Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
96/18.9PBVLS.L1-5
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
REJEIÇÃO
AMEAÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: - Só, e apenas, quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la, pelo que, se a questão for juridicamente controversa, o juiz no despacho do artigo 311.º do C.P.P. não pode considerar a mesma manifestamente improcedente.
- No caso em apreço, está em causa a expressão “agora vocês, agora vocês” quando utilizada para preenchimento do tipo legal do crime de ameaça, proferida pelo arguido enquanto corria, exibindo uma navalha numa das suas mãos, atrás dos dois ofendidos, agindo, nos termos da acusação, de modo livre, deliberado e consciente, querendo, ao actuar da forma descrita, provocar receio, medo e inquietação àqueles, como efectivamente provocou, sabendo ser proibida e punida por lei a sua conduta, sendo necessário interpretá-la estas expressões no seu contexto.
- Se, na acusação, se indica, não apenas a expressão proferida pelo arguido, mas também a circunstância, sentido e intenção com que aquele a proferiu: exibindo uma navalha e com a intenção de provocar receio, medo e inquietação nos visados, como efectivamente provocou e se nesse quadro, inexiste uniformidade na jurisprudência em torno da concretização de “mal futuro”, fundamental para aferir da relevância penal e subsunção jurídica dos factos cuja prática vem imputada ao arguido na acusação, entendemos não ser, o momento da prolação do despacho de saneamento do processo, o adequado para fazer a opção por um dos entendimentos em confronto.
- Perante entendimentos divergentes ou questões controversas, não é possível afirmar, para fundamentar a sua rejeição, que a acusação é manifestamente infundada - poderá eventualmente vir a ser julgada improcedente, após julgamento, o que é um efeito jurídico distinto da rejeição.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No processo n.º 96/18.9PBVLS, o Ministério Público deduziu acusação contra AM, melhor identificado nos autos, imputando-lhe a prática, como autor material e na forma consumada, de dois crimes de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal.
Por despacho proferido em 28 de Setembro de 2020, a acusação foi rejeitada como manifestamente infundada.
2. O Ministério Público não se conformou com o teor do despacho de rejeição da acusação e dele interpôs recurso, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1. A factualidade vertida na acusação pública (que por brevidade de exposição e economia de texto se dá por reproduzida) contém factos com relevância criminal constitutivos, em abstrato, do crime de ameaça, previsto e punido, no artigo 153. °, n.° 1, do Código Penal, anunciando um mal futuro e reclamando a intervenção do direito penal.
2. A expressão e atuação imputadas ao arguido, descritas na acusação, integram, pelo menos, uma ameaça com a prática de crime contra a integridade física, prenunciando um mal futuro. 
3. Porquanto, o arguido correu atrás dos ofendidos exibindo uma navalha numa das mãos dizendo "agora vocês, agora vocês".
4. Tal comportamento associado à expressão, sob o ponto de vista do homem médio e segundo as regras da experiência, são aptas e idóneas a provocar medo ou inquietação, projetando-se para o futuro, não se esgotando naquele momento, prejudicando a liberdade de determinação.
5. Inequivocamente o arguido deu a entender aos ofendidos que estava disposto a atingi- los na integridade física.
6. O crime de ofensa à integridade física tentada não é punível porque ao crime não cabe pena de prisão superior a 3 anos e a punibilidade não está expressamente prevista - artigos 143.º, n.º 1, e 23.º, n.º 1, ambos do Código Penal.
7. Não sendo punível esta tentativa, o arguido ao correr durante algum tempo atrás dos ofendidos, manifesta intenção de os ofender na sua integridade física e deixou-os com medo, motivo porque fugiram.
8. Isto é, naquele momento estava esgotada a sua possibilidade de agredir, por não se conseguir aproximar fisicamente dos ofendidos.
9. Depreende-se do teor do comportamento e expressão que o arguido quis transmitir aos ofendidos que os iria agredir.
10. Só não o concretizando porque os ofendidos conseguiram fugir.
11. Tendo o arguido atuado voluntária e conscientemente, com o propósito de causar temor nos ofendidos, fazendo com que estes receassem que, dali em diante, o propósito anunciado fosse concretizado, pois fez-lhes crer que, pelo menos, estava disposto a atentar contra a sua integridade física, o que foi levado a cabo com o intuito de causar medo e de criar um sentimento de insegurança, o que tudo quis, sabendo que a sua conduta era proibida por lei, daí resulta de forma inequívoca a prática do crime de ameaça previsto e punido pelo artigo 153.°, n.º 1, do Código Penal.
12. Concluindo-se, assim, que os factos descritos e imputados na acusação pública contêm todos os elementos necessários, sob o ponto de vista objetivo e subjetivo, que enquadram o tipo de crime em apreço. 
13. É entendimento pacífico da jurisprudência que a rejeição da acusação, por ser "manifestamente infundada por inexistência de crime", só deve ocorrer em casos limite e claramente inequívocos e incontroversos (o que não é o caso dos autos).
14. Por outro lado, a opção de sanear o processo considerando a acusação pública "manifestamente infundada por inexistência de crime" infringe o princípio do acusatório, pois não é inequívoco que os factos narrados não são subsumíveis ao tipo de crime de ameaça, artigo 153. °, n.º 1, do Código Penal.
15. Devendo, assim, o douto despacho ser substituído por outro que receba a acusação pública e que designe julgamento.
16. Pois mostra-se efetuada uma incorreta interpretação dos normativos vertidos nos artigos 153. °, n. ° 1 e 311. °, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea d), ambos do Código de Processo Penal.
3. Não foi apresentada qualquer resposta ao recurso.
4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), pronunciou-se no sentido de que o recurso merece provimento.
5. Procedeu-se a exame preliminar, foram colhidos os vistos, após o que os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.
II – Fundamentação
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, a questão a apreciar e decidir consiste em saber se se verifica no caso motivo para rejeição liminar da acusação, por manifestamente infundada.
2. Da decisão recorrida
Diz-se no despacho recorrido:
(…)    
AM, melhor identificado nos autos, vem acusado da prática, como autor material e na forma consumada, de dois crimes de ameaça, p. e p. pelo art° 153°, n° 1 do Código Penal.
É imputado ao mesmo (cf. acusação que antecede) ter, no dia 18 de Agosto de 2018, cerca das 05h30m, em Rosais, e enquanto se fazia acompanhar pelo participado TC , ter seguido MST e MRS enquanto estes se dirigiam para o seu veículo.
De, nessas circunstâncias, ter corrido atrás dos referidos MST e MRS, “exibindo uma navalha numa das suas mãos e dizendo “agora vocês, agora vocês"“, ao que se seguiu - segundo a acusação - uma agressão do arguido TC  a MST.
Ora,
i. Do crime de ameaça
Nos termos do disposto no art° 153°, n° 1, do Código Penal, “Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal,a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.
A propósito do crime em questão, escreveu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12 de Dezembro de 2001, proc. n° 2880/2001) que “Neste tipo objectivo de ilícito, o conceito “Ameaça” apresenta 3 características essenciais, a saber:.
1  - Mal: O mal tanto pode ser de natureza pessoal (ex. lesão à saúde) como patrimonial (ex. destruição de automóvel ou danificação de um imóvel);
2 -Futuro: O mal ameaçado tem que ser futuro, isto é, o mal, obrecto da ameaça, não pode ser iminente, pois, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execucão do respectivo acto violento (art. 22.º/2 c). do respetivo mal - ex. haverá ameaça, quando alguém afirma «hei de te matar«; já se tratará de violência quando alguém afirma «vou-te matar já»), sendo irrelevante que o agente refira ou não o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o, este seja curto ou longo.
3 - Que dependa da vontade do agente: é indispensável que a ocorrência do mal futuro apareça como dependente da vontade do agente, sendo, esta característica permite a distinção entre a ameaça e o simples aviso ou advertência; é indiferente a forma que revista a ação de ameaçar: tanto pode ser oral (direta ou por via telefone) escrita (assinada ou anónima), gestual, ou se sirva deinterposta pessoa. ” (realce é nosso)
(Em sentido concordante, também Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21 de Maio de 2018, proc. n° 375/16.0GAVLP.G1 e Taipa de Carvalho - Comentário Conimbricense do Código Penal, anotação ao art° 153°).
Fazendo corresponder a antecedente exposição e análise dos elementos objetivos do crime de ameaça ao circunstancialismo imputado nos autos ao arguido AM, não se nos afigura manifesta a verificação de todos eles.
O mal ameaçado tem que ser futuro, isto é, o mal, objeto da ameaça, não pode ser iminente, pois, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respetivo acto violento (artigo 22°, n° 2, al. c) do Código Penal), do respetivo mal. O mal anunciado terá a característica de mal futuro desde que não se trate já duma tentativa criminosa.
Sucede, porém, que a factualidade vertida na acusação que antecede, designadamente no segmento da imputação de factos ao arguido AM, quando refere que o mesmo correu atrás dos ofendidos MST e MRS “exibindo uma navalha numa das suas mãos e dizendo “agora vocês, agora vocês”“ não descreve a ameaça de um mal futuro, mas antes a iminência de uma agressão (como se veio a consumar - segundo a tese da acusação - pelo participado TC - que acompanhava o arguido AM na acção - ao ofendido MST), um acto de execução de outro tipo legal de crime (em tese: ofensa à integridade física, roubo, coacção...).
Desta forma,
Quanto à alegada prática, pelo arguido AM, de dois crimes de ameaça, p. e p. pelo art° 153°, n° 1, do Código Penal, não se mostram verificados os pressupostos para a incriminação pelo respectivo tipo de ilícito criminal.
E, assim,
Considera-se a acusação, pelas razões expostas, manifestamente infundada, pelo que deverá a mesma ser rejeitada, nesta parte.
Nos termos do disposto no art° 311°, n°s 2 a) e 3 d), do Código de Processo Penal, na medida em que os factos imputados ao arguido AM não costituem, crime, rejeito, nesta parte, a acusação pública quanto aos crimes de ameaça, p. e p. pelo art° 153°, n° 1 do Código Penal.
***
3. Apreciando
1. O C.P.P. vigente estabeleceu, de forma clara, que o Ministério Público é o dominus do inquérito, quanto à promoção do processo e à dedução da acusação, nos artigos 48.º e 53.º, com as limitações constantes dos artigos 49.º a 52.º do mesmo diploma. O C.P.P. consagra, assim, a estrutura acusatória do processo, mitigada com uma vertente investigatória (máxima acusatoriedade do processo penal, temperada com o princípio da investigação judicial, segundo estabelece o artigo 2.º n.º 2, ponto 4, da Lei n.º 43/86 de 26 de Setembro - Lei de autorização legislativa em matéria de processo penal), em que um dos seus traços estruturais consiste na distinção clara entre a entidade que tem a seu cargo a fase investigatória e que, se for caso disso, sustenta uma acusação, e uma outra entidade que julga, em audiência pública e contraditória, os factos objecto dessa acusação. Numa fórmula simplificada: quem acusa não julga; quem julga não acusa.
Face à redacção originária do artigo 311.º, n.º2, alínea a), do C.P.P., sobre a rejeição da acusação considerada manifestamente infundada, discutiu-se se o juiz de julgamento podia rejeitar a acusação com fundamento em indiciação insuficiente, o que conduziu ao assento do S.T.J. n.º4/93, publicado no D.R., I Série, de 26 de Março de 1993, consagrando que o referido preceito incluía a rejeição da acusação “por manifesta insuficiência de prova indiciária”.
Tal jurisprudência caducou com as alterações introduzidas no artigo 311.º pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, que aditou a esse artigo um n.º 3 com a enumeração taxativa dos casos em que, para efeitos do n.º2, a acusação se considera manifestamente infundada.
Continuando o n.º2, alínea a), do artigo 311.º, a estabelecer que, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada, o n.º3 ficou com a seguinte redacção, que se mantém:
«3 – Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.»
Como se assinala no acórdão da Relação de Coimbra, de 21 de Abril de 2010, proferido no processo 51/06.1TAFZZ.C1  (disponível em www.dgsi.pt, como outros que venham a ser citados sem diferente indicação) as diversas alíneas do n.º 3 do artigo 311.º definem, de forma clara, a área de actuação do juiz de julgamento, ao qual se impõe, em obediência ao princípio do acusatório, constitucionalmente consagrado, uma interpretação restritiva das mesmas.
O legislador de 1998, ao precisar o conceito de acusação manifestamente infundada e aditar o novo n.º 3 ao artigo 311.º, para além da alínea d) que, aparentemente, deveria constituir o cerne do conceito - «Se os factos não constituírem crime» -, incluiu três outras alíneas que, genericamente, abarcam o conteúdo das alíneas a) a f) do n.º 3 do artigo 283.º, criando uma zona de sobreposição entre nulidades da acusação e o conceito de acusação manifestamente infundada.
Temos, assim, factos que constituem, simultaneamente, nulidades dependentes de arguição e sanáveis (artigo 283.º, n.º3) e vícios de que se conhece oficiosamente, fundamentando a rejeição da acusação.
Relativamente às referidas situações de sobreposição, estamos face a nulidades atípicas que seguem, em geral, o regime das nulidades dependentes de arguição, mas que, num determinado momento processual, podem ser conhecidas oficiosamente e fundamentar a rejeição da acusação.
Na lógica do que no supra citado acórdão de 21 de Maio de 2010 se entende como “a tendencial taxatividade e necessidade de interpretação restritiva das hipóteses de rejeição por manifesta improcedência, única forma de evitar que o juiz que irá proceder ao julgamento se pronuncie sobre a substância da acusação, com a consequente desconformidade ao texto constitucional”, identificam-se os casos de rejeição liminar da acusação, enunciados no n.º3 do citado artigo 311.º, como “vícios estruturais graves” (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição, 2009, p. 789), em que a acusação é inepta para servir de base a uma sentença condenatória, o que desde logo afasta a possibilidade de rejeição liminar da acusação por manifestamente infundada quando os vícios de que eventualmente padeça não sejam estruturais e graves.
Esses “vícios estruturais graves” têm de ser aferidos diante do texto da acusação, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo, pois o apelo a elementos extrínsecos, concretamente no caso da alínea d) do artigo 311.º, n.º3 (que é o que aqui nos importa), remeteria o juiz de julgamento para o exame e avaliação das provas do inquérito, o que colidiria com a estrutura acusatória do processo.
No que toca à hipótese de atipicidade da conduta imputada, enquanto fundamento de rejeição da acusação contemplado no artigo 311.º, n.º 3, alínea d), a mesma verificar-se-á apenas nos casos em que os factos narrados na acusação não constituam clara e manifestamente crime, ou seja, como se afirma no acórdão da Relação de Évora, de 15 de Outubro de 2013, proferido no processo n.º 321/12.0TDEVR.E1, não sendo inequívoca e incontroversa a tese da atipicidade da conduta imputada, a acusação não pode ser considerada como manifestamente infundada.
Por outras palavras: só e apenas quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la, pelo que, se a questão for juridicamente controversa, o juiz no despacho do artigo 311.º do C.P.P. não pode considerar a mesma manifestamente improcedente.
2. No caso em apreço, está em causa a expressão “agora vocês, agora vocês” quando utilizada para preenchimento do tipo legal do crime de ameaça, proferida pelo arguido enquanto corria, exibindo uma navalha numa das suas mãos, atrás de MST e MRS Travanca, agindo, nos termos da acusação, de modo livre, deliberado e consciente, querendo, ao actuar da forma descrita, provocar receio, medo e inquietação àqueles, como efectivamente provocou, sabendo ser proibida e punida por lei a sua conduta.
Questiona-se se os factos da acusação se reportam a um mal ameaçado futuro ou iminente.
Para saber se estamos perante o anúncio de um “mal futuro” que se projecta na liberdade de acção e de decisão futura (visando, portanto, limitar ou coarctar a liberdade pessoal do visado) ou antes diante de um “mal iminente” que pode considerar-se já um acto de execução de um dos crimes do catálogo legal, é fundamental a contextualização da situação.
As dificuldades surgem quando se trata de concretização do que é um “mal futuro”, como a jurisprudência tem assinalado.          
Como se disse no acórdão da Relação de Guimarães, de 18 de Novembro de 2013, processo n.º 52/11.8GBFLG.G1, citando Taipa da Carvalho:
«É claro que sendo o mal iminente poderemos estar perante uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é do respectivo mal, já que segundo a alínea c) do artigo 22º do Código Penal, o anúncio daquele mal pode, segundo a experiência comum, ser de natureza a fazer esperar que se lhe sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores, isto é, actos que preencham um elemento constitutivo de um tipo de crime, ou que sejam idóneos a produzir o resultado típico.
Mas daí se não segue, necessariamente, que deixe de existir uma ameaça.
Quando alguém afirma que “vou-te matar”, poderemos estar perante uma tentativa de homicídio, de tentativa de coacção, que consomem naturalmente a ameaça, ou perante um crime de ameaças. Tudo depende da intenção do agente.
É que, para haver tentativa não basta a prática de actos de execução é necessário que esses actos sejam de execução de um crime que o agente “decidiu cometer” (art. 22º, n.º1).
Aliás, algumas linhas à frente do excerto acima citado e que tantas incompreensões tem gerado, o próprio Prof. Taipa de Carvalho esclareceu que “Necessário é só, como vimos, que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa (cf. art. 22º-2-c) – op. cit. § 7, pág. 343 (itálico nosso).
Se, por exemplo, o agente não tem intenção de matar, aquela expressão, não integra um acto de execução de um crime de homicídio, mas integra claramente um crime de ameaças, verificados os demais pressupostos deste tipo de crime, nomeadamente a consciência do agente da susceptibilidade de provocação de medo ou intranquilidade [cfr. neste sentido, v.g., o Ac. da Rel. de Lisboa de 17-6-2004,proc.º n.º 3525/04, rel. Almeida Cabral “(…) o agente que no calor de uma discussão, de natureza familiar, diz para a vítima em tom sério ‘mato-te’, comete o crime de ameaças previsto no art.º153º do Cód. Penal)”,in www.pgdlisboa.pt), o Ac. da Rel. do Porto de 5-1-2000, proc.º n.º 0040533, rel. Pinto Monteiro, em que estavam em causa as expressões “sua filha da puta, eu rebento-te os cornos” e “mato-vos a todos, seus filhos da puta” dirigidas pela arguida à assistente, o Ac. da Rel. do Porto de 25-8-1999, proc.º n.º 9910861 em que estava em causa a conduta da arguida que intimidou a assistente, encostando à cabeça desta uma pistola que sabia não estar municiada, ao mesmo tempo que disse que a matava e que já tinha sete palmos à conta dela de sepultura”, ambos in www.dgsi.pt,], sendo certo que a motivação da ameaça como crime autónomo é irrelevante (…)” (ac. de 18/05/2009, relatado pelo Desemb. Cruz Bucho no proc. 349/07.1PBVCT www.dgsi.pt.).»
A contovérsia reside, precisamente, na interpretação que se faz da distinção entre o que se considera como mal futuro e como mal iminente. Como se assinala nos acórdãos da Relação de Coimbra, de 07/03/2012, proferido no processo n.º 110/09.9TATCS.C1, e da Relação do Porto, de 11/07/2012, proferido no processo 1087/11.6PCMTS.P1, enquanto uns consideram que, quando o anúncio é de um mal iminente, não há crime de ameaça, outros entendem que o mal iminente, embora esteja próximo, é ainda um mal futuro e a pedra-de-toque para distinguir o que é ameaça e o que são actos de execução de outro ilícito criminal que o agente tenha decidido cometer estará na intenção que presidiu à conduta em questão.
No caso em apreço, para atribuir à equívoca expressão “agora vocês, agora vocês” relevância penal, é necessário interpretá-la no seu contexto. Na acusação  indica-se não apenas a expressão proferida pelo arguido, mas também a circunstância, sentido e intenção com que aquele a proferiu: exibindo uma navalha e com a intenção de provocar receio, medo e inquietação nos visados, como efectivamente provocou.
Nesse quadro, inexistindo uniformidade na jurisprudência em torno da concretização de “mal futuro”, fundamental para aferir da relevância penal e subsunção jurídica dos factos cuja prática vem imputada ao arguido na acusação, entendemos não ser o momento da prolação do despacho de saneamento do processo o adequado para fazer a opção por um dos entendimentos em confronto. E isto porque, perante entendimentos divergentes ou questões controversas, não é possível afirmar, para fundamentar a sua rejeição, que a acusação é manifestamente infundada - poderá eventualmente vir a ser julgada improcedente, após julgamento, o que é um efeito jurídico distinto da rejeição.
Assim, sem necessidade de outras considerações, o recurso merece provimento, impondo-se a revogação do despacho recorrido para que seja substituído por outro que dê seguimento aos termos do processo, tendo em conta os artigos 311.º e 312.º do C.P.P., se não se verificarem outras circunstâncias que o impeçam.
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III – Dispositivo
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido e determinando que seja substituído por outro que, a inexistirem outros fundamentos para a rejeição da acusação, proceda ao respectivo recebimento.
Sem custas.    

Lisboa, 11 de Maio de 2021
(o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)
Jorge Gonçalves                  
Maria José Machado