer elemento probatório ou regra da experiência que infirme o que resulta do supra exposto e que, por qualquer forma, permita que se conjecture que a Recorrente continuou à frente dos destinos da sociedade arguida (como gerente de facto) depois de ter cedido a quota e renunciado à gerência.

  

Da análise da aludida certidão permanente também resulta que a arguida M... embora fosse gerente não foi sócia da sociedade desde o seu início – os primitivos sócios são MM e a sociedade FM..., Lda, com sede num apartado (que também corresponde ao endereço indicado pela arguida M...) – o que implica a alteração do facto provado 3 também nessa parte e por outro lado o que ocorreu em 10.11.2010 foi a cedência da quota e não a venda da sociedade.

Assim, como pretendido em relação aos factos provados 3, 6, 12 e 15, estes passam a ser os seguintes:

3. A arguida M... foi gerente da sociedade “F..., Lda.”, desde 9.8.2007, até 10.11.2010 e sua sócia desde Julho de 2008 até 10.11.2010.

6. A arguida sociedade “F..., Lda.”, através da arguida M..., deveria ter liquidado e entregue a prestação tributária do 3.º trimestre de 2010, até 15 de Novembro de 2010, o que não fez.

12. Passa a facto não provado.

15. Desde que, no dia 10 de Novembro de 2010, procedeu à venda da sua quota na sociedade “F..., Ld.ª” e renunciou à gerência, a arguida mantém-se inactiva em termos laborais, tencionando ir trabalhar para Angola.

Consequentemente e para que fique bem claro, passam a constar como não provados os seguintes factos:

a. Que a arguida M... seja sócia da sociedade “F..., Lda.”, desde a sua constituição, em 09.08.2007, nem que tenha continuado a ser sócia e/ou gerente  até 26/04/2011.

b. Que a liquidação e entrega da prestação tributária do 3.º trimestre de 2010 da arguida sociedade “F..., Lda.” devesse ser efectuada através da arguida M...

c. Que a arguida M..., sabia que estava obrigada por lei a entregar a quantia supra referida ao Estado e, não obstante, de forma livre, deliberada e consciente, não o fez, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

d. Que a arguida M... tenha vendido a sociedade “F..., Ld.ª”.

Consequências Jurídicas

A sentença recorrida não se pronuncia sobre o momento da consumação do crime de abuso de confiança fiscal. Essa questão é essencial para determinar quem é criminalmente responsável pela prática do crime.

Ora, a jurisprudência, reiteradamente[xiii], vem afirmando que o crime de abuso de confiança fiscal é um crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente não entregou a prestação tributária que devia, ou seja, consuma-se no momento em que o mesmo não cumpre a obrigação tributária a que estava adstrito, haja ou não haja entrega da declaração tributária.

 

Por isso mesmo, torna-se essencial que no momento da consumação o arguido tenha o domínio funcional dos factos, quer dizer, que quem no momento em que a obrigação tributária se vence seja o arguido, o que não ocorre no caso dos autos, já que a arguida não era sócia nem gerente da sociedade nesse momento. Ao invés, o exercício da gerência no momento em que ocorreu o facto gerador da obrigação tributária (no 3º trimestre de 2010) é, por si só, insuficiente para lhe assacar a responsabilidade criminal por abuso de confiança fiscal[xiv].

*

Por isso, face à alteração da matéria de facto, impõe-se a absolvição da Recorrente da prática do crime de abuso de confiança fiscal pelo qual foi condenada em 1ª instância. Consequentemente, atendendo ao disposto no art. 402º nº 1 al. a) do Código de Processo Penal, importa extrair da procedência do recurso as necessárias consequências quanto à responsabilização criminal da sociedade arguida.

 

É certo que face ao disposto no art. 7º do RGIT, a responsabilidade criminal da pessoa colectiva não exige a responsabilização do seu agente, bastando que seja possível estabelecer e demonstrar o nexo de imputação do facto à pessoa física, independentemente de posterior condenação desta[xv]. No caso dos autos, é certo que alguém, em representação da sociedade, tinha a obrigação de satisfazer aquela obrigação tributária e não o fez. Porém, não se sabe se esse responsável é imputável, actuou com dolo – exigível neste tipo de crime – se existe alguma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.

Porém, se é certo que mesmo sem se determinar o agente físico concreto responsável, seria possível a responsabilização e condenação da sociedade arguida nota-se que o facto de não ter sido investigado e acusado o sócio (de facto ou de direito) da sociedade no momento da consumação, neste contexto e neste momento processual, implicaria a adição e apreciação de factos que não estão na acusação para se manter a condenação da arguida sociedade. Era ao Ministério Público que competia acautelar a condenação da arguida através da articulação de todos os factos necessários à sua responsabilização, a qual deriva mediatamente da responsabilização dos agentes físicos e exige a narração factual de todos os respectivos factos típicos.

Tal circunstancialismo determina a absolvição da arguida “F..., Ld.ª”.

III. DECISÃO.

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam em conferência os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência:

1. Em alterar a matéria de facto nos termos supra expostos que se dão por reproduzidos;

2. Em absolver a arguida e ora Recorrente M...da prática do crime pelo qual havia sido condenado;

3. Em determinar, ao abrigo do disposto no art. 402º nº 1 al. a) do Código de Processo Penal a absolvição também da arguida não recorrente “F..., Ld.ª”;

4. Consequentemente, em absolver ambas as arguidas da condenação em custas criminais.

Sem custas pela Recorrente.

Lisboa, 17 de Abril de 2013

(elaborado e revisto pelo relator e rubricado

e assinado por este e pela Ex.ma Adjunta)

 Jorge Raposo

 Margarida Ramos de Almeida

[1]

2 Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt.

[ii] Com algumas especificidades no que respeita à impugnação da matéria de facto, como afirma o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005 “a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões. Perante esta margem de indefinição legal, e tendo o recorrente procedido à mencionada especificação no texto da motivação e não nas respectivas conclusões, ou a Relação conhecia da impugnação da matéria de facto ou, previamente, convidava o recorrente a corrigir aquelas conclusões” (proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577, no mesmo site) Esta posição mantém a sua actualidade com a versão introduzida pela Lei 48/07 de 29.8 ao Código de Processo Penal que manteve a divergência entre a redacção dos nºs 2 e 3 do art. 412º do Código de Processo Penal. No caso dos autos o Recorrente especificou na motivação e nas conclusões, de forma perceptível, os pontos de facto que no seu entender foram incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa da recorrida.

[iii] Acórdão do Plenário das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.95, publicado no DR Iª série-A, de 28.12.95.

[iv] Acórdão do Tribunal Constitucional 198/2004 de 24.03.2004, DR, II S, de 02.06.2004

[v] Acórdão da Relação de Coimbra de 06.03.2002, publicado na CJ, ano 2002, II, 44; no mesmo sentido, os acórdãos 19.06.2002 e de 04.02.2004, nos recursos penais 1770/02 e 3960/03; 18.09.2002, recurso penal 1580/02; 16.11.05, recurso penal 1793/05, em www.dgsi.pt    

[vi] Prof. Cavaleiro Ferreira, em Curso de Processo Penal, 1986, 1° vol., pg. 211.

[vii] Rev. Min. Públ., 19°,40.

[viii] Direito Processual Penal I, 202.

[ix] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.2.08, no proc. 07P4729, em www.dgsi.pt.

[x] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pg. 294

[xi] Direito Penal Português - Parte Geral -I Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa

[xii] Para o efeito procedeu-se à audição integral do CD com a reprodução da prova.

[xiii] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21.3.2007 e de 10.10.2007, nos proc.s 06P4079 e 07P2077; da Relação de Coimbra de 11.3.2009, de 21.1.2009 e de 12.10.2011, nos proc.s 24/05.1IDGRD.C1, 342/04.6TAAVR.C1 e 155/05.8TAVNG.P1, de Évora de 29.1.2013, no proc. 385/09.3IDFAR.E1, todos em www.dgsi.pt.

[xiv] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18.2.2013, no proc. 15691/09.9IDPRT.G1, em www.dgsi.pt.

[xv] Sobre esta questão, embora com soluções nem divergentes entre si, cfr. os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 8.11.2011, no proc. 668/09.2TDLSB.L1-5, da Relação do Porto de 7.3.2012, no proc. 106/09.0IDBRG.P1 e da Relação de Évora de 26.6.2012, no proc. 60/09.9TAVVC.E1, em www.dgsi.pt.




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