Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1408/15.2TDLSB.L1-3
Relator: MARIA MARGARIDA ALMEIDA
Descritores: ACUSAÇÃO PARTICULAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I.– Determina o artº 285 do C.P.Penal que, no caso de o inquérito ter por objecto um crime de natureza particular, como sucede no caso dos autos, compete ao assistente deduzir acusação, o que deverá ser feito nos termos previstos no artº 283, nºs 3 e 7.

II.– Tal significa que a acusação, para que seja válida, terá de conter (para além de outros requisitos que aqui não relevam) a narração dos factos que fundamentem a aplicação de uma pena ao arguido.

III.– O que sucede na acusação particular formulada é que o elemento subjectivo se mostra omisso, uma vez que não se mostra enunciada a intenção, por parte das arguidas de, com as descritas expressões, ofenderem a honra e consideração dos assistentes. Não há um único facto que, a provar-se, permita consubstanciar o preenchimento do dolo. De igual modo, não há uma única referência, em sede acusatória, a terem as arguidas consciência da reprovabilidade da sua actuação.

IV.– Tal omissão acarreta, como consequência necessária, a nulidade de tal acusação, como prescreve o nº3 do artº 283 do C.P.Penal (aplicável por força do nº3 do artº 285 do mesmo diploma legal).

V. Assim, no caso dos autos, mesmo provando-se todos os factos constantes na acusação, os mesmos seriam sempre insuficientes para condenar as arguidas pela prática dos crimes de injúria e ofensa a pessoa colectiva, uma vez que faltam os factos susceptíveis de preencher os elementos do dolo e da consciência da ilicitude.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa.
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I–Relatório:


1.– Por sentença de 9 de Maio de 2017, foi proferida a seguinte decisão:
a)-Absolvem-se as arguidas M.E.S e M.F.S. da autoria material dos crimes de ofensa à integridade física simples, injúria e ofensa a pessoa colectiva de que cada uma vinha pronunciada;
b)-Julga-se improcedente o pedido de indemnização civil formulado pelas demandantes “o R., R.P., lda.” e A.P.A.” e, em consequência, absolvem-se as demandadas M.E.S e M.F.S. do pedido;
2.– Inconformados, vieram os assistentes interpor recurso, apresentando, em súmula, as seguintes razões de discórdia:
Entendem que se provaram os factos relativos à actuação dolosa das arguidas. Consequentemente, pretendem que seja anulada a sentença recorrida e pela via do art. 431° b) do C.P.P. seja a mesma modificada, condenando-se as arguidas.
3.– Os recursos foram admitidos.
4.– O Ministério Público e as arguidas responderam à motivação apresentada, defendendo a improcedência dos recursos.
5.– A Srª Procuradora-Geral Adjunta acompanhou a resposta do Mº Pº.

II–questão a decidir.
Consequências da ausência de factos relativos ao dolo e à consciência da ilicitude, em sede acusatória.
 
III–fundamentação.

1.– A decisão deu como assentes os seguintes factos:
1.- No dia 3 de Setembro de 2014, cerca das 9h00, nas instalações do estabelecimento comercial “O R. – R.P., Lda.”, na Av. …………….., em Lisboa, gerou-se uma discussão entre E. R., filha da assistente A.P.A.  e igualmente sócia do referido estabelecimento, e a arguida M.F.S., cozinheira nesse estabelecimento há 14 anos.
2.- No decurso dessa discussão, em que ambas se exaltaram, a arguida e M.F.S., diante de pelo menos um cliente, afirmou que aquilo que os clientes comiam era merda, que havia baratas, dizendo ainda “são umas porcas” e que agora que se ia embora as pessoas só iam comer porcaria.
3.- Passado lapso temporal não concretamente apurado, mas ainda durante a manhã, surgiu no local a assistente A.P.A.  e pouco tempo depois também a arguida M.E.S, que ali acorreu na sequência de telefonema efectuado por sua mãe, dando-lhe conta de que a assistente e a mãe desta não a deixavam continuar a trabalhar.
4.- Nessa ocasião, gerou-se novo quadro de discussão e exaltação entre as arguidas, a assistente e E. R., relacionado com o facto de a assistente e sua mãe quererem que M.F.S. se fosse embora, o que esta e a filha negavam fazer sem que lhes fosse entregue uma declaração para o fundo de desemprego.
5.- Nesse quadro de discussão e exaltação, a arguida M.E.S, dirigindo-se à assistente A.P.A. , chamou-a de “desequilibrada”, dizendo-lhe que o curso que tirara não dava para nada, daí estar no R.R.P., que tratava mal dos filhos, e ainda “não prestas”, “estás descompensada”.
6.- Tendo a assistente dito à arguida M.E.S que não admitia que lhe falasse assim e que a estava a ofender.
7.- Enquanto abandonavam o local, a arguida M.F.S. disse ainda em altos berros “agora os clientes vão comer merda”.
8.- A arguida M.E.S trabalha como enfermeira no Hospital da Luz, auferindo um rendimento mensal líquido de € 1.200,00.
9.- Vive em casa de seus pais, na companhia dos mesmos.
10.- Despende com o pagamento de empréstimo contraído para aquisição de veículo automóvel a quantia mensal de € 270,00.
11.- Como habilitações literárias possui uma licenciatura em enfermagem e mestrado na área médico-cirúrgica.
12.- No seu certificado de registo criminal não se encontram averbadas condenações.
13.- A arguida M.F.S. trabalha no bar da Faculdade de Direito de Lisboa, auferindo € 700,00 mensais.
14.- Vive em casa própria com seu marido e três filhos, dois deles ainda estudantes.
15.- Seu marido está reformado, recebendo uma reforma de € 1.500,00 por mês.
16.- Como habilitações literárias a arguida possui o 6.º ano de escolaridade.
17.- No seu certificado de registo criminal não se encontram averbadas condenações.
18.- A assistente A.P.A. , juntamente com sua mãe, explora o R.P. onde ocorreram os factos, retirando para si um salário mensal de € 530,00.
19.- Vive com dois filhos de 7 e 3 anos, encontrando-se o marido a trabalhar no estrangeiro, o qual suporta todas as despesas do agregado familiar.
20.- Como habilitações literárias a assistente possui uma licenciatura em antropologia social.

2.– Deu como não assentes os seguintes factos:
a)- Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas nos factos provados a arguida M.E.S afirmou que ali só se “comia merda”, que “havia baratas”, ofendendo o bom nome do estabelecimento.
b)- Bem como apodou a sócia e a sócia-gerente de “porcas”.
c)- A arguida M.E.S, dirigindo-se à assistente A.P.A.  disse-lhe ainda “”não vales nada”, “és uma merda”, “precisas do R.P. para viver e comer”, “vais sofrer as consequências”.
d)- A assistente  A.P.A. começou a sentir-se mal.
e)- A arguida M.E.S, aproveitando o estado de fragilidade da assistente e de esta estar de costas, desferiu-lhe com a mão um murro, atingindo a assistente na cabeça.
f)- E puxou-a por um braço, arrancando-lhe o relógio que ali tinha colocado, o qual caiu ao solo.
g)- Em consequência dessa actuação da arguida M.E.S, a assistente sofreu dores nas zonas atingidas.
h)- Ao actuar da forma descrita, quis a arguida M.E.S molestar o corpo da assistente, o que conseguiu, causando-lhe dores, que sabia serem consequência directa da sua actuação, tendo agido livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que essa sua conduta era proibida e punida por lei.
i)- As assistentes sentiram-se vexadas, humilhadas e diminuídas.
j)- Houve clientes que só largos dias depois voltaram a frequentar o estabelecimento comercial, não só por temerem nova cena de “barracada”,
k)- Mas também por colocarem em causa a eventual veracidade das afirmações.
l)- Acreditando as assistentes que apenas voltaram por conhecerem as donas do R.P. há muitos anos.
m)- No dia 3.09.2014, cerca das 10h00, a assistente e sua mãe empurraram a arguida M.F.S. para fora da cozinha e fecharam a porta.
n)- A assistente e sua mãe andavam a hostilizar a arguida M.F.S. no sentido de ela abandonar o posto de trabalho porque obtinham mão-de-obra mais barata e queriam trespassar o estabelecimento sem os encargos da trabalhadora.
o)- Nesse dia, E. R. deu um empurrão à arguida M.F.S..

3.– E pronunciou-se nos seguintes termos, em relação ao enquadramento jurídico, no que se refere aos crimes de ofensa a pessoa colectiva e de injúria:
(…)
A cada uma das arguidas é ainda assacada a autoria material de 1 (um) crime de ofensa a pessoa colectiva, p. e p. pelo artigo 187.º, n.º 1, do Código Penal, perpetrados contra a assistente “O R., R.P., Lda.”, sendo ainda imputada apenas à arguida M.E.S a autoria material de 1 (um) crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º do Código Penal, cometido contra a assistente  A.P.A. .

Quanto ao crime de ofensa a pessoa colectiva estatui o artigo 187.º do Código Penal o seguinte:
“1.– Quem, sem ter fundamento para, em boa-fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.

2.– É correspondentemente aplicável o disposto:
a)- No artigo 183.º; e
b)- Nos n.ºs 1 e 2 do artigo 186.º”.
Nesta incriminação, o bem jurídico protegido é o bom nome, a confiança e o prestígio da pessoa colectiva ou outra das pessoas jurídicas enunciadas em tal preceito legal, pois que a honra é requisito exclusivo das pessoas singulares.
Com efeito, as pessoas jurídicas transmitem para o exterior uma determinada imagem da forma como se organizam, como funcionam e prestam os serviços que constituem o seu desiderato. É a projecção de tal imagem que faz com que as pessoas e a sociedade em geral formulem a sua opinião sobre determinado ente jurídico, nomeadamente sobre a sua competência organizativa e funcional, imagem que naturalmente se repercute na confiança, credibilidade e prestígio das mesmas e que, por isso, merecem tutela penal.
Porém, o crime em análise, contrariamente ao que sucede com aqueles que protegem a honra e consideração das pessoas singulares (injúria e difamação), apenas verá o seu elemento objectivo preenchido quando o agente do crime afirmar ou propalar factos – e já não juízos de valor – que não correspondam à realidade e que de um ponto de vista objectivo sejam aptos a ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança de uma pessoa colectiva, organismo, corporação ou serviço, exigindo, pois, um juízo de idoneidade, de aptidão do facto inverídico para atingir a credibilidade, o prestígio ou a confiança da pessoa jurídica visada.
Para além disso, é ainda necessário que o agente ao afirmar ou propalar os factos inverídicos o faça sem ter fundamento para, em boa-fé, os reputar como verdadeiros. Ou seja, para a verificação do ilícito não é necessário que o agente tenha efectivo conhecimento do carácter inverídico do facto propalado, bastando que não tenha fundamento para em boa-fé o reputar como verdadeiro.
No que concerne ao elemento subjectivo do tipo de ilícito, está-se em presença de um crime doloso, que poderá assumir qualquer uma das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal: directo, necessário ou eventual, impondo-se, naturalmente, também a sua alegação e prova.
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Já no que respeita ao crime de injúria, estatui o artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal que “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias”.

O bem jurídico tutelado pela referida norma incriminadora encontra-se, desde logo, tutelado no artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa, onde se consagra a protecção constitucional dos direitos de personalidade, designadamente o direito ao bom-nome e à reputação.

Com efeito, o princípio constitucional do direito ao bom-nome e reputação constitui uma explicitação directa do princípio da dignidade hum, integrando um núcleo essencial representativo da dimensão existencial do homem, traduzindo o seu conteúdo a pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros.

Impõe-se, pois, delimitar o conceito de honra e consideração objecto de protecção jurídico-penal.

Como ensina BELEZA DOS SANTOS “a honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale. A consideração [reporta-se] ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social, ou pelo menos de o não julgar um valor negativo”.

A actual concepção dominante concebe a honra como um bem jurídico complexo, incluindo quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, quer a sua reputação ou consideração exterior. Tal concepção é igualmente sufragada por FIGUEIREDO DIAS, segundo o qual nunca teve entre nós aceitação a restrição da “honra” ao conjunto de qualidades relativas à personalidade moral ficando de fora a valoração social dessa mesma personalidade; ou a distinção entre a opinião subjectiva e opinião objectiva sobre o conjunto das qualidades morais e sociais da pessoa; ou a defesa de um conceito quer puramente fáctico, quer estritamente normativo da honra”, concluindo o Ilustre Professor existir total congruência entre a tutela jurídico-penal e a protecção jurídico-constitucional dos valores subjacentes à honra das pessoas. 
 
O preenchimento dos tipos legais em apreciação depende da verificação dos seus elementos constitutivos: um, de natureza objectiva, traduzido na imputação de facto, mesmo sob a forma de suspeita ou na formulação de juízos de valor, ou na reprodução de uns e outros que se mostrem ofensivos da honra e consideração de outrem; outro, de cariz subjectivo, que se basta com a circunstância de o agente, ao realizar voluntariamente a acção, se tenha dado conta da capacidade ofensiva das palavras proferidas, não se exigindo qualquer finalidade ou motivação especial, bastando-se, pois, com um dolo genérico, sendo hoje pacífico na doutrina e na jurisprudência que o animus injuriandi vel diffamandi não integra o tipo subjectivo do crime em análise, o qual se basta com a idoneidade de as expressões atingirem a honra e consideração da pessoa visada, não sendo necessário que se atinja tal desiderato.

Feita a análise dos imputados crimes, verifica-se que para além da sua dimensão objectiva – a imputação de factos ou juízos de valor aptos a ofender a honra ou consideração devidas ao visado no caso da injúria e apenas a imputação de factos no caso da ofensa a pessoa colectiva – exige-se também a alegação e demonstração da dimensão subjectiva do tipo de ilícito, ou seja, impõe-se a alegação e prova de que o agente representou e quis o comportamento por si adoptado, com consciência da ilicitude dessa conduta, ou seja, que o agente actuou voluntariamente, com consciência de que o seu comportamento ofende ou se mostra apto a ofender a honra e consideração alheia e que tal é proibido e punido por lei.

Ora, no caso que nos ocupa, analisada a acusação particular (para a qual remete o despacho de pronúncia quanto aos crimes de natureza particular), verifica-se que tal acusação é omissa quanto aos factos atinentes ao dolo e consciência da ilicitude das arguidas.
Considerando que o despacho de pronúncia, quanto aos factos, remeteu in totum para a acusação, esta mantém-se como elemento delimitador do objecto do processo, tendo, pois, de conter todos os elementos do tipo de ilícito imputado, quer os objectivos, quer os subjectivos. Neste último caso, impunha-se a alegação dos elementos que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa, englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal ou seja: a determinação livre do agente para a prática do facto, podendo ele agir de modo diverso, o conhecimento ou representação de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias (dolo directo) ou, na falta dessa específica intenção, a representação do evento como consequência necessária da acção empreendida (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual) actuando assim conscientemente contra o direito.

De acordo com o disposto no nº 5 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, o processo criminal tem essencialmente uma estrutura acusatória, sendo, pois, a acusação a delimitar o poder cognitivo do tribunal, de forma a assegurar todas as garantias de defesa do arguido.

Nos crimes particulares – como é o caso dos crimes de injúria e de ofensa a pessoa colectiva – é a acusação particular que define o objecto do processo, estabelecendo desde logo os limites do quadro factual, mesmo no caso em apreço, considerando que quanto a factos, o despacho de pronúncia remeteu para a aludida peça processual.

Ora, da leitura da acusação deduzida pelas assistentes, constata-se que na mesma não estão alegados todos os factos que, ainda a provados, pudessem suportar a condenação das arguidas.
Com efeito, na acusação particular não são descritos factos integradores do dolo, designadamente que as arguidas conheciam e queriam o resultado da sua conduta, tendo actuado livremente e com esse propósito.

Como já se deixou exposto anteriormente, o crime de injúria, bem como o de ofensa a pessoa colectiva, não exige a verificação do impropriamente chamado dolo específico. Mas é necessário que se mostre alegado que o agente queira com o seu comportamento ofender a honra ou consideração (pessoa singular), a credibilidade ou prestígio (pessoa colectiva) dos visados, ou que preveja essa possibilidade de forma que a mesma lhe pudesse ser imputada dolosamente, decidindo, com esse conhecimento, actuar ainda assim e apesar de saber da proibição e perseguição da sua conduta.

Tal como é sustentado no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 4.05.2011 (processo n.º 102/09.8GAAVZ.C1, disponível em www.dgsi.pt), entendimento jurisprudencial que se sufraga inteiramente e encontra plena coincidência com o caso dos autos, “num crime doloso, da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).

Dispõe o n.º 3 do art. 283.º do C. P. Penal, aplicável à acusação particular, ex vi art. 285.º, n.º 3, do mesmo código, que a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada. Face à cominação de nulidade no caso da acusação que não preencha os requisitos estabelecidos naquela disposição legal, importa ter algum cuidado na sua elaboração, como, aliás, salientam Leal-Henriques e Simas Santos no Código de Processo Penal, 2.ª edição, tomo II, pág. 140, em anotação ao artigo 283.º, os quais, a propósito desta questão, escreveram que “No que se reporta à elaboração da acusação interessa também chamar a atenção para a necessidade de se conferir o máximo cuidado à sua feitura, não apenas no aspecto de explção geral, como sobretudo na vertente da descrição fáctica, que deve ser suficientemente pormenorizada e precisa, até porque, como se sabe, está legalmente vedada uma alteração substancial dos factos transportados para a acusação, limitativa dos poderes do J.I.C. (quanto à amplitude da instrução e decisão instrutória – art.ºs 303.º e 309.º) e dos poderes do juiz do julgamento (arts.ºs 358.º e 359.º).

O dolo como elemento subjectivo – enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objectivas – constitutivo do tipo leal de crime de injúria, será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283º/3 C P Penal, impõe que seja incluído na acusação.

Ultrapassada a fase processual em que a acusação particular deduzida podia ter sido rejeitada ao abrigo do disposto no artigo 311º/2 alínea a) C P Penal, por ser manifestamente infundada por falta de alegação de factos do tipo subjectivo, na fase de julgamento restaria ponderar a possibilidade de accionar os mecanismos dos arts 358 e 359 do CPP.

No caso sub judice, a acusação deveria ter sido rejeitada, por manifestamente infundada, dado que os factos ali descritos não constituem crime.

Crime na noção contida na alínea a) do artigo 1º do C P Penal é o “conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais”. O fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime, só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos constitutivos – objectivos e subjectivo – de qualquer ilícito criminal ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante”, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do C P Penal. (…)

Dada a estrutura basicamente acusatória integrada pelo princípio da investigação judicial do nosso processo penal, o tribunal está vinculado ao thema decidendum definido pela acusação – princípio da vinculação temática – como forma de assegurar a plenitude da defesa, garantindo ao arguido que apenas tem que defender-se dos factos acusados, e não de outros, e que apenas poderá ser condenado pelos factos acusados, e não por outros. Daí que a lei fulmine com nulidade, a sentença que condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e condições previstos nos arts. 358º e 359º do C. Processo Penal (art. 379º, nº 1, b), do mesmo código).

Mas, em certas circunstâncias, e no que à fase do julgamento respeita, pois só esta agora releva, o Código de Processo Penal possibilita o conhecimento de novos factos e a condenação do arguido por eles.

Assim, se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver – isto é, quando os novos factos conhecidos na audiência não excedem o âmbito do objecto do processo, tal como foi definido na acusação – o tribunal pode deles conhecer, desde que, oficiosamente ou a requerimento, comunique tal alteração ao arguido e lhe conceda, se requerido, o prazo necessário para a preparação da respectiva defesa, salvo se os novos factos tiverem sido alegados pela defesa (art. 358º, nºs 1 e 2, do C. Processo Penal).

Se a alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia for substancial – tal como é definida no art. 1º, f), do C. Processo Penal – já o tribunal só pode deles conhecer se, feita a sua comunicação, o Ministério Público, o arguido e o assistente concordarem com a continuação do julgamento pelos novos factos, e a alteração não determinar a incompetência do tribunal (art. 359º, nº 3, do C. Processo Penal) (…).

Ora, o artigo 1.º, alínea f) C P Penal, define “alteração substancial dos factos” como aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.

É óbvio que a descrição dos factos constantes da acusação particular deduzida pelos recorrentes não integra sequer um crime, pois a omissão do elemento subjectivo do tipo legal de crime que pretendiam imputar manifestamente não permite a imputação de uma conduta ilícita típica aos arguidos.

Consequentemente, afastada está a possibilidade do julgador suprir a falta da alegação dos factos integradores do tipo subjectivo, com recurso às aludidas normas.

É a lei processual penal vigente.

E não nos compete contornar os obstáculos legais sob pena de violação do princípio da acusação e da verdade material – subtraída à influência que, através do seu comportamento processual, a acusação e a defesa queiram exercer sobre ela e que, não sendo absoluta ou ontológica, há-de ser, antes de tudo, uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço – mas processualmente válida”, acrescentando-se ainda em tal aresto que “factos que impliquem a imputação de um crime diverso ou que agravem os limites máximos das sanções aplicáveis (portanto, a implicar a pronúncia ou condenação pelo mesmo tipo legal de base, mas agravado ou qualificado), são, necessariamente, factos com repercussão na configuração do ilícito e/ou na moldura penal. Pressuposto necessário é que se verifiquem os elementos objectivos e subjectivos do tipo, essenciais à estrutura e conceito do crime. Se os factos exarados na acusação não constituem crime, torna-se inviável a transmutação para crime diverso. (…) O elemento subjectivo não pode resultar como extrapolação e efeito lógico do conjunto dos factos objectivos que são imputados aos arguidos na acusação dos assistentes. É que, como se refere no referido Acórdão da Relação de Guimarães de 7 de Abril de 2003, CJ, ano XXVIII, tomo 2, pág. 292, no nosso direito ninguém sustenta a existência de presunções de dolo.

Entendemos assim que não é admissível a ideia de um “dolus in re ipsa”, ou seja a presunção do dolo resultante da simples materialidade de uma infracção, isto sem embargo de se poder operar a comprovação do dolo pelo recurso a presunções legais, coisa bem diferente, mesmo porque, salvo os casos de confissão por parte do agente de um crime, a prova do dolo tem de se inferir do conjunto da prova produzida na audiência de julgamento e, nomeadamente, de presunções legais”  .

Por outro lado, importa ter ainda presente o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 1/2015, de 20 de Novembro de 2014 (publicado no Diário da República, 1.ª Série – n.º 18, de 27 de Janeiro), onde se estabeleceu que “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor não pode ser integrada por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal”, pelo que tal insuficiência de factos alegados na acusação não é suprível em sede de audiência de julgamento por essa via, acrescentando-se, que também não o será com recurso ao disposto no artigo 359.º do Código de Processo Penal, tendo em conta a ausência do elemento subjectivo na acusação, pelo que tal comunicação não configuraria uma alteração substancial, mas antes o aditamento de elemento do tipo inicialmente omisso, sendo ele essencial à estrutura do próprio crime.

Revertendo o quadro legal e jurisprudencial exposto para o caso em apreço, e compulsada a acusação constata-se que do referido articulado não constam alegados os factos atinentes ao elemento subjectivo dos referidos crimes particulares imputados às arguidas, não se mostrando alegado na acusação que cada uma das arguidas agiu de forma livre, deliberada e consciente, pretendendo com as expressões que cada uma proferiu atingir a imagem, bom nome e credibilidade da assistente “O R. – R.P., Lda.”, e no caso da arguida M.E.S, também a honra e consideração devidas à assistente, expressões essas que se revelavam aptas a atingir tal desiderato, tendo cada uma das arguidas actuado com esse conhecimento e vontade, apesar de saberem que tal conduta era proibida e punida por lei.

Em face de tal omissão, constituindo os factos omitidos elemento constitutivo dos crimes imputados, não poderá, pois, dizer-se que o aditamento de tais factos em julgamento configurasse uma alteração substancial de factos, pois que, em bom rigor, o que ocorre é que a conduta imputada às arguidas na acusação particular não continha todos os elementos necessários à sua qualificação como crime de injúria e crime de ofensa a pessoa colectiva.

Perante o que se deixa exposto, resta concluir pela absolvição das arguidas quanto à autoria material dos imputados crimes de ofensa a pessoa colectiva e de injúria, em virtude de não terem sido alegados (e por isso insusceptíveis de serem provados) todos os elementos típicos essenciais a tais crimes.

4.– Em sede conclusiva, os assistentes avançam as seguintes razões de discórdia:
A)- A sentença em recurso ao não condenar as arguidas pelos crimes de injúria e ofensa a pessoa coletiva nas pessoas dos assistentes conforme consta da Acusação Particular, viola grosseiramente, o disposto no artigo 410° n.° 2,alínea c) e d) do C.P.P., pelo que deve ser declarada nula e modificada, nos termos do art.º 431.° alíneas a) e b) do C.P.C.
B)- A decisão sob recurso apreciou mal a prova produzida em Audiência de Julgamento quanto ao dolo, porquanto este resultou provado em sede de audiência de discussão e Julgamento conforme melhor consta da sentença recorrida.
C)- As Arguidas confessaram e assumiram que se dirigiram aos Assistentes de forma injuriosa, chamando-lhes nomes e ofendendo o seu bom nome e reputação, tendo a convicção e a consciência dos seus atos.
D)- Assim sendo, deverá ser modificada a decisão de que ora se recorre nos termos do disposto no artigo 431° alíneas a) e b) do C.P.P., por referência ao disposto no artigo 412° n.° 3 a) e b) do C.P.P.;
E)- Devendo ser as arguidas condenadas pelos crimes de Injúria e Ofensa a pessoa coletiva, conforme vinham acusadas, bem como no pedido de Indemnização Civil respectivo.
F)- Tendo resultado provados os elementos do dolo no decurso da audiência, o Tribunal "a quo" do desconsiderá-los, por alegadamente não constarem da acusação particular está a pôr em causa e a violar o disposto nos artigos 339° n.° 4 e 368° n.° 2 do C.P.P.
G)- Não resulta da prova apurada em audiência de julgamento, que as arguidas não se tenham apercebido do sentido típico de tais expressões, tendo-as expressado de forma livre e consciente, com a intenção de manchar o bom nome dos Assistentes.
H)- "tendo atuado as Arguidas com manifesto "animus injuriandi ve1 difamandii" e com dolo direto, querendo o resultado produzido..." forçosamente tem de se concluir, que com a sua atuação as arguidas conformaram-se com a possibilidade de injuriarem e ofenderem os Assistentes, não podendo de todo haver outra interpretação do seu modus operandis.
I)- Como fim último das finalidades do processo Penal - Realização da Justiça, mesmo que, por mera hipóteses académica, na Acusação Particular se tivesse omitido um elemento subjetivo do tipo - o dolo, que não foi o caso, como já se demonstrou supra, estaríamos apenas perante uma Acusação Particular deficiente, que poderia ter sido suprida, lançando-se mão e obedecendo-se ao Princípio da Conservação dos Atos Imperfeitos.
J)- Assim, a sentença do tribunal "a quo" violou o disposto no artigo 358.° do C.P.P. pelo que deve considerar-se nula.
K)- Deveria o Tribunal "a quo" ter imputado às arguidas o elemento do dolo que resultou provado no decurso da Audiência de Discussão e Julgamento, através da própria confis¬são das arguidas conforme consta na sentença recorrida.
L)- Não se pode afirmar que estes elementos configuram uma alteração substancial dos factos previstos na Acusação Particular, uma vez que não imputam às arguidas crimes diversos daqueles por que vêm acusadas, nem agravam dos limites máximos das sanções aplicáveis.
M)- Da Audiência de Julgamento resultou inequivocamente a confissão de que a arguida M.E.S chamou descompensada à assistente  A.P.A. e a arguida M.F.S. afirmou que os clientes do R.P. só iriam comer porcaria, até porque constam como factos provados na sentença recorrida e como motivação da mesma.
N)- Das declarações prestadas pelas Arguidas, provou-se que estas agiram de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito conseguido de ofender os Assistentes na sua honra e consideração.
O)- E bem sabiam que tal conduta era proibida e punida por lei,tendo consciência que estavam a difamar e ofender o bom nome dos Assistentes.
P)- O Tribunal "a quo" decidiu mal, quando não considerou que as arguidas tivessem agido de forma livre, deliberada e consciente com o propósito conseguido de ofender os Assistentes na sua honra e consideração, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei.
Q)- Efetivamente na Acusação Particular são descritos factos integradores do dolo, designadamente que as arguidas conheciam e queriam o resultado da sua conduta. A arguida M.E.S é licenciada e a sua mãe, não o sendo, também não é iletrada, bem sabendo o teor e alcance das suas palavras.
R)- O crime de Injúrias não exige a verificação do impropriamente chamado dolo específico. É tão-somente necessário que o agente queira, com o seu comportamento ofender a honra ou consideração alheias ou preveja essa possibilidade de forma que a mesma lhe pudesse ser imputada dolosamente. Nada mais - Ac Rel Coimbra 14-06-2006.
S)- Se a Acusação Particular fosse infundada por falta dos elementos subjetivos do tipo, deveria ter sido rejeitada ao abrigo do disposto no artigo 311° n.° 2 alínea a) e n.° 3 alineas c) e d) do C.P.P.
T)- Não o tendo feito, o Tribunal "a quo " poderia ponderar da possibilidade de acionar os mecanismos do art.° 358.° do CPP.
U)- Mas ao invés, existiu a fase de instrução, as arguidas foram pronunciadas, o Tribunal "a quo" recebeu a Acusação Particular e mais, o Ministério público aderiu à mesma, sem reservas.
V)- Esta decisão, salvo melhor opinião, não é fazer justiça. É premiar o infrator que até confessou que praticou os crimes de que vem acusado!
W)- Se no decurso da Audiência se tivésse verificado uma alteração não substancial dos factos descritos na Acusação ou na Pronúncia, que não excedessem o âmbito do objecto do processo, tal como foi definido na Acusação, o Tribunal podia deles conhecer, desde que, oficiosamente ou a requerimento, comunicasse tal alteração ao arguido e lhe concedesse, se requerido, o prazo necessário para a preparação da respetiva defesa (art. 358°, n°s 1 e 2 do C.P.P.).
X)- Assim, somos de concluir que no caso em apreço houve má vontade e uma má aplicação de justiça pelo Tribunal "a quo", devendo a sentença recorrida ser anulada e modificada, sendo as arguidas condenadas pelos crimes aqui descritos.

5.– Apreciando.

i.- Pese embora os recorrentes invoquem o disposto no artº 412 nº3 do C.P. Penal, é patente não ser legalmente possível uma reapreciação probatória, desde logo por ausência de cumprimento de requisitos essenciais – qual a materialidade fáctica dada como assente ou não assente que, em seu entender, deveria ser alterada, demonstrando, por excertos devidamente identificados e debatidos, em que elementos probatórios concretos o tribunal errou ao proceder à sua apreciação.

ii.- Diga-se, aliás, que no caso presente, a invocação de tal normativo nem sequer se mostraria possível, pois ainda que o quisessem, os recorrentes não poderiam nunca cumprir um requisito básico da reapreciação probatória, a saber, a indicação da factualidade reportada ao dolo e à consciência da ilicitude, uma vez que a acusação particular que formularam é omissa a tal respeito.

iii.- Estamos, pois, perante uma questão de direito, que se resume a saber se a omissão de determinados factos, em sede acusatória, pode ou não ser suprida oficiosamente pelo tribunal.
Vejamos então.

6.– Determina o artº 285 do C.P.Penal que, no caso de o inquérito ter por objecto um crime de natureza particular, como sucede no caso dos autos, compete ao assistente deduzir acusação, o que deverá ser feito nos termos previstos no artº 283, nºs 3 e 7.

i.- Tal significa que a acusação, para que seja válida, terá de conter (para além de outros requisitos que aqui não relevam) a narração dos factos que fundamentem a aplicação de uma pena ao arguido.
No caso que apreciamos e tendo em atenção que estamos perante a imputação de um crime de injúrias e de um crime de ofensa a pessoa colectiva, tal significa que a acusação terá de conter a descrição de factos que, a provarem-se, permitam concluir mostrarem-se preenchidos os requisitos dos tipos previstos nos artºs 181 e 187 do C.Penal.

ii.- No crime de injúrias, o bem jurídico protegido é a honra, nas suas múltiplas cambiantes, pois que se trata de um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exteriores. O elemento objectivo deste ilícito criminal é a injúria a outrem, consistente na imputação de factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou a prolação de palavras ofensivas da honra ou consideração alheias.

iii.- Por seu turno, o crime de ofensa a pessoa colectiva, como bem assinala o tribunal “a quo”, apenas verá o seu elemento objectivo preenchido quando o agente do crime afirmar ou propalar factos – e já não juízos de valor – que não correspondam à realidade e que de um ponto de vista objectivo sejam aptos a ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança de uma pessoa colectiva, organismo, corporação ou serviço, exigindo, pois, um juízo de idoneidade, de aptidão do facto inverídico para atingir a credibilidade, o prestígio ou a confiança da pessoa jurídica visada. Para além disso, é ainda necessário que o agente ao afirmar ou propalar os factos inverídicos o faça sem ter fundamento para, em boa-fé, os reputar como verdadeiros. Ou seja, para a verificação do ilícito não é necessário que o agente tenha efectivo conhecimento do carácter inverídico do facto propalado, bastando que não tenha fundamento para em boa-fé o reputar como verdadeiro. No que concerne ao elemento subjectivo do tipo de ilícito, está-se em presença de um crime doloso, que poderá assumir qualquer uma das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal: directo, necessário ou eventual, impondo-se, naturalmente, também a sua alegação e prova.

iv.- O elemento subjectivo consiste na enunciação factual de uma intenção de actuação ofensiva, uma vez que estamos perante ilícitos de natureza dolosa, mas que não exigem dolo específico, bastando o dolo genérico. Resta saber o que é que essa afirmação significa.
Como esclarece Maia Gonçalves, in C. Penal Português, 2007, fls. 667, “Na vigência do C. Penal de 1886 travou-se uma longa querela (…) consistente em saber se nos crimes de difamação (…), para além dos requisitos do dolo geral, era exigível um dolo específico, que seria integrado pelo fim de injuriar ou difamar, designado animus injuriandi vel diffamandi.
Tivemos oportunidade de aludir a esta querela (…) e apontámos que a exigência do dolo específico assentava num equívoco, que era o de considerar como dolo específico elementos que, ou estavam integrados no dolo genérico (directo, necessário ou eventual) ou que, num correcto entendimento dogmático, faziam parte do tipo. (…) Concluímos ser tão-somente necessário que o agente quisesse com o seu comportamento ofender a honra ou a consideração alheias ou previsse essa ofensa de modo a que a mesma lhe pudesse ser imputada, nada mais.”

v.- Damos a nossa plena adesão a este entendimento e esclarecemos ainda, na sua esteira, que entendemos que estes ilícitos não têm a natureza de crime de perigo, como sustenta Oliveira Mendes, in “Direito à Honra e sua Tutela Penal”, Almedina, págs. 56 a 59, pois a tipificação exige, como seu elemento constitutivo, um dano ou lesão efectivos dos bens jurídicos que tutela, não se limitando à mera criação de um perigo para aqueles bens.

vi.- E assim sendo, há que afirmar que o dolo genérico exigido pela lei se não reconduz apenas a que o agente tivesse uma geral consciência da perigosidade da conduta ou do meio da acção, previstos na norma incriminatória, mostrando-se antes necessário que a actuação do agente integre os elementos constantes no artº 14 do C. Penal, numa das suas vertentes (dolo directo, necessário ou eventual). Assim, terá de se mostrar assente que o agente actuou:
- representando um facto que preenche um tipo de crime e actuando com intenção de o realizar;
- representando a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta;
- ou representando a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência da sua conduta, conformando-se com aquela realização.
Em síntese, e como acima já se mencionou, é necessário que se prove que o agente queira com o seu comportamento ofender a honra ou a consideração alheias ou preveja essa ofensa de modo a que a mesma lhe possa ser imputada.

vii.- Assim sendo, a acusação a formular terá de contemplar, para que se mostrem cumpridos os requisitos acima enunciados, todos estes elementos factuais.

viii.- E o que sucede na acusação particular formulada é que o elemento subjectivo se mostra omisso, uma vez que não se mostra enunciada a intenção, por parte das arguidas de, com as descritas expressões, ofenderem a honra e consideração dos assistentes. Não há um único facto que, a provar-se, permita consubstanciar o preenchimento do dolo. De igual modo, não há uma única linha escrita, em sede acusatória, que refira terem as arguidas consciência da reprovabilidade da sua actuação. E, em sede de pronúncia, a mesma foi realizada Pelos factos e qualificação jurídica descritos nas acusações de fls. 97-99 e 112-117, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.      

7.– Quanto a este ponto (ausência de enunciação), os recorrentes – em sede deste recurso – acabam por admitir tal omissão. Entendem, todavia, que a mesma deveria ter sido suprida pelo tribunal “a quo” e pretendendo agora que seja este tribunal de recurso a fazê-lo.
Mas o que pedem não tem qualquer suporte legal.

8.– Como já anteriormente assinalámos, a acusação particular apresentada não refere factos integradores do elemento subjectivo do tipo, relativamente a nenhum dos crimes cujo cometimento imputa às arguidas. Ora, tal omissão acarreta, como consequência necessária, a nulidade de tal acusação, como prescreve o nº3 do artº 283 do C.P.Penal (aplicável por força do nº3 do artº 285 do mesmo diploma legal).

9.– E essa nulidade, não tendo sido conhecida em sede de instrução, só poderia e deveria ser apreciada em sede de sentença - como o foi - uma vez que, tendo havido lugar a instrução, ao juiz do julgamento não é permitido apreciar se uma acusação é manifestamente infundada e conhecer de tal questão, no despacho que designa dia para julgamento, como determina o artº 311 do C.P. Penal.

10.– A acusação e, existindo, a decisão de pronúncia, fixam o objecto do processo, o thema decidendum.
Daqui decorre que, qualquer alteração ou aditamento que se venha a realizar, por virtude da prova resultante do julgamento, se mostra submetida aos princípios consignados nos artºs 358 e 359 do C.P. Penal.
 
11.– Ora, para se aferir se as arguidas quiseram agir com a intenção de ofender a honra e a consideração dos ofendidos, sabendo que tal conduta era proibida por lei, necessário se mostra que o tribunal “a quo” possa dar tal matéria factual como assente e, para tanto, só o poderá fazer se tal factualidade constar do libelo acusatório (não basta afirmar-se, como fazem os assistentes, que as arguidas “até confessaram” – mas confessaram o quê, se a materialidade relativa ao dolo não constava na acusação?)

12.– E é imperiosa tal inclusão pois, como se decidiu já no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015 “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.». E assim é porque o dolo, na nossa legislação, não se presume, sendo matéria de facto, que cabe à 1ª instância averiguar e fixar, em sede de rol de factos provados e não provados.

13.– Tratando-se os crimes em apreciação de ilícitos de natureza dolosa e face à ausência de alegação factual em sede acusatória, da intenção com que as arguidas agiram, bem como do conhecimento da ilicitude de tal actuação, há que retirar a conclusão lógica de que não se mostram preenchidos todos os elementos constitutivos dos ilícitos àquelas imputados.
E tal conclusão bastaria para se concluir pela improcedência do recurso pois, não se mostrando preenchidos todos os elementos que permitem a integração do crime – designadamente, não se mostrando demonstrado o elemento volitivo do dolo - nada mais restava ao tribunal “a quo” senão absolver as arguidas.

14.– Assim, no caso dos autos, mesmo provando-se todos os factos constantes na acusação, os mesmos seriam sempre insuficientes para condenar as arguidas pela prática dos crimes de injúria e ofensa a pessoa colectiva, uma vez que faltam os factos susceptíveis de preencher os elementos do dolo e da consciência da ilicitude.
                                                       
15.– Há pois que constatar que não assiste qualquer razão aos recorrentes nas críticas que avançam quanto ao decidido, pois apenas a si mesmas podem imputar a responsabilidade quanto ao enquadramento jurídico realizado, uma vez que foram as assistentes que, em sede de acusação, não fizeram constar – como lhes competia – os factos relativos ao dolo e à consciência da ilicitude, omissão esta que a lei não permite ao tribunal suprir.

16.– Nestes termos, conclui-se que a decisão absolutória das arguidas, proferida pelo tribunal “a quo”, se mostra correcta, não merecendo a crítica que os recorrentes lhe dirigem, pelo que deve ser mantida.

iv–Decisão.
Face ao exposto, acorda-se em considerar improcedente o recurso interposto pelos assistentes “o R., R.P., lda.” e  A.P.A.. , mantendo-se a decisão recorrida.
Condenam-se os assistentes nas custas e fixa-se a T.J em 3 UC. para cada um.

    
Lisboa, 8 de Novembro de 2017

(Margarida Ramos de Almeida-relatora)
(Ana Paramés)