Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7298/05.6TCLRS.L1-2
Relator: ONDINA CARMO ALVES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
CONTRATO DE TRANSPORTE
DANO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DOCUMENTO PARTICULAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/24/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1. Ao contrato internacional de transporte de mercadorias por estrada é aplicável a Convenção Relativa ao Contrato Internacional de Mercadorias por Estrada - CMR - assinada em Genebra, a 19 de Maio de 1956, aprovada para adesão pelo Decreto-Lei n.º 46 235, de 18 de Março de 1965, convenção essa alterada pelo Protocolo de Genebra de 5 de Julho de 1978, aprovado em Portugal para a sua adesão pelo Decreto n.º 28/88, de 6 de Setembro.
2. A regra é a de que o transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega.
3. O transportador só fica desobrigado dessa responsabilidade se a perda teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta sua, um vício próprio da mercadora ou circunstâncias que não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar, cabendo ao transportador o ónus de alegação e de prova das referidas circunstâncias com vista a eximir-se da responsabilidade decorrente da perda da mercadoria.
4. A Convenção Relativa ao Contrato Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR) regula, de forma especial, a responsabilidade pelo incumprimento, ou pelo cumprimento defeituoso, do contrato de transporte que haja sido celebrado, estabelecendo-se no artigo 23º, um desvio limitativo do princípio de direito comum em matéria de responsabilidade contratual, que é o da reparação integral dos danos.
5. O afastamento do regime-regra da específica responsabilidade por incumprimento do contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, só é admitido no artigo 29º da CMR para a hipótese de dolo ou de falta que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo.
6. De harmonia com tal regime-regra era à autora que cabia a alegação e prova dos factos constitutivos que, segundo o artigo 29º da CMR, servem de pressuposto ao pretendido efeito jurídico, consistente na indemnização sem as limitações estabelecidas no mencionado artigo 23º.
7. A aplicação do regime decorrente do artigo 23º, nº 3 da Convenção Relativa ao Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, porque definidor do regime legal do direito a indemnização, é do conhecimento oficioso do Tribunal, independentemente da sua arguição pela parte beneficiária, atento o disposto no artigo 664º do CPC. Daí que, ainda que apenas a interveniente haja invocado a limitação de responsabilidade que consta do artigo 23º da Convenção CMR, sempre o Tribunal não poderia deixar de integrar os factos apurados no direito aplicável, logo, determinar o cálculo da indemnização dentro dos limites estabelecidos no citado normativo.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DA 2ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA


I. RELATÓRIO

W..., com sede em ..., Heilbronn, Alemanha, intentou contra TRANSPORTES, LDA, com sede na Rua ..., São Julião do Tojal, Loures, acção declarativa de condenação com processo sumário, através da qual pede a condenação da ré pagar-lhe a quantia de € 7.018,93, acrescida de juros à taxa 5% ao ano, sem prejuízo de se vir a apurar ser o dano superior.
Fundamentou a autora, no essencial, esta sua pretensão na circunstância de a sociedade húngara D... ter vendido à sociedade B...., Ldª., um conjunto de mecanismos de CD, pelo preço global de € 323.674,32, tendo esta contratado a ré para transportar tal mercadoria, por via rodoviária, para as instalações da B... em ...., Portugal.
A ré recolheu a mercadoria na Hungria, no dia 13.11.2004, num veículo pesado de sua propriedade, emitindo a declaração CMR nº ..., datada desse mesmo dia. Em 16.10.2004, durante a realização do transporte, por culpa do respectivo motorista, o veículo da ré sofreu um acidente de viação quando circulava numa auto-estrada espanhola, despistando-se. Em 20.10.2004, à chegada a Braga, alguns dos mecanismos de CD encontravam-se danificados, o que foi objecto de imediata reclamação por parte da B..., na qualidade de dona da mercadoria, ao transitário que se encarregara de organizar o transporte e, subsequentemente, por este à ré.
Mais invocou que B...., Ldª. havia celebrado um contrato de seguro do transporte com a autora, ao abrigo do qual esta ficou subrogada em todos os direitos daquela contra o transportador, por a ter ressarcido.
À data da propositura da acção, os custos de reparação e substituição dos mecanismos de CD danificados no transporte, bem como dos custos da respectiva vistoria e envio à Hungria para realização de testes ascendiam a € 7.018.93.

Citada, a ré contestou, aceitando a ocorrência do acidente de viação, alegando ter celebrado com a Companhia de Seguros, S.A. um contrato de seguro de responsabilidade civil, nos termos do qual a esta cumpriria satisfazer a indemnização peticionada pela autora. Conclui pedindo a sua absolvição do pedido e suscitando a intervenção acessória passiva da Companhia de Seguros, S.A.

Admitida a intervenção acessória passiva da aludida companhia de seguros, veio a mesma oferecer a sua contestação. Nela, alegou ter celebrado com a ré um contrato de seguro, o qual abrangia os danos sofridos em mercadorias transportadas, desde que indemnizáveis nos termos da Convenção CMR, o que é o caso do acidente de viação relatado pela autora.
Aceitando a existência do acidente e a responsabilidade pelo mesmo, impugnou, todavia, o montante dos danos. Mais alegou que ao caso dos autos é aplicável a Convenção sobre o Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada CMR, aprovada pelo DL n.° 46255, de 18.03.1965 e que, nos termos do seu artigo 23°, n.° 2, o valor da mercadoria danificada para efeitos indemnizatórios será calculado ao preço corrente de mercado, embora sem que a indemnização possa ultrapassar as 8,33 unidades de conta por quilograma de peso bruto em falta.
De acordo com tal critério, pelas mercadorias danificadas a autora apenas tem direito a receber € 880,48, sendo que a mercadoria avariada e as despesas de vistoria das unidades não são abrangidas pela Convenção.
O contrato de seguro celebrado com a ré previa uma franquia de € 500, razão pela qual a chamada apenas assume a responsabilidade pelo pagamento de € 380,48.
Alegou ainda que aceita voluntariamente comparticipar nos custos não abrangidos pela Convenção, na proporção do peso da mercadoria avariada em relação ao peso global transportado e de acordo com o valor por quilograma estipulado nesse instrumento internacional, o que corresponde a 20,6383%. Tendo o custo total ascendido a € 3.440,64, aceita a chamada pagar também € 710.09, num total de € 1.090,57, o que já comunicou à autora, em 03.11.2005. Conclui pedindo a sua condenação a pagar tal montante e a absolvição do restante peticionado.

Respondeu a autora à contestação da chamada, alegando que o transportador não pode invocar os limites de responsabilidade previstos na Convenção se o dano provier de dolo ou de falta que lhe seja imputável. Tendo em conta que a ré não invocou tal limitação de responsabilidade e aceitou que o acidente ocorreu por culpa do seu motorista — que saiu da sua faixa de rodagem, ficando o camião atravessado em ambas as faixas de rodagem — não pode socorrer-se de tais limites indemnizatórios.
Alegou ainda que nesse momento já estava concluído o relatório final da vistoria realizada aos mecanismos de CD, pelo que o dano se encontrava integralmente conhecido, ascendendo a € 8.830,73.
Conclui pela improcedência da excepção da limitação da responsabilidade da ré e pedindo a ampliação do pedido para € 8.830,73, acrescido de juros à taxa de 5%, nos termos do artigo 27°, n.° 1, da Convenção.

Pronunciou-se a chamada sobre a ampliação do pedido, que considerou admissível, pese embora tenha impugnado os factos subjacentes ao mesmo.

Elaborado o despacho saneador, proferida que foi a condensação com a fixação dos Factos Assentes e a organização da Base Instrutória, foi levado a efeito o julgamento, após o que o Tribunal a quo proferiu decisão, julgando a acção nos seguintes termos:
1. Condeno a Ré a pagar à Autora a título de indemnização, a quantia de seiscentos e oitenta e quatro euros e cinquenta e um cêntimos (684.31 €:.
2. Condeno a Ré a pagar à Autora juros de mora sobre a quantia descrita em 1 a taxa fixa de 3° desde 20-1(t-20(14 até integral pagamento.
3. Absolvo a Ré do demais peticionado.

Inconformada com o assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, relativamente à sentença prolatada.

São as seguintes as CONCLUSÕES da recorrente:
Reapreciação das respostas dadas à matéria de facto
i) A ré no artigo 1.° da Contestação confessou que o acidente tinha ocorrido por culpa exclusiva do seu motorista.
ii) Confessou também que tinha participado o sinistro à sua seguradora e que se tinha responsabilizado pela indemnização dos prejuízos ocorridos em virtude do acidente.
iii) A autora aceitou a confissão da ré e fê-lo especificadamente nos artigos 1.°, 2.° e 3.° da sua Resposta.
iv) A confissão da ré é por isso irretratável.
v) A confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente — Artigo 358.° n.° 1 do Código Civil.
vi) Face à confissão feita pela ré no artigo 1.° da Contestação, o Tribunal deveria ter dado como provada também a matéria alegada nos artigos 10.°, 23.° e 27.° da Petição Inicial.
vii) Não o tendo feito foi violado o disposto nos artigos 490.° n.° 2 e 567.° do C. P. C. e artigo 358.° do Código Civil.
viii) No artigo 1.° da sua Contestação aceitou expressamente a matéria alegada pela autora nos artigos 6.°, 7.°, e 10.° da Petição Inicial, reconhecendo assim como verdadeira a factualidade relativa ao acidente descrita no auto da polícia espanhola.
ix) O relatório emitido pelas autoridades policiais espanholas é um documento autêntico nos termos do Artigo 369.° do Código Civil e faz prova plena dos factos que nele são atestados — Artigo 371.° do Código Civil.
x) As declarações emitidas pelas autoridades policiais espanholas referentes ao acidente (Documento n.° 5 junto com a Petição Inicial e documento anexo ao relatório da V...) não foram impugnadas.
xi) Face à confissão da ré e à prova documental junta aos autos (Documento n.° 5 junto com a Petição Inicial, Documento A junto com a Resposta à Contestação onde se encontra anexa a declaração emitida pelas autoridades policiais espanholas) o Tribunal deveria também ter dado como provada a matéria do Artigo 7.° da Resposta à Contestação da ré.
xii) Não o tendo feito foi erradamente interpretada a prova documental dos autos, com violação do disposto nos Artigos 369.°, 370.°, 371.° e 372.° do Código Civil e Artigo 546.° do C. P. C.
xiii) Ao abrigo do Artigo 712.° do C. P. C. requer a V. Exas. que face à prova acima referida se dignem reapreciar a resposta dada pelo Tribunal de 1ª instância à matéria do Artigo 7.° da Resposta dando como provada essa matéria, dando-se também como provada a matéria alegada nos artigos 10.°, 23.° e 27.° da Petição Inicial.
A limitação da indemnização peticionada pela autora nos termos do n.° 3 e n.° 4 do Artigo 23.° da Convenção CMR.
xiv) A ré ao contestar não invocou a excepção de limitação do peso (Artigo 23.° n.° 3 da Convenção CMR) nem a excepção peremptória prevista no n.° 4 do artigo 23.° da mesma Convenção.
xv) Essas excepções peremptórias devem ser invocadas pela parte a quem aproveitam e não são de conhecimento oficioso.
xvi) Não tendo a ré invocado essas excepções peremptórias, não pode o Tribunal oficiosamente, como o fez na sentença, limitar a indemnização devida pela ré a 8,33 unidades de conta por quilograma de peso em falta, e absolver a ré do reembolso do custo de transporte de regresso da mercadoria à Hungria e dos custos dos ensaios, vistoria e peritagem ao abrigo do n.° 3 e n.° 4 do Artigo 23.° da Convenção CMR.
Sem prescindir,
xvii) O transportador é responsável pela perda total ou parcial entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega - Artigo 17.° n.° 1 da Convenção CMR.
xviii) O transportador não tem o direito de aproveitar-se das disposições da Convenção que excluem ou limitam a sua responsabilidade se o dano provier de dolo ou falta que lhe seja imputável - Artigo 29.° da Convenção CMR.
xix) No caso dos autos a mercadoria (mecanismos de CD) danificou-se durante o transporte por culpa exclusiva imputável ao motorista da ré que se despistou.
xx) Culpa que a própria ré reconheceu expressamente assumindo a responsabilidade da indemnização dos prejuízos causados pelo acidente.
xxi) O custo do transporte de regresso da mercadoria danificada à Hungria para apuramento dos danos e o custo dos ensaios e peritagem que a autora pagou constituem despesas originadas pelo incumprimento do contrato de transporte por parte da ré.
xxii) Atento o disposto no artigo 29.° da Convenção CMR e a prova produzida nos autos, afigura-se à recorrente que é inaplicável ao caso a limitação da indemnização do artigo 23.° n.° 3 bem como o disposto no n.° 4 do artigo 23.° da mesma Convenção, em virtude da responsabilidade do acidente imputável à ré.
xxiii) O Mmo. Juiz a quo ao condenar a ré a pagar à Autora apenas a quantia de € 684,51 e juros de mora à taxa de 5% desde 20/10/2004 aplicou erradamente o disposto no Artigo 23.°, n.°s 3 e 4.° da Convenção CMR violando o disposto nos Artigos 17.°, 29.° e 30.° da mesma Convenção e artigos 493.° n.° 1 e 2 e 496.° do C. P. C.
Pede, por isso, a apelante, que o recurso ser julgado procedente por provado e em consequência deve:
a) Ser reapreciada a prova produzida dando-se também como provada a matéria alegada nos artigos 10.°, 23.° e 27.° da Petição Inicial assim como a resposta dada à matéria do artigo 7.° da Resposta à Contestação dando-se como provada essa matéria face à confissão dessa matéria pela ré e prova documental junta aos autos;
b) Ser revogada a sentença de 14 de Setembro de 2009 condenando-se a ré no pedido

Respondeu a ré/recorrida, defendendo a manutenção do decidido e salientando em CONCLUSÃO:
i) A recorrida, participou o sinistro à seguradora, ora interveniente.
ii) A interveniente alegou ter celebrado com a recorrida um contrato de seguro, o qual abrange os danos sofridos em mercadorias transportadas, desde que indemnizáveis nos termos da Convenção CMR, o que é o caso do acidente de viação relatado pela autora.
iii) Reconheceu à autora, ora recorrente, o direito de esta ser reembolsada pelo valor de € 1.090.57.
iv) Alegou ainda, que aceita voluntariamente comparticipar nos custos não abrangidos pela Convenção, na proporção do peso da mercadoria avariada em relação ao peso global transportado e de acordo com o valor por quilograma estipulado nesse instrumento internacional, o que, in casu, corresponde a 20,6383%.
v) Ora, a interveniente, reconheceu o direito de indemnizar a autora dos prejuízos ocorridos em virtude do acidente.
vi) Tendo ficado inequivocamente provado que a interveniente, em 03 de Novembro de 2005, antes da sua douta contestação, comunicou à autora, ora recorrida, que se responsabilizava pelos prejuízos em virtude do acidente.
vii) E, como bem refere o Mm° Juiz "a quo” a indemnização a arbitrar há-de ater-se aos limites prescritos no Art.° 23º.
viii) Pois, não se verifica nenhuma das situações que permitem a desconsideração dos limites indemnizatórios previstos no Art.° 23º.
ix) Decorreu da prova produzida que não foi declarado o valor da mercadoria na declaração de expedição nem fixado o valor de um juro especial na entrega para o caso de perda ou avaria, em conformidade com os Artigos 24º e 26° da Convenção,
x) Nem existem fundamentos de facto, para que possa ser subjectivamente imputável à ré a título de dolo, já que se demonstrou que o veículo que realizava o transporte sofreu um acidente.
xi) Ora, nos termos do seu art.° 23°, n.° 2 da Convenção CMR, o valor da mercadoria danificada para efeitos indemnizatórios será calculado ao preço corrente de mercado, embora sem que a indemnização possa ultrapassar as 8,33 unidades de conta por quilograma de peso bruto em falta.
xii) Da prova produzida não resulta, nem pode resultar outra decisão que não a Doutamente produzida na Douta Sentença recorrida.
xiii) Deve pois manter-se a Douta Sentença nos termos exarados

Propugna a ré que seja negado provimento ao recurso e mantida a decisão, com as legais consequências.

A Interveniente apresentou igualmente contra-alegações, defendendo também a manutenção do decidido, e formulou as seguintes CONCLUSÕES:
i) Os factos constantes do artigo 7° da Resposta à contestação da ré não podem ser considerados como provados já que, por um lado, o articulado em que se inseriam não admitiam oposição não tendo, assim, havido confissão e, por outro lado, não estão documentalmente provados já que a Declaração emitida pelas autoridades policiais espanholas, para além de não estar traduzido o que impede a sua eficácia também, como conclui quem o entenda, nada refere de relevante para além da existência de um embate traseiro e danos na carroçaria;
ii) Acresce que o Relatório da Vistoria Final elaborado pela V... é um mero documento particular o qual apenas demonstra que o seu subscritor fez as declarações que dele constam pelo que, dado o disposto no artigo 376° do Código Civil, apenas configura um elemento de prova a apreciar livremente pelo Tribunal;
iii) Assim, inexiste fundamento legal para dar como provados os factos constantes do artigo 7º da resposta à contestação da ré;
iv) E o demais que se pretende ver considerado como assente, artigos 10º, 23° e 27º da petição inicial, ou traduzem conclusões ou são inócuos para decisão a proferir já que reconhecida vem a obrigação de indemnizar:
v) O artigo 23º da Convenção C.M.R. e, designadamente os seus nºs 1 e 3, definem e balizam o direito indemnizatório do lesado só podendo a limitação imposta ser afastada desde que se demonstre, como impõe o n° 1 do artigo 29° da Convenção C.M.R., a existência de dolo ou conduta que, à luz da jurisdição nacional lhe seja equiparável;
vi) Por isso, os factos que eventualmente tipificassem dolo ou que, de acordo com a jurisprudência nacional, a ele este estivessem equiparados, teriam de ser alegados pela autora, ora recorrente por serem factos constitutivos do seu direito;
vii) Porque o não foram, não pode a autora invocar a previsão normativa do n° 1 do artigo 29° da Convenção C.M.R. e é juridicamente correcto que o Tribunal aplique a limitação prevista no artigo 23° da mesma, Convenção;
viii) Todavia sempre se acrescentará que a ora recorrida, ainda que a sua posição processual seja de uma mera interveniente acessória, invocou os indicados limites fixados pelo n° 3 do artigo 21° da Convenção C.M.R. na sua contestação (artigos 8° e segs.) e porque tal alegação não está em oposição com a da ré e se destinava a auxiliar a defesa desta têm tais limites de serem considerados como alegados cumprindo, portanto, sempre ao Tribunal deles conhecer;
ix) Finalmente constata-se que mesmo que esse Alto Tribunal entenda considerar como provada a matéria constante do artigo 7º da Resposta e dos artigos 10º, 23° e 27° da petição inicial dela se não extrai que tenha havido dolo quer do motorista, quer da transportadora, pelo que se impõe, sempre, a aplicação dos limites previstos no n° 3 do artigo 23° da Convenção C.M.R.;
x) Em resumo, a douta decisão recorrida fez uma exacta apreciação dos factos provados uma adequada interpretação das normas legais aplicáveis;
xi) Termos em que deve negar-se provimento ao recurso e confirmar-se a douta sentença.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO
Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto nos artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação da recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Assim, e face ao teor das conclusões formuladas, a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões:
i) DA REAPRECIAÇÃO DA PROVA GRAVADA em resultado da impugnação da matéria de facto
ii) O REGIME LEGAL DA RESPONSABILIDADE PELA PERDA DA MERCADORIA EM TRANSPORTE INTERNACIONAL EM VEÍCULO RODOVIÁRIO;
iii) DA LIMITAÇÃO DA INDEMNIZAÇÃO PETICIONADA PELA AUTORA - O quantum da restituição devida à recorrente pela ré/ recorrida.
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III . FUNDAMENTAÇÃO
A - OS FACTOS
Foram dados como provados na sentença recorrida os seguintes factos:
1. A sociedade húngara D... vendeu à sociedade B...., Ldª, mecanismos de CD descriminados nas facturas n.° DDHU-P0351/04, DDHU-P0352/04 e n.° DDHU –P0353/04, pelo preço global de 325.674,32 euros.
2. Essas vendas foram feitas em Kecskemét, na Hungria.
3. A referida mercadoria foi embarcada em Kecskernét, na Hungria, no dia 13 de Outubro de 2004, no atrelado n.° Y pertencente à Ré Transportes, Lda., que a deveria transportar e entregar à compradora B..., Lda., em Braga.
4. A ré transportadora emitiu então o CMR n.° ... A, datado de 13 de Outubro de 2004, onde consta a assinatura e carimbo da ré na quadrícula n.° 23 e, na quadrícula 11, o peso bruto da mercadoria de 6.743 Kg.
5. No dia 16 de Outubro de 2004, as 07:37 horas, durante o transporte da mercadoria da Hungria para Portugal, o camião transportador sofreu um acidente na auto-estrada A-8 (Autopista del Cantábrico), já no término do município de Errenteria (Cipuzkoa), tendo sofrido danos nomeadamente na parte traseira do atrelado.
6. Em 20 de Outubro de 2004, à chegada da mercadoria a Braga, verificou-se que oito paletes estavam molhadas e duas paletes encontravam-se danificadas.
7. A B... Lda., dona da mercadoria, reclamou de imediato junto do transitório que se encarregara de organizar o transporte, a sociedade R..., e esta junto da transportadora aqui ré, imputando-lhe a responsabilidade pelos danos ocorridos na mercadoria.
8. Foi feita uma primeira vistoria à mercadoria em Portugal pela firma V..., tendo respectivo comissário de avarias concluído ser necessário devolver, em relação às 10 paletas danificadas no transporte, 3072 mecanismos de CD é sociedade D..., na Hungria, para serem efectuadas vários testes funcionais a esses mecanismos de CD para apuramento dos danos causados pelo acidente.
9. Esses mecanismos de CD foram de novo transportados pela ré transportadora para as instalações da D... em Kecskemét, na Hungria, onde foram sujeitos a testes ópticos para danos mecânicos e danos de oxidação, bem como a testes eléctricos.
10. A referida mercadoria foi examinada pelo Perito M... do Gabinete de Peritagem S....
11. Nos 3072 mecanismos de CD testados foram encontrados danos mecânicos cm unidades.
12. Peças molhadas em 136 unidades.
13. Peças enferrujadas cm 2.731 unidade.
14. Peças enferrujadas e com falhas eléctricas em 4 unidades.
15. O valor dos mecanismos danificados era de 3.632.71 €, excluindo os que apenas apresentavam pecas enferrujadas, que não punham em causa a sua utilização.
16. Dos mecanismos onde foram encontrados danos:
a. 11 mecanismos correspondiam à referência 8636812482:
b. 6 mecanismos correspondiam a referencia 8636812639:
c. 136 mecanismos correspondiam à referência 8636812642:
d. 4 mecanismos correspondiam à referência 8636812685.
17. O custo do transporte dos mecanismos examinados de regresso da Hungria para Portugal foi de 783,33 €.
18. O custo da inspecção efectuada na Hungria pelo Perito M... foi de 3.440,64 €.
19. O custo da avaliação pela V... foi de 974,05 €.
20. A autora, no exercício da sua actividade de seguradora, celebrou com a B..., Lda. um contrato de seguro do transporte, tendo emitido a Apólice n.° .... (....).
21. Em 11 de Julho de 2005, a B..., Lda. declarou por escrito à autora que a subrogava em todos os seus direitos respeitantes a perda ou danos nas mercadorias, incluindo os seus direitos a acção/reclamação contra terceiros. Esta subrogação diz respeito nomeadamente a danos em mercadorias transportadas no veículo do transportador "Transportes, Lda., de São Julião do Tojal, Portugal, ao abrigo do CMR n.° ... de 13.10.2004, devido a um acidente rodoviário ocorrido em 20.10.2004.
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B - O DIREITO
i) DA REAPRECIAÇÃO DA PROVA GRAVADA em resultado da impugnação da matéria de facto
1. Modificabilidade da matéria de facto pelo tribunal da relação
Á regra básica da imodificabilidade da decisão de facto proferida na 1ª instância, contrapõe-se a excepção decorrente do artigo 712º do CPC que permite a alteração da matéria de facto nos seguintes casos:
1. Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravações dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 690º-A, a decisão com base neles proferida;
2. Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
3. Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
Considerando que foi gravada a prova produzida em audiência, dispõe este tribunal dos elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os factos em causa.
Mas, não se pode olvidar que não podem agora ser apreendidos alguns elementos probatórios que emergem, designadamente, do princípio da imediação, sendo certo que os factores decorrentes de tal princípio são decisivos para o juízo de convicção de que o juiz tem de fazer acerca da credibilidade dos depoimentos sempre que está em causa a ponderação da prova testemunhal.
Como esclarece ANTUNES VARELA, Manual de Processo Civil, 2ª ed., págs. 657, a propósito do princípio da mediação “Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar”.
Tem sido uniformemente entendido pela jurisprudência, que a garantia de duplo grau de jurisdição em matéria de facto não subverte, nem pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas constante do artigo 655º do CPC, decorrendo de tal normativo que o juiz, fora dos casos de prova legalmente tarifada, goza de liberdade na apreciação das provas e decide segundo a convicção prudente sobre cada facto.
De resto, no preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95 de 15/12 - diploma que veio regular a possibilidade de documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzida – refere-se que: “A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto que o recorrente terá sempre o ónus de apontar claramente na sua minuta de recurso”.
E, nos casos de provas contraditórias, deve reger a convicção criada no espírito do juiz, desde que a prova haja sido valorada de acordo com critérios de razoabilidade.
Por isso se tem vindo a entender que a modificabilidade da matéria de facto pela 2ª instância terá lugar nos casos de manifesta desconformidade entre as provas produzidas e a decisão proferida, pressupondo um erro que imponha claramente uma decisão diferente.
No caso em apreço, a autora/apelante propugna que a matéria alegada no artigo 7º da resposta à contestação da ré deveria ter sido dada como provada, invocando duas ordens de razões:
Þ Por resultar de confissão da ré e;
Þ Por decorrer da prova documental junta aos autos (documento 5 junto com a petição inicial e documento A junto com a resposta à contestação da seguradora), retirando da produção de prova convicção diversa da do tribunal.
Analisemos, então, da pertinência da alegação da apelante, ponderando se, in casu, se verifica a ausência da razoabilidade da respectiva decisão em face de todas as provas produzidas, conduzindo necessariamente à modificabilidade da decisão de facto.
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2. A AVALIAÇÃO DA CORRECÇÃO OU INCORRECÇÃO DO EXAME DA PROVA
Invoca a autora/apelante erro na apreciação da prova produzida, por entender que a matéria alegada pela autora no artigo 7º da resposta à contestação da ré deveria ter sido dada como provada, tendo o Tribunal a quo desconsiderado a matéria confessada pela ré e a prova documental junta aos autos.
Defende igualmente a autora que deveria ter sido dada como provada a matéria alegada pela autora nos artigos 10º, 23º e 27º da petição inicial, face à confissão da ré.

Ora, a autora invocou, com efeito, no artigo 10º da petição inicial, de forma manifestamente conclusiva que: O acidente resultou da exclusiva culpa da ré e do respectivo motorista, o que foi aceite pela ré, no artigo 1º da contestação, mas tal já se não verificou na contestação apresentada pela chamada.
Por outro lado, a autora apenas procedeu à densificação dessa matéria conclusiva na resposta à contestação da chamada, ao alegar no artigo 7º “Na verdade, o referido motorista saiu da sua faixa de rodagem, ficando o camião transportador atravessado em ambas as faixas de rodagem descrevendo uma “tesoura”. Considerando que tal articulado não admite resposta, nunca seria possível concluir, como pretende a apelante, que esta matéria estaria provada por confissão.
Mas será que, como resulta da alínea b) do artigo 712º do CPC, os elementos fornecidos pelo processo impõem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas. Vejamos,
O supra mencionado fundamento está correlacionado com o valor legal da prova. Daí que, ao abrigo da aludida alínea, a alteração das respostas só é admissível quando haja no processo um meio de prova plena, resultante de documento, confissão ou acordo das partes, e esse meio de prova plena diga respeito a determinado facto sobre o qual o Tribunal também se pronunciou em sentido divergente.
Já salientava ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 472 que, se estivesse junto aos autos documento susceptível de fazer prova plena ou cabal de determinado facto e o juiz, na sentença, tivesse admitido facto oposto, incumbiria ao Tribunal da Relação fazer prevalecer a força probatória do documento.
No caso vertente, invoca a apelante que a prova da matéria invocada no artigo 7º da resposta à contestação decorre do documento 5 junto com a petição inicial e do documento A junto com a resposta à contestação da seguradora
O documento nº 5 junto com a petição inicial consta de fls. 10 a 12 – documento emitido em língua espanhola composto por três folhas – decorrendo do documento de fls. 10, o seguinte:
De: Gipuzhoa Trafico
A: Transportes, Lda.
Assunto: Informacion sobre accidente de circulacion
En respuesta a quanto interesa en su escrito de fecha 26/10/2004 participo a Ud. lo siguiente:
Los datos que a continuación se facilitan, tienen um carácter meramente informativo, siendo um extracto del contenido del aceptado de referencia que existe en nuestros archivos.
FECHA Y LUGAR DEL ACCIDENTE. –
El accidente de circulación se ha producido sobre las 07.37 horas del dia 16 de Octubre de 2004 en el término municipal de ERRENTERIA (GIPUZKOA) A-8 AUTOPISTA DEL CANTAURICO PK 13,6 SENTIDO ASCENDENTE
VEHICULOS IMPLICADOS Y SUS DESPERFACTOS
(…)
E, nos documentos de fls. 11 e 12 consta a identificação do camião Mercedes, do titular e do condutor, do seguro e dos “Desperfactos”.
O documento A junto com a resposta à contestação da seguradora, a fls. 84 a 118, consiste num relatório de peritagem de V..., escrito em língua inglesa, com tradução para português, relatório esse efectuado a pedido da autora.
Do aludido documento consta, na parte INTRODUÇÃO, após a identificação das partes envolvidas e da mercadoria transportada, o seguinte:
Em conformidade com o mandato conferido pela requerente, em 27 de Outubro e 4 de Novembro de 2004, o nosso perito deslocou-se às instalações da B... em Braga para verificar as condições de transporte, avaliar os prejuízos e apurar as respectivas causas.
E, na DESCRIÇÃO DO SINISTRO ali se refere, nomeadamente que:
O sinistro foi causado por um acidente rodoviário. Segundo o relatório da Polícia espanhola (Doc. 8) o camião que transportava a mercadoria sofreu um acidente em 16 de Outubro de 2004, pelas 07:37 horas, ao quilómetro 13,6 da auto-estrada cantábrica A-8, no sentido de Irum para Bilbao, em Espanha.
O acidente ocorreu da seguinte forma: o camião saiu da faixa de rodagem e atravessou-se em ambas as faixas, descrevendo uma “tesoura”. Daí resultaram graves danos na caixa do reboque. Na sequência dos danos a água da chuva atingiu as paletes com a mercadoria.
(…)
O Exmo. Juiz do Tribunal a quo, na decisão da matéria de facto, alicerçou a sua convicção, para considerar não provado o alegado no artigo 7º da resposta à contestação, ou seja, que o motorista da ré saiu da sua faixa de rodagem, ficando o camião transportador atravessado em ambas as faixas de rodagem descrevendo uma tesoura, do seguinte modo:
A não prova resultou da suficiência da prova produzida. Com efeito, o único elemento probatório existente é o relatório das autoridades espanholas. Contudo. Desconhece-se se o mesmo foi elaborado com base na observação directa dos factos descritos, se em declarações do condutor do camião ou de terceira pessoa, pelo que a sua valia probatória é pouco relevante. Por outro lado, não foi inquirido o motorista em causa, o que impossibilitou o Tribunal de confirmar o teor de tal relatório, o que se afigura essencial, dada a descrita ambiguidade quanto à fonte do conhecimento do subscritor do mesmo.
Mostra-se suficientemente fundamentada a decisão de julgar não provada a matéria alegada no artigo 7º da resposta à contestação.
Dos autos consta, na verdade, um documento elaborado por uma empresa que efectuou uma peritagem, a mando da autora, e
que, na sua parte introdutória, se descreve o sinistro, sustentando-se, segundo ali se afirma, no relatório da polícia espanhola.
Trata-se de um documento particular e, como tal, sujeito à livre apreciação do Tribunal.
É que, a força ou eficácia probatória plena atribuída pelo nº 1 do artigo 376º do C.Civil às declarações documentadas limita-se à materialidade, isto é, à existência dessas declarações, não abrangendo a exactidão das mesmas.
Circunscreve-se, assim, a força probatória do documento particular, no âmbito das declarações (de ciência ou de vontade) que nela constam como feitas pelo respectivo subscritor.
E, tal como sucede no documento autêntico, a prova plena estabelecida pelo documento particular respeita ao plano da formação da declaração, não ao da sua validade ou eficácia. Mas, diferentemente do documento autêntico, que provém duma entidade dotada de fé pública, o documento particular não prova plenamente os factos que nele sejam narrados como praticados pelo seu autor ou como objecto da sua percepção directa.
A prova documental constante dos autos – fls. 11, 12, 84 a 118 – com relação à dinâmica do acidente não logrou convencer o julgador – o que se aceita - atenta a inexistência de certidão do relatório da polícia espanhola e a ausência de outra prova coadjuvante, nomeadamente, qualquer testemunha ocular, por forma a efectuar um relato concreto do acidente, a própria autoridade policial que terá tomado conta da ocorrência, caso o tivesse presenciado, ou até o próprio condutor do camião.
Da análise dos documentos aludidos pela apelante, não resulta demonstrada a verificação de erro na apreciação do seu valor probatório pois, para que tal sucedesse, necessário seria que os mencionados meios de prova se mostrassem inequívocos no sentido pretendido pela recorrente, o que não sucede, atentos os fundamentos apontados pelo Exmo. Juiz a quo na decisão da matéria de facto, e com os quais se concorda inteiramente.
A convicção criada no espírito do julgador de 1ª instância, não é merecedora de qualquer reparo, porque formada com base na livre apreciação das provas produzidas, sendo certo que delas não decorre, ao contrário do que defende a apelante, a demonstração do facto contido no artigo 7º da resposta à contestação da interveniente.
Por outro lado, falece também razão à apelante na sua pretensão de ser dada como provada a matéria alegada nos artigos 10º, 23º e 27º da petição inicial, já que tal matéria ou é conclusiva ( artigo 10º ), ou é irrelevante para a decisão da causa (arts. 23º e 27º).
Improcede, nesta parte, a pretensão da apelante.
E, mantendo-se a decisão da matéria de facto nos termos definidos na 1ª instância, importa apreciar as questões subsequentes.
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ii) NATUREZA DO CONTRATO CELEBRADO ENTRE O RECORRENTE E A RÉ E O REGIME LEGAL DA RESPONSABILIDADE PELA PERDA DA MERCADORIA EM TRANSPORTE INTERNACIONAL EM VEÍCULO RODOVIÁRIO
O contrato de transporte em geral é essencialmente uma convenção por via da qual alguém se obriga perante outrem, mediante um preço, a realizar, por si ou por terceiro, a mudança de pessoas e ou coisas de uma para outra localidade.
No caso em análise, estamos perante um contrato de transporte de mercadorias por estrada, em veículo, de natureza comercial (artigos 2º, 13º, nº 2, e 366º, proémio, do Código Comercial), por via do qual a ré/recorrida assumiu uma obrigação de resultado face à segurada da autora/recorrente, encontrando-se esta subrogada nos direitos da proprietária da mercadoria transportada.
O contrato internacional de transporte de mercadorias por estrada é aquele através da qual uma pessoa se obriga perante outra, mediante um preço, denominado frete, a realizar, por si ou por terceiros, a deslocação de uma determinada mercadoria desde um ponto de partida situado num dado país até outro ponto de destino localizado noutro país.
A tal contrato é aplicável a Convenção Relativa ao Contrato Internacional de Mercadorias por Estrada - CMR - assinada em Genebra, a 19 de Maio de 1956, aprovada para adesão pelo Decreto-Lei n.º 46 235, de 18 de Março de 1965, convenção essa alterada pelo Protocolo de Genebra de 5 de Julho de 1978, aprovado em Portugal para a sua adesão pelo Decreto n.º 28/88, de 6 de Setembro.
Tal regime aplica-se a todos os contratos de transporte de mercadorias por estrada, a título oneroso, por meio de veículos, quando o lugar do carregamento da mercadoria e o lugar da entrega previsto estão situados em dois países diferentes, sendo um destes, pelo menos, um país
contratante, independentemente do domicílio e nacionalidade das partes – v. artigo 1º, n.º 1 da CMR.
O transportador obriga-se a entregar a mercadoria no local de destino, na mesma quantidade e estado em que a recebeu, bastando ao interessado, seja expedidor ou destinatário, alegar e provar que a mercadoria foi entregue ao primeiro e que este a não entregou no destino ou que a entregou danificada.
O artigo 13º da CMR confere ao destinatário tanto o direito de, em caso de demora, exigir ao transportador a entrega da mercadoria não entregue, como o de indemnização fundada na responsabilidade civil emergente do incumprimento (ou do cumprimento defeituoso) desse contrato, no caso de perda (total ou parcial, ou, ainda, de avaria) da mercadoria transportada.
O contrato de transporte de mercadorias por estrada em causa nos autos destinava-se a transportar mercadoria vendida e embarcada na Hungria, com destino à compradora “B..., Ldª, em Braga – v. Nºs 1 a 3 da Fundamentação de Facto - pelo que se aplica a aludida Convenção.
A regra é a de que o transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, designadamente pelos actos ou omissões dos seus agentes e de todas as outras pessoas a cujos serviços recorra para a execução do transporte, quando esses agentes ou pessoas actuem no exercício das suas funções, como se fossem cometidos por ele próprio (artigos 3º e 17º, n.º 1, da CMR).
O transportador só fica desobrigado dessa responsabilidade se a perda teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta sua, um vício próprio da mercadora ou circunstâncias
que não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar, (artigos 17º, nº 2 da CMR).
O ónus de alegação e de prova das referidas circunstâncias incumbe a quem as alega com vista a eximir-se da responsabilidade decorrente da perda da mercadoria (artigos 18º, nº 1, da CMR e 342º, nº 2, do Código Civil).
Para se desobrigar da sua responsabilidade, não pode alegar defeitos do veículo de que se serviu para efectuar o transporte, nem faltas da pessoa a quem alugou o veículo ou dos agentes dela (v. artigo 17º, n.º 3, da CMR).
In casu, a operação de transporte no atrelado nº Y pertencente à ré/apelada foi defeituosa, visto que à chegada da mercadoria oito paletes estavam molhadas e duas paletes encontravam-se danificadas, resultando danos em vários mecanismos de CD transportados – v. Nºs. 6, 11 a 16 da Fundamentação de Facto.
Ao transportador incumbe a prova de circunstâncias que o isentassem de responsabilidade, nos termos dos artigos 3º do Código Comercial, 762º, n.º 1, e 799º, n.º 1, do Código Civil e 17º da CMR.

Não está em causa a isenção da responsabilidade do transportador a que se reporta o artigo 17º, n.º 4, da Convenção, não tendo a ré/recorrente alegado qualquer circunstância susceptível de a desresponsabilizar pela avaria parcial da mercadoria transportada, pelo que terá esta de ser responsabilizada por essa demonstrada avaria.
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iv) DA LIMITAÇÃO DA INDEMNIZAÇÃO PETICIONADA PELA AUTORA - O quantum da restituição devida à recorrente pela ré/ recorrida
Como decorre do que acima ficou dito, é na citada Convenção que se encontra regulada, por forma especial ou particular, a responsabilidade pelo incumprimento, ou pelo cumprimento defeituoso, do contrato de transporte celebrado entre a segurada da autora e a ré.
E, estabelece a Convenção, no seu artigo 23º, um desvio limitativo de princípio de direito comum em matéria de responsabilidade contratual, que é o da reparação integral dos danos – v. neste sentido Ac. STJ de 20.05.97, CJ/STJ, 2, 85.
Estatui o nº 1 do aludido artigo 23º da CMR que quando for debitada ao transportador indemnização por perda, total ou parcial, da mercadoria transportada, em virtude das disposições da presente Convenção, essa indemnização, será calculada segundo o valor da mercadoria no lugar e época em que foi aceite para transporte.
Como se refere no Ac. STJ de 17.05.2001, CJ/STJ, 2, 91 "A CMR quis manifestamente manter dentro de certos limites o quantum indemnizatório a cargo do transportador. Fica ressalvado o direito de o expedidor poder exigir indemnização maior desde que proceda de harmonia com os arts.24º e 26º, pagando por isso preço mais elevado pelo transporte ( ... )“.
No caso vertente não está em causa, um valor excedente do limite indemnizatório geral constante da Convenção ou algum juro especial a que se reportam os seus artigos 24º e 26º, já que nenhuma menção, nesse sentido, consta da declaração de expedição.
Acresce que o afastamento do mencionado regime-regra da específica responsabilidade por incumprimento de contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, só admitido no artigo 29º da CMR para a hipótese de dolo ou de falta que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo.
De resto, e como se refere no Ac. R.L. de 13.05.2004 (Pº 2803/2004-2), acessível no aludido sítio da Internet (e não obstante ali estar em causa a aplicação da Convenção de Varsóvia), citando JACQUES PUTZEYS, in «Le Contrat de Transport Routier de Marchandises», 312, “Todas as convenções internacionais relativas a transportes, que prevêem que a obrigação feita ao transportador de reparar o dano por ele ocasionado será limitada, foi inserida uma cláusula de salvaguarda em favor do interessado. Esta cláusula pode resumir-se como se segue, apesar da diversidade dos textos: uma cláusula limitativa ou qualquer regime mais favorável a uma ou a outra das partes só se aplicam na medida em que o acto incriminado se inscreve nas previsões do contrato, mesmo se é em contravenção ao contrato que ele foi realizado. Se o devedor, agiu conscientemente fora do contrato – por dolo – ele já não beneficia de protecção legal”.
Ora, no caso sub judice nada nos autos permite concluir que o acidente de viação que terá dado causa à deterioração parcial da mercadoria transportada haja resultado de acção ou omissão dolosa do pessoal ao serviço da transportadora, nomeadamente do condutor do atrelado, susceptível de justificar o afastamento desse regime-regra, sendo certo que, segundo o nosso regime jurídico, uma actuação negligência não é equiparada a acto doloso.
Aliás, de harmonia com esse regime-regra era à autora que cabia a prova dos factos constitutivos que, segundo o artigo 29º da CMR, servem de pressuposto ao pretendido efeito jurídico, que seria, ao cabo e ao resto, a obtenção de uma indemnização sem as limitações estabelecidas no mencionado artigo 23º - v. a propósito Ac. STJ de 06.07.2006 (Pº 06B1679), acessível na Internet, no sítio www.dgsi.pt.
Daí que não faz sentido o que a apelante defende quanto à falta de invocação das excepções previstas nos nºs 3 e 4 da Convenção CMR, o que impedia o Tribunal de se pronunciar sobre essas limitações.
É que, como se defende no Ac. R.L. de 16.05.2006 (Pº3529/2006-7), acessível no citado sítio da Internet, a aplicação do regime decorrente do artigo 23º, nº 3 da Convenção Relativa ao Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, porque definidor do regime legal do direito a indemnização, é do conhecimento oficioso do Tribunal, independentemente da sua arguição pela parte beneficiária, atento o disposto no artigo 664º do CPC.
Assim sendo, ainda que apenas a interveniente haja invocado a limitação de responsabilidade que consta do artigo 23º da Convenção CMR, sempre o Tribunal a quo não poderia deixar de integrar os factos apurados no direito aplicável, logo, determinar o cálculo da indemnização dentro dos limites estabelecidos no citado normativo.
E, respondendo a ré transportadora pelo prejuízo, será o quantum indemnizatório limitado, no caso de mera culpa, como sucede no caso vertente, nos termos do artigo 23º do CMR.
O valor da mercadoria será, portanto, determinado pela sua cotação na bolsa ou, na sua falta, pelo preço corrente no mercado e, na falta de um e de outro, pelo valor usual das mercadorias da mesma natureza e qualidade (v. artigo 23º, n.º 2).
Neste quadro normativo, a indemnização não poderá ultrapassar 8,33 unidades de conta por quilograma de peso bruto em falta (artigo 23º, n.º 3), correspondendo essa unidade de conta ao direito de saque especial definido pelo Fundo Monetário Internacional, sendo o respectivo montante convertido na moeda nacional do Estado do tribunal do litígio à data do julgamento ou na data acordada pelas partes (artigo 23º, n.º 7).
Mostra-se, pois, correcto o montante indemnizatório definido na sentença recorrida, não sendo devido o montante das despesas peticionadas (Nºs 17 a 19 da Fundamentação de Facto), as quais não são susceptíveis de se subsumir na previsão do nº 4 do artigo 23º da Convenção CMR, como bem se decidiu na 1ª instância e com adequada fundamentação.
Nestes termos, a apelação improcede na sua totalidade.
Vencida, é a recorrente responsável pelas custas respectivas - artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
***
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida e em condenar a recorrente no pagamento das custas respectivas.
Lisboa, 24 de Junho de 2010
Ondina Carmo Alves – Relatora
Ana Paula Boularot
Lúcia Sousa