Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
906/2005-6
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: FALÊNCIA
INIBIÇÃO DO FALIDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/12/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I - A inibição do falido deve julgar-se estabelecida e sancionada em correspondência com o motivo que a inspirou, isto é, consoante o exigir a protecção que se quis dispensar aos interesses dos credores. Nada menos do que isso, mas também nada mais do que isso.”
II - Os interesses dos credores mostram-se acautelados pela protecção que lhes é conferida pela lei ao privar o falido da administração e do poder de disposição dos seus bens, presentes ou futuros, atribuindo a sua administração e o poder de disposição sobre os mesmos ao liquidatário judicial, não sendo necessária para o efeito uma incapacidade absoluta do falido que o impeça de realizar actos que valorizem ou aumentem o seu património
III - As limitações resultantes da declaração de falência não retiram ao falido a capacidade de exercício de direitos como quando o falido propõe acção, que tem por objecto a anulação de uma procuração e de um contrato, que só a dita procuração possibilitou, com a consequente reintegração de uma fracção autónoma no seu património. Esta actividade só pode trazer vantagens para os seus credores, os quais, caso a acção proceda, terão mais possibilidades de satisfação dos seus créditos, não envolvendo qualquer diminuição do património dos falidos.
(FG)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório :
A e ME, intentaram, em 14 de Março de 2003, a presente acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra D e MH, M e O, pedindo que seja declarada nula e de nenhum efeito a procuração outorgada em 21 de Abril de 1993, na qual, segundo da mesma consta, intervieram como mandantes os autores e como mandatários os réus M e D, e julgada nula e de nenhum efeito a escritura pública de compra e venda outorgada no dia 14 de Março de 1995, que teve por objecto a fracção “B” correspondente ao rés-do-chão esquerdo do prédio urbano sito na Damaia, que era propriedade dos autores, na qual intervieram os réus M e D em nome próprio e como procuradores dos ora autores, ordenando-se o cancelamento das inscrições a que respeitam as apresentações Ap 05/2800993, cota G-2 e AP 09/140395- AV 01, cota G-2 do prédio urbano descrito sob o nº 00543/280989-B, da ficha da freguesia da Damaia.
Os réus contestaram, tendo os autores replicado.
Seguidamente, foi proferido despacho que absolveu os réus da instância com fundamento na incapacidade judiciária dos autores por terem sido declarados falidos por sentença proferida em 27 de Março de 1995, declaração que teve por efeito a inibição destes para administrar e dispor dos seus bens, ficando o administrador da falência a representá-los para todos os efeitos, salvo se exclusivamente pessoais ou estranhos à falência, nos termos do disposto no artigo 147º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência.
Deste despacho agravaram os autores, sustentando na sua alegação a seguinte síntese conclusiva:
1ª Os ora recorrentes intentaram oportunamente uma acção declarativa com vista à declaração de nulidade de uma procuração e concomitantemente de uma escritura pública de que a dita procuração foi instrumento decisivo de efectivação.
2ª Com as requeridas nulidades os A. A. pretendiam que retornasse ao seu património uma fracção autónoma vendida com a anulanda escritura pública.
3ª Os A. A. foram declarados "falidos" por sentença anterior à propositura da referida acção declarativa.
4ª Com base nesta situação, o Meritíssimo Juiz "a quo" julgou os AA. incapazes para estarem por si em Juízo, dado que, em seu entendimento, só poderiam estar devidamente representados pelo liquidatário judicial.
5ª O Meritíssimo Juiz "a quo" fundamentou esta sua decisão no artº 147° do então vigente C.P.E.R.E.F..
6ª Segundo o referido despacho a inibição resultante da aplicação do mencionado artº 147° "implica para o falido uma incapacidade do exercício de direitos, que, no campo processual, traduz-se em que o falido só pode estar em Juízo intervindo o seu representante legal (o liquidatário judicial)" .
7ª Mas acontece que no caso dos autos, os AA. vieram a Juízo com um problema de cariz exclusivamente pessoal e de todo estranho ao universo da falência em que foram condenados.
8ª Com efeito, só já depois de decretada a falência, de constituído o acervo da massa falida e de cumpridas todas as demais diligências atinentes à declaração de execução da falência, é que os AA. foram a Tribunal pedir a declaração de nulidade de uma procuração em que pretensamente intervieram, bem como de uma escritura pública lavrada na sequência e com base nessa procuração.
9ª Trata-se, pois, de um acto caracterizadamente pessoal e que em nada contende com os interesses da falência ou da massa falida.
10ª Consequentemente e com todo o respeito pela opinião contrária, os recorrentes entendem que o caso sub judice não podia ser subsumível no disposto no artº 147° do C.P.E.R.E.F ., mas sim no âmbito do artº 202° do mesmo diploma legal.
11ª E isto pela óbvia razão de se tratar de um assunto que em nada beneficiava ou prejudicava os interesses da falência na sua universalidade, nem tão pouco o interesse dos credores na sua individualidade.
12ª Donde, a natural ilação de nos encontrarmos, no caso vertente, em presença de um direito próprio dos falidos e estranho à falência.
13ª De anotar que na história desta aludida disposição – artº 1238° do Cod. Proc. Civil, artº 202° do C.P.E.R.E.F. e artº 143° do Cod. da Insolvência e de Recuperação de Empresas - se referem sempre "direitos próprios estranhos à falência".
14ª Mas, segundo a melhor doutrina que o Dr. Pedro de Sousa Macedo regista no seu "Manual de Direito das Falências" (Vol. II, pags. 84 e 85) " a intransmissibilidade (por natureza, não a contratual) é critério prático para determinar que um direito é alheio à falência".
15ª Ora, o direito de determinado falido ou insolvente vir intentar, por sua livre iniciativa, uma acção de anulação de certa procuração e concomitantemente a anulação de uma escritura pública, que só a dita procuração possibilitou, consubstancia inquestionavelmente um direito intransmissível por natureza.
16ª Pelo que - e tomando em conta toda a aduzida motivação - os recorrentes não estão feridos de qualquer incapacidade no caso sujeito, podendo muito bem defender e peticionar o que consta da respectiva acção.
17ª Não seguindo este entendimento e decidindo como decidiu, no seu douto despacho, o Meritíssimo Juiz "a quo" violou, por errada interpretação e aplicação, o disposto no artº 147° do C.P.E.R.E.F. e, por omissão, o disposto no artº 202° do mesmo diploma legal.
18ª Deverá, pois, ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho recorrido e ordenando-se a sua substituição por outro que reconheça a capacidade dos A. A. "in casu", com o prosseguimento normal da respectiva acção declarativa.

Não houve contra alegação.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2. Fundamentos :
Com a presente acção visam os autores a declaração de nulidade de uma procuração e da subsequente escritura pública de compra e venda de uma fracção autónoma de que eram proprietários, cujo direito de propriedade se transmitiu para os réus por efeito daquela escritura pública, e, bem assim, o consequente cancelamento das inerentes inscrições prediais, conseguindo, por esta via, o retorno daquela fracção ao seu património.
Considerou-se no despacho recorrido que o facto de os autores terem sido declarados falidos por sentença proferida em 27 de Março de 1995 implica para os mesmos “...uma incapacidade do exercício de direitos que, no campo processual, traduz-se em que o falido só pode estar em juízo intervindo o seu representante legal (o liquidatário judicial)”, motivo por que, com fundamento na verificação da excepção dilatória da falta de capacidade judiciária, absolveu os réus da instância.
Vejamos se assim é.
Estabelece o nº 1do artigo 147º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (C.P.E.R.E.F.), aprovado pelo DL nº 132/93, de 23 de Abril, aplicável ao caso, que “a declaração de falência priva imediatamente o falido (...) do poder de disposição dos seus bens presentes ou futuros, os quais passam a integrar a massa falida, sujeita à administração e poder de disposição do liquidatário judicial”, acrescentando o nº 2 que é o liquidatário judicial que “assume a representação do falido para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessam à falência”.
O nº 2 do artigo 147º não diverge, no essencial, do que estabelecia o anterior nº 3 do artigo 1189º do Código de Processo Civil. Como escrevem Carvalho Fernandes e João Labareda (2), o liquidatário judicial assume a representação do falido para os efeitos patrimoniais relativos à falência, “o que significa, tal como dizia a lei antiga, ser a «inibição» do falido inoperante quanto às matérias de natureza pessoal, em geral, e quanto às patrimoniais estranhas à falência.”
Traduzindo-se a falência numa liquidação universal do património do falido (devedor), tendo em vista a protecção e satisfação dos direitos dos credores, compreende-se que aquele não possa concluir quaisquer actos de administração ou disposição dos bens que lhe são ou devem ser apreendidos susceptíveis de prejudicar a massa falida.
A proibição de o falido administrar e dispor dos seus bens, presentes ou futuros, que passam a integrar a massa falida tem por base a salvaguarda dos interesses dos credores chamados a deduzir os seus direitos no respectivo processo para obterem pagamento, até onde for possível, à custa da massa falida. Funda-se na ideia de que não deve consentir-se ao falido a prática de actos sobre os bens que integram a massa que possam causar prejuízo aos credores, quer diminuindo o seu património, quer prejudicando o direito dos credores de obterem pagamento dos seus créditos à custa desses bens.
Sendo esta a ratio legis, entendemos que deve seguir-se o ensinamento de Manuel de Andrade(3), que se mantém actual, no sentido de que “a inibição do falido deve julgar-se estabelecida e sancionada em correspondência com o motivo que a inspirou, isto é, consoante o exigir a protecção que se quis dispensar aos interesses dos credores. Nada menos do que isso, mas também nada mais do que isso.”
E os interesses dos credores mostram-se acautelados pela protecção que lhes é conferida pela lei ao privar o falido da administração e do poder de disposição dos seus bens, presentes ou futuros, atribuindo a sua administração e o poder de disposição sobre os mesmos ao liquidatário judicial, não sendo necessária para o efeito uma incapacidade absoluta do falido que o impeça de realizar actos que valorizem ou aumentem o seu património (4).
As limitações resultantes da declaração de falência não retiram ao falido a capacidade de exercício de direitos como o que os autores pretendem fazer valer através da presente acção, que tem por objecto a anulação de uma procuração e de um contrato, que só a dita procuração possibilitou, com a consequente reintegração de uma fracção autónoma no seu património. Esta actividade dos autores só pode trazer vantagens para os seus credores, os quais, caso a acção proceda, terão mais possibilidades de satisfação dos seus créditos, não envolvendo qualquer diminuição do património dos falidos.
Assiste, assim, aos autores, aqui agravantes, capacidade judiciária activa para intentar a presente acção, por versar sobre matéria de natureza patrimonial estranha à falência e, por isso, afastada das limitações impostas ao falido pelos nºs 1 e 2 do artigo 147º referido.

Procedem, pois, as conclusões da alegação dos agravantes.

3. Decisão :
Termos em que, concedendo provimento ao agravo, se acorda em revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que reconheça capacidade judiciária aos autores e dê prosseguimento à presente acção se motivo diverso a tal não obstar.
Sem custas – artigo 2º nº 1 al. o) do Código das Custas Judiciais, na redacção anterior ao DL nº 324/2003, de 27 de Dezembro.
12 de Maio de 2005
(Fernanda Isabel Pereira)
(Maria Manuela Gomes)
(Olindo dos Santos Geraldes)
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1 Cfr. neste sentido Acs. do Supremo Tribunal de Justiça de 16.04.1974, de 18.03.2004 e de 23.09.2004, in http://www.dgsi.pt/jstj.
2 In Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência Anotado, 3ª ed., pág. 392.
3 In Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Coimbra Editora, pág.113.
4 Cfr. neste sentido Acs. do Supremo Tribunal de Justiça de 16.04.1974, de 18.03.2004 e de 23.09.2004, in http://www.dgsi.pt/jstj.