Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3054/17.7T8LSB-A.L1-6
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: AUDIÊNCIA PRÉVIA
DISPENSA DA SUA REALIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE/ANULAÇÃO DA DECISÃO
Sumário: I.– No NCPC (Lei 41/2013), passou a dispor-se como regra a obrigatoriedade da realização de audiência prévia, agora previsto no artº 591 do C.P.C., nomeadamente quando “tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.” (nº1 b)

II.– A lei processual apenas autoriza o juiz a dispensar a audiência prévia nas acções que hajam de prosseguir e, a realizar-se, a audiência prévia só tivesse por objecto as finalidades indicadas nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º

III.– A dispensa da audiência prévia fora destes casos, só é possível por via do mecanismo da adequação formal prevista no artº 547 e 6 do C.P.C. sem prejuízo de a dispensa ser precedida de consulta das partes, por exigência do princípio do contraditório, como decorre do artº 3º, nº 3, do NCPC.

IV.– Sendo esta uma formalidade obrigatória e essencial, a sua não observância é fundamento de nulidade, que inquinou a sentença proferida por ter decidido de questão de que não podia conhecer e apenas impugnável por via do competente recurso.

SUMÁRIO: (elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


Sociedade R, Lda JMe BM, deduziram oposição por embargos contra o B, SA Sucursal em Portugal, por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa proposta por este, para haver a quantia de €199.371,39, titulada por livrança (figurando na mesma como subscritora e avalistas, os executados, aqui Embargantes), pedindo que se julgue procedente a presente oposição à execução, e em consequência, extinta a execução.

Invocaram, para o efeito, e em síntese, a ilegitimidade processual do Embargado para instaurar a acção executiva à qual os presentes Embargos se encontram apensos, alegando que os invocados contratos de trepasse e cessão de créditos celebrados entre o B, PLC e o Embargado violam os respectivos direitos fundamentais de autonomia contratual e livre escolha da entidade bancária com o qual pretendem manter contratos, a que acresce carecer a dita cessão de créditos, da qual não foram notificados, do seu consentimento, motivo pelo qual a cessão não seria válida, nem teria produzido efeitos relativamente aos Embargantes.

Alegaram ainda, a nulidade do Contrato de Locação Financeira Imobiliária celebrado entre a Embargante Restaurante C, Lda. e o B subjacente à emissão da livrança, em virtude do prédio dele objecto padecer de vícios que não permitiam à locatária alcançar o fim a que a coisa locada se destinava, não tendo sido cumprida a obrigação imposta ao B, pelo art.º 1031.º do C.C.

Notificado para contestar, o Embargado pugnou pela improcedência dos embargos, alegando ainda que por “Sentença proferida em 17.03.2016 e já transitada em julgado, foi, entre outras, reconhecida a resolução do Contrato de Locação Financeira na sequência do seu incumprimento definitivo” (artº 32) dos aqui Embargantes, no âmbito de procedimento cautelar quer correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Instância Central de Sintra, 1.ª Secção Cível (Juiz 4), sob o n.º 19355/15.6T8SN, com antecipação do juízo sobre a causa final.
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Após, foi proferido despacho que dispensando a audiência prévia por entender que o princípio do contraditório se encontrava assegurado nos autos, passou a proferir de imediato sentença, julgando os embargos improcedentes.
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Não se conformando com a decisão que considerou procedentes os embargos, interpuseram os embargantes recurso formulando as seguintes conclusões:
“I.– A Executada e os Executados apresentam o Recurso de Apelação por entenderem que deve ser anulada a matéria julgada e transitada no Procedimento Cautelar – Procº 19344/15.6T8SN, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste- Instância Central de Sintra – 1ª Secção Cível – Juiz 4, por os factos ali alegados e transitados não serem verdadeiros, nem legais e injustos, pelo que não deve o transitado sobrepor-se à verdade, à legitimidade, à justiça e á boa-fé contratual dos executados;
II.– E, assim, não deve ter-se como resolvido o contrato de locação financeira, podendo a Executada invocar e obter a nulidade daquele contrato por erro decorrente de vício do objecto, nos termos do art.º 1034º do C.P.C. e assim invalidar a cedência do crédito recorrente do incumprimento e resolução do contrato, pelo que a autoridade do caso julgado no presente caso, deve ser julgada nula, convertendo os embargos na renovação do litígio;
III.– O locador não teve e não tem a faculdade de proporcionar à Executada o prédio pretendido por esta, de 435m2 e terreno com 1.046m2, pelo que incumpriu o contrato, nos termos do artº 1034º do C.C., por existir um defeito que o locador bem conhecia à data da escritura de 25 de Setembro de 2008, pelo que o prédio dado à locatária não tinha a área pretendida, nem havia na escritura em causa qualquer declaração a justificar a diferença – o defeito – apesar de ter sido apresentado no Serviço de Finanças, a 07 de Outubro de 2008, uma alteração da área à matriz predial urbana da freguesia da Buraca, sob o artº 578, e que, mesmo assim não colocou à disposição da locatária o prédio que ela pretendia – área esta que não foi registada na 2ª Conservatória do Registo Predial da Amadora;
IV.– Por não ter sido colocado à disposição da locatária o prédio pretendido, esta e o seu gerente tiveram vários prejuízos;
V.– A Sra.Dra Juiz a quo fez uma apreciação errada da matéria de facto e tomou uma decisão errada, nos termos ao art.º 640º do C.P.C. e no que se refere ao vício que se traduziu e traduz numa grande diferença da área;
VI.– Os embargantes podem mencionar e requerer a nulidade do contrato de locação financeira, por vício do seu objecto, sem que este contrato esteja sujeito à emissão da livrança, por o vício traduzido na passagem de área de 258,40m2 para a área coberta de 435m2 e com logradouro (terreno) de 1.046m2;
VII.– A audiência prévia devia ter sido convocada e não dispensada pelos Exma., Sra. Dra. Juíza a quo, nos termos do art.º 591º do C.P.C., para identificar o objecto do litígio e para delimitar os temas da prova, nos termos do art.º 396º do C.P.C.;
VIII.– E não deveriam ter sido dados por provados os factos resultantes das condições particulares do contrato, mencionadas sob o números 15-1 e 15-2 da Douta Sentença, por serem declarações constantes do impresso, previamente preenchido e perante as quais a locatária não teve oportunidade para as negociar, limitando-se a aceitá-las, declarações que, e sobre as quais a Executada nada pôde negociar, violam o regime geral das cláusulas contratuais gerais reguladas pelo Dec. Lei 323/2001 de 17 de Dezembro, violando, nomeadamente, o princípio da boa-fé da Executada, contendo, assim, a escritura de 25 de Setembro de 2008, uma determinação insuprível sobre os aspectos essenciais do negócio em causa e atentatórias da boa-fé da Executada e seu gerente;
IX.– Pelo que as declarações constantes nas condições 15.1 e 15.2 devem ser decretadas nulas, nos termos do art.º 9º nº 2 e art.º 12º do Dec. Lei 323/2001, por serem contrárias à boa-fé, e, assim proibidas de acordo com os artº 15º, e nulidade que é invocável a todo o tempo, nos termos do art.º 24º do referido Dec. Lei 323/2001, pelo que não devem aquelas condições constar dos factos provados, o que se requer seja decretado;

X.– E deveriam ter sido dados por provados os seguintes factos;
a)- Na caderneta predial já consta que o prédio tem a área de 1.427m2 com a área de implantação do edifício de 505m2 e área coberta de 888m2;
b)- O Modelo 1 do IMI foi entregue no Serviço de Finanças em 07 de Outubro de 2008;
c)- Até à presente data essa área ainda não foi registada na 2ª Conservatória do Registo Predial da Amadora;
d)- À Locatária foi dado o prédio que não serve o fim pretendido pela Executada;
e)- O locador bem sabia que não podia dispor a favor da Executada o prédio que pretendia;

XI.– A Executada e o embargado são os sujeitos cambiários e também sujeitos do negócio causal estando, por isso, no domínio das relações imediatas, podendo, em consequência, discutir a existência e validade, e, assim como os efeitos do negócio causal do contrato de locação em causa;
XII.– Opondo, assim, à exequente a excepção da nulidade do negócio causal, por erro decorrente do vício do seu objecto;
XIII.– E sem submissão ao título executivo, a livrança;
XIV.– Devendo o exequente ser condenado e responsabilizado pelo vício no prédio locado e pela inadequação do referido prédio aos fins em vista pela Executada;
XV.– O locador não se limitou a financiar o gozo do prédio dado pelo contrato de 25 de Setembro de 2008, pois alterou o prédio locado quanto à sua área;
XVI.– O locador agiu com má-fé negocial com a locatária e pôs à sua disposição um bem viciado e inadequado ao fim que aquela tinha em vista;
XVII.– Pelo que o contrato de locação financeira deve ser declarado nulo, apesar de já transitado em julgado no processo que correu termos no Tribunal de Sintra;
XVIII.– A instauração do Procedimento Cautelar não tinha fundamento, pois o que a exequente pretendia era receber a área de terreno que não tinha pago nem comprado e não dado à executada;
XIX.– Sem verdade e com ilegalidade, o transitado não deve sobrepor-se à legalidade e justiça, na esfera patrimonial da executada e executados;
XX.– Devendo ser decretado incumprido, pelo locador, o contrato de locação financeira de 25 de Setembro de 2008, nos termos dos artº.s 1034.º e 1032.º e sua alínea a) do C.C., por nele constarem os defeitos já referidos e que o locador conhecia antes de 25 de Setembro de 2008;
XXI.– E, assim, desconsiderar a autoridade do caso julgado, inutilizando o direito que aquela
decisão reconheceu;
XXII.– E que os fundamentos invocados de nulidade do negócio em causa são atendidos, com efeitos rectroactivos;
XXIII.– O exequente deve ser condenado por litigância e má-fé processual, nos termos do art.º
542º do C.P.C. por ter instaurado o Procedimento Cautelar sem fundamento para o mesmo;
XXIV.– E, sem prescindir, deve ser decretada a nulidade das declarações prestadas pela locatária constantes nas condições 15.1 e 15.2 do contrato de locação financeira, com todas as consequências legais.

NESTES TERMOS e com o Douto Suprimento de V.Exas. deve ser anulada a Douta Sentença recorrida, e decretada a nulidade d
contrato de locação financeira nº 0820060, por vício do seu objecto e sem sujeição à emissão do título executivo – livrança - com todas as consequências legais, e, em consequência, ser decretados os efeitos rectroactivos, e assim restituir à locatária os valores das rendas vencidas e pagos e, ainda, ser a Exequente condenada a indemnizar a Executada pelos prejuízos sofridos e a quantificar em execução de sentença, SÓ ASSIM FAZENDO A COSTUMADA JUSTIÇA.”
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Pelo embargado, foram interpostas contra-alegações, peticionando:
a)- Ser rejeitado, por inadmissível, o recurso da matéria de facto;
b)- Em qualquer caso, ser o presente recurso julgado totalmente improcedente, por manifestamente infundado;
c)- Serem rejeitados, por inadmissíveis, os pedidos formulados contra o Recorrido;
E, em consequência, ser confirmada, na íntegra, a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo.”
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QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos do disposto nos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.

Tendo este preceito em mente, a questão a decidir consiste em primeiro lugar apurar:
a)- Se o tribunal recorrido poderia dispensar a audiência prévia;
b)- Se deve ser apreciado o recurso quanto à decisão da matéria de facto;
c)- Se em execução de livrança pode e deve ser conhecida a validade da relação causal;
d)- Se, transitada em julgado, decisão que considerou resolvido por incumprimento imputável ao locatário, um contrato de locação financeira, determinando a restituição do bem, pode em sede de embargos opostos à livrança que titula as rendas vencidas, ser discutida a validade deste contrato e o seu incumprimento, agora imputável ao locador.
*

MATÉRIA DE FACTO

É a seguinte a factualidade adquirida pelo tribunal recorrido:
“1 –O Exequente intentou uma acção executiva para pagamento de quantia certa, contra os ora Embargantes, acção de que estes autos são um apenso, munida da livrança que é fls. 28 da mesma, que aqui se dá por integralmente reproduzida, subscrita pela Embargante Restaurante C, Lda. e avalizada pelos demais executados embargantes.

2 –Alegou o Exequente no requerimento executivo, além do mais, que:
“1.– Em 2 de setembro de 2015, a Exequente e o B, Plc. (doravante “B”) acordaram a alienação de parte da atividade bancária (banca de retalho e Wealth Management) do B em Portugal, mediante a celebração de um contrato designado “Agreement for the sale and purchase of the retail and wealth and specific corporate banking business of the Portuguese branch of B PLC”.
2.- Ao abrigo desse contrato, bem como de outros documentos contratuais assinados no âmbito do mesmo, designadamente o Contrato de Trespasse, datado de 31 de março de 2016, uma escritura pública de compra e venda outorgada a 31 de março de 2016 e duas Escrituras Públicas de Cessão de Créditos e respetivas garantias outorgadas a 31 de março de 2016, todos com efeitos a 1 de abril de 2016, operou-se a transmissão de parte do negócio em Portugal do B para a Exequente, mediante trespasse.
3.- Por via da conclusão do referido negócio através dos supramencionados Contratos, foram cedidos, nos termos e para os efeitos do artigo 577.º e seg. do Código Civil, um conjunto de créditos - entre os quais os créditos detidos sobre os Executados que irão aqui ser peticionados - os quais, com efeitos a 1 de abril de 2016, passaram a ser, para todos os efeitos legais, da titularidade do Bankinter, S.A. – Sucursal em Portugal, sendo este, por conseguinte, o respetivo credor à presente data - cfr. Documento n.º 1 que se junta e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
(…)”.

3– A livrança referida nos factos anteriores foi entregue em branco ao B PLC, para garantia do cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de locação financeira imobiliária celebrado entre este e a subscritora da livrança - Restaurante C, Lda. - a 25 de Setembro de 2008, nos termos do documento junto a fls. 84 a 103, que aqui se dá por integralmente reproduzido, onde nomeadamente se lê, no Documento Complementar – Condições Particulares:
«(...)
1ª Identificação do Imóvel, objecto do Contrato
Prédio Urbano sito em XX, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Amadora sob o número 1033, da Freguesia de Buraca, Concelho de Amadora, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 578 da dita freguesia, encontrando-se registada provisoriamente a favor do Locador nos termos da inscrição G-Ap. 7 de 14/08/2008, não sendo exigível licença de utilização por o prédio se encontrar inscrito na matriz anteriormente a mil novecentos e cinquenta e um.
(…)
15ª - Declarações do Locatário
15.1.- O Locatário declara ter escolhido de sua livre vontade o imóvel, objecto do presente Contrato, tendo fixado directamente com o Vendedor o preço e demais condições da compra e venda, assumindo plenamente a responsabilidade da sua escolha, pelo que os riscos dela decorrentes e da dispensa de registo provisório são da sua exclusiva responsabilidade.
15.2.- O Locatário declara ainda ser o imóvel inteiramente adequado aos fins a que se destina e que, tendo perfeito conhecimento do estado em que o mesmo se encontra, o aceita sem qualquer reserva.
(…)».

4– Nos termos do referido Contrato de locação financeira, o B adquiriu o Imóvel a JCe AC, pelo preço de €530.000,00 e, de seguida, deu-o em locação financeira à Embargante Sociedade, pelo valor de €564.450,00.
5– O Imóvel foi entregue à Embargante Sociedade na data de celebração do Contrato de Locação Financeira.
6– O prazo da locação foi de 10 (dez) anos, contados a partir da data da celebração do Contrato - cfr. Cláusula 4.ª das Condições Particulares do Contrato.
7– A Embargante Sociedade obrigou-se a pagar ao B 120 rendas, de carácter mensal e antecipado, sendo a primeira renda no montante de €34.450,00 e as demais rendas no valor calculado de acordo com a taxa de juro nominal previamente convencionada entre as partes, sem prejuízo do reconhecimento ao locatário, pelo locador, de um período de carência de capital de doze meses - cfr. Cláusulas 5.7 das Condições Particulares do Contrato e da Alteração ao Contrato de Locação Financeira junta a fls. 106 verso a 108.
8– As partes acordaram ainda que a primeira renda vencer-se-ia na data da entrada em vigor do Contrato Locação Financeira e as restantes 119 rendas ao dia 29 de cada mês - cfr. Cláusula 5.6 das Condições Particulares do Contrato.

9– O prédio urbano objecto do contrato de locação mostra-se descrito na Conservatória do Registo Comercial nos seguintes termos:
Composto por:
a)- Edifício de rés-do-chão e sótão, com 155,40 m2,
b)- Logradouro, com 75 (setenta e cinco) m2,
c)- E anexo de cave e rés-do-chão, com 28 (vinte e oito) m2., tendo sido desanexado do descrito sob o nº 00932 da Buraca, conforme resulta da informação da Conservatória do Registo Predial de Amadora de 09 de Fevereiro de 2011.

10– O B instaurou um procedimento cautelar contra a aqui Embargante Cervejaria P ao abrigo do disposto no artigo 21.º, n.ºs 1 e 7 do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, com vista à entrega judicial do imóvel, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Instância Central de Sintra, 1.ª Secção Cível (Juiz 4), sob o n.º 19355/15.6T8SNT, no âmbito do qual a ali requerida foi citada não tendo deduzido oposição, e no qual foi proferida sentença em 13/11/2015 que julgou procedente a pretensão deduzida e “em face da resolução do contrato ordeno[u] a apreensão e imediata entrega à requerente, em bom estado de conservação e desocupado de pessoas e bens”, cfr. documento junto a fls. 116 verso a 138 e que aqui se dá por integralmente reproduzido.

11– Nos termos do n.º 7 do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, o Tribunal ordenou a pronúncia das partes para efeitos da antecipação do juízo sobre a causa principal, e por sentença proferida em 17.03.2016 e já transitada em julgado, cfr. documento junto a fls. 142 verso a 150 e que aqui se dá por integralmente reproduzido, foi:
- reconhecida a resolução do Contrato de Locação Financeira Imobiliária 0820060 na sequência do seu incumprimento definitivo pela locadora;
- reconhecido o direito de propriedade da ali Requerente sobre o prédio objecto do contrato;
- confirmada a entrega daquele imóvel à ali Requerente a título definitivo.

12– Mediante Contrato de Trespasse, escritura pública de compra e venda de activos e duas Escrituras Públicas de Cessão de Créditos e respectivas garantias, todos outorgados a 31 de Março de 2016, e com efeitos a 1 de Abril de 2016, operou-se a transmissão de parte do negócio em Portugal do B para o Exequente e foi cedido a este o crédito detido sobre os Executados.” 
*
  
DO DIREITO

Alegam os recorrentes como fundamento do seu recurso, em síntese que:
- o tribunal não deveria ter considerado como provados as clausulas referentes ao contrato de locação financeira, uma vez que alegou a sua nulidade;
- o tribunal deveria dar como provados os factos por si invocados fundamento do incumprimento do locador;
- o tribunal não deveria ter dispensado a audiência prévia;
- o tribunal deve desconsiderar a decisão transitada em julgado no âmbito de procedimento cautelar interposto pela embargada e deve inutilizar o direito que aquela reconheceu, considerando o contrato incumprido pelo locador e condenando-o por litigância de má fé, por ter interposto procedimento cautelar sem fundamento.  
Decidindo      
           
Iniciemos a nossa apreciação pelo fundamento de recurso invocado na conclusão VII, respeitante à preterição de audiência prévia que “devia ter sido convocada e não dispensada pelos Exmºs, Sra. Dra. Juíza a quo, nos termos do art.º 591º do C.P.C., para identificar o objecto do litígio e para delimitar os temas da prova, nos termos do art.º 396º do C.P.C.”
Trata-se da arguição de omissão de uma formalidade, pese embora de forma algo confusa e sem o devido enquadramento lógico, mas que suporta também ele (a par de outros argumentos elencados nas conclusões recursórias) o pedido de anulação da decisão proferida em primeira instância e cujas consequências este tribunal deve apreciar, porque constantes das referidas conclusões recursórias.

Decidindo

a)- Se o tribunal recorrido poderia dispensar a audiência prévia;

Deduzida contestação pelo embargado, o tribunal recorrido procedeu à prolação do seguinte despacho:

AUDIÊNCIA PRÉVIA
De harmonia com as disposições conjugadas dos arts. 593º, n.º 1, 591º, n.º 1, al. d) e 595º, n.º 1, al. b), todas do Novo C.P.C., e estando assegurado o princípio do contraditório, dispenso a realização da audiência prévia.
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O estado do processo permite, sem necessidade de mais provas, a apreciação total do pedido deduzido, uma vez que, pese embora se suscitem no mesmo questões de facto e de direito, encontram-se já assentes os pressupostos de facto necessários à sua apreciação.
Pelo exposto, e nos termos do art. 595º, nº 1, al. b) do N.C.P.C., passo a proferir o conforme SANEADOR SENTENÇA”.

No NCPC (Lei 41/2013), passou a dispor-se como regra a obrigatoriedade da realização de audiência prévia, agora previsto no artº 591 do C.P.C., nomeadamente quando “tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.” (nº1 b)
Nos preceitos seguintes, mormente nos artºs 592 e 593 do C.P.C., estipulam-se as excepções à regra acima prevista. Estipula o artº 592 do C.P.C., os casos em que a audiência prévia não tem lugar e o artigo 593.º da definição dos casos em que a audiência prévia pode ser dispensada.

A lei processual apenas autoriza o juiz a dispensar a audiência prévia nas acções que hajam de prosseguir e, a realizar-se, a audiência prévia só tivesse por objecto as finalidades indicadas nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º

“A forma expressa e taxativa como estas disposições estão redigidas permite concluir com segurança que quando a acção houver de prosseguir (isto é, não deva findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória que já tenha sido debatida nos articulados) e o juiz pretenda decidir de imediato, no todo ou em parte, do mérito da causa (ou apreciar excepção dilatória que não tenha sido debatida nos articulados ou que vá julgar improcedente) deve realizar-se audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito que importe para esse conhecimento.

É o que resulta claro da não inclusão da alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º no elenco das situações para que remete o n.º 1 do artigo 593.º e da relação necessária entre o artigo 592.º e o artigo 593.º.
Preside a esta opção a intenção de facultar às partes a última oportunidade de exporem os seus argumentos para convencer o juiz sobre a solução de mérito a proferir, tendo o legislador optado pela solução de que isso se processe em sede de audiência prévia e, portanto, de forma oral através da discussão entre os intervenientes. Esta última oportunidade encontra-se, por exemplo, nas acções não contestadas em que a revelia é operante, caso em que não obstante o réu não tenha apresentado contestação lhe é permitido apresentar alegações, nessa ocasião por escrito (artigo 567.º).” – Ac. da R. do Porto de 27/09/2017, proc. nº 136/16.6T8MAI-A.P1, relator Aristides Rodrigues de Almeida, disponível para consulta in www.dsgi.pt.

A obrigatoriedade de realização da audiência prévia, por contraponto à possibilidade de dispensa prevista no artº 508-B nº1 b) do C.P.C. (na versão anterior à Lei 41/2013), tem sido defendida de forma unânime pela nossa jurisprudência (Ac. R. Évora de 30/06/2016, relator Mário Serrano, proc. nº 309/15.9T8PTG-A.E1; Acs. R. Lisboa de 9/10/2014, relator Jorge Leal, Proc. 2164/12.1TVLSB.L1-2, de 5/5/2015, relatora Cristina Coelho, Proc. 1386/13.2TBALQ.L1-7, e de 19/10/17, 155421-14.5YIPRT.L1-8., bem como os Acs. R. Porto de 24/9/2015, Proc. 128/14.0T8PVZ.P1, de 12/11/2015, Proc. 4507/13.1TBMTS-A.P1 e de 24/09/2015, Proc. nº 128/14.0T8PVZ.P1)

Também na doutrina, a obrigatoriedade de realização desta audiência prévia, é defendida de forma igualmente unânime, referindo Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, vol. II, 2015, pág. 190, o seguinte: «Uma vez executado o despacho pré-saneador (ou seja, uma vez concluídas as diligências resultantes do preceituado no nº 3 do artº 590º - correcção das irregularidades formais dos articulados), ou, não tendo a ele havido lugar, logo que o processo lhe seja feito concluso, após a fase dos articulados, o juiz, observado o preceituado pelo artº 151º, nºs 1 e ss., designa dia para a audiência prévia indicando o seu objecto e finalidade de entre os constantes do nº 1 do artº 591º, a realizar num dos 30 dias subsequentes, salvo se ocorrer alguma das hipóteses previstas no artº 592º (em que a mesma não pode ex-lege realizar-se) ou no artº 593º (em que o juiz a entenda dispensável). Conforme a exposição de motivos da Reforma de 2013, «a audiência prévia é, por princípio, obrigatória. Porquanto só não se realizará: - nas acções não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante; - nas acções que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma excepção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados» (sic). E obviamente que também se não realizará no caso de revelia absoluta (operante) do réu, hipótese em que haverá lugar ao julgamento abreviado previsto no artº 567º, por reporte ao artº 56º.»

No mesmo sentido, JOÃO CORREIA, PAULO PIMENTA e SÉRGIO CASTANHEIRA defendem que que «por princípio, no processo comum de declaração, é obrigatória a realização de audiência prévia» (Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013, Almedina, Coimbra, 2013, p. 73). Sobre a questão do conhecimento de mérito no despacho saneador, referem que «(…) sempre que o juiz projecte conhecer no despacho saneador de uma excepção peremptória ou de algum pedido (independentemente do possível sentido da decisão), deverá convocar audiência prévia para os efeitos do artº 591º.1.b)», aditando que «está em jogo assegurar o exercício do contraditório, na acepção de direito a produzir alegações antes de uma decisão final (artº 3º.3)» (idem, p. 77)

Por sua vez, Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo”, 2014, Almedina, págs.. 231, 232, refere, relativamente à necessidade de ser convocada a audiência prévia: “Antes de mais, impede que as partes venham a ser confrontadas com uma decisão que, provavelmente, não esperariam fosse já proferida, isto é, evita-se uma decisão-surpresa (art.º 3º 3). Depois, são acautelados os casos em que a anunciada intenção de conhecimento imediato do mérito da causa derive de alguma precipitação do juiz, tanto mais que não é frequente a possibilidade de, sem a produção de prova, ser proferida já uma decisão final. Desse modo, a discussão entre as partes tanto poderá confirmar como infirmar a existência de condições para o tal conhecimento imediato do mérito (…). Por outro lado, sabendo as partes que, no caso de o juiz pretender decidir o mérito da causa logo no despacho saneador, serão convocadas para uma discussão adequada, não terão de preocupar-se em utilizar os articulados para logo produzirem alegações completas sobre a vertente jurídica da questão. A solução consagrada permite, portanto, que os articulados mantenham a sua vocação essencial (exposição dos fundamentos da acção e da defesa), ao mesmo tempo que garante a discussão subsequente, se necessária, em diligência própria.”

A questão que ora se nos coloca é qual a consequência da indevida dispensa da audiência prévia, nos casos em que as questões a decidir tenham sido objecto de discussão nos articulados e o juiz entenda que o estado dos autos permite já o conhecimento do mérito da causa.

A dispensa da audiência prévia nestes casos é possível por via do mecanismo da adequação formal prevista no artº 547 e 6 do C.P.C. sem prejuízo de a dispensa ser precedida de consulta das partes, por exigência do princípio do contraditório, como decorre do artº 3º, nº 3, do NCPC (cfr. Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, Almedina, Coimbra, 2013, p. 494).

Concede-se assim às partes uma derradeira oportunidade de discutirem não só a possibilidade entrevista pelo julgador de decisão imediata do mérito da causa, sem necessidade de averiguação de factos ainda controvertidos, como de discutirem o mérito da causa, face às pretensões e argumentos deduzidos nos articulados, podendo ainda suprir as imprecisões ou deficiências que eventualmente resultem dos articulados e que, de alguma forma possam influir no resultado do litígio.

Sendo esta uma formalidade obrigatória e essencial, a sua não observância é fundamento de nulidade.

Se esta nulidade está expressamente invocada e pode ser conhecida neste recurso é questão diversa de que se passará a conhecer.

Assim, nos termos do disposto no Artigo 195º, nº1, do Código de Processo Civil, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidades quando a lei o declare ou quanto a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

Alberto dos Reis, em Comentário ao Código de Processo Civil, 2º Vol., p. 484 (anterior artigo 201 do C.P.C. revogado), afirmava que «O que (neles) há de característico e frisante é a distinção entre infrações relevantes e infrações irrelevantes. Praticando-se um ato que a lei não admite, omitindo-se um ato ou uma formalidade que a lei prescreve, comete-se uma infração, mas nem sempre esta infração é relevante, quer dizer, nem sempre produz nulidade. A nulidade só aparece quando se verifica um destes casos:
a)- quando a lei expressamente a decreta;
b)- quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa».
No segundo caso — continua o mesmo Autor — «é ao tribunal que compete, no seu prudente arbítrio, decretar ou não a nulidade, conforme entende que a irregularidade cometida pode ou não exercer influência no exame ou decisão da causa».
A omissão do ato ou da formalidade prescrita influem no exame ou na decisão da causa quando se repercutem na sua instrução, discussão ou julgamento – cf. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, 3ª Ed., 2014, p. 381.
Posto isto, é regra assente que dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se.

Conforme explicava Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, 2º Vol., p. 507, «a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou formalidade, o meio próprio para reagir, contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente.»

Também Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, p. 372, afirma que «(…) quando a reclamação for admissível, não o pode ser o recurso ordinário, ou seja, esses meios de impugnação não podem ser concorrentes; - se a reclamação for admissível e a parte não impugnar a decisão através dela, em regra está precludida a possibilidade de recorrer dessa mesma decisão.»

Já Amâncio Ferreira in Manual dos Recursos em Processo Civil, 8º edição, pág. 52, considera que “a nulidade da sentença exige que a violação da lei processual por parte do juiz, ao proferir alguma decisão, preencha um dos casos agora contemplados no nº1 do artº 615”, nomeadamente por “excesso de pronúncia, dado que sem cumprir essa formalidade, o tribunal não podia conhecer desta questão”(Teixeira de Sousa,Estudos sobre o Novo Processo Civil). 
 
Ainda na doutrina, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, p. 26, entende que: «sempre que o juiz, ao proferir a decisão, se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei, o meio de reação da parte vencida passa pela interposição de recurso fundado na nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, nos termos do artº 615 nº1 d). Afinal, nesses casos, designadamente quando o juiz aprecie uma determinada questão que traduza uma decisão surpresa, sem respeito pelo princípio do contraditório previsto no art. 3º, nº 3, a parte prejudicada nem sequer dispôs da possibilidade de arguir a nulidade processual emergente da omissão do acto, não podendo deixar de integrar essa impugnação, de forma imediata no recurso que seja interposto de tal decisão.”

Nos casos em que nos confrontamos com situações em que é o próprio juiz que, ao proferir a decisão (in casu, o despacho saneador), omitiu uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com a falta de convocação da audiência prévia a fim de assegurar o contraditório. “Em tais circunstâncias, depara-se-nos uma nulidade processual traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve, mas que se comunica ao despacho saneador, de modo que a reacção da parte vencida passa pela interposição de recurso da decisão proferida em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d), in fine, do CPC. (Ac. do STJ de 23/06/2016, proc. nº 1937/15.8T8BCL.S1, no mesmo sentido Ac. do STJ de 17-3-16 (Rel. Fonseca Ramos), no proc. 1129/09.5TBVRL-H.G1.S1)

Conclui-se pois que ao proferir decisão sobre os presentes embargos, sem designação de audiência prévia, invocado aliás pelo embargado a prolação de decisão transitada em julgado que apreciara o incumprimento definitivo do locatário (excepção de caso julgado), sem prolação de despacho no sentido da adequação formal dos autos e sem possibilitar às partes, nomeadamente ao ora recorrente a pronúncia sobre a possibilidade de dispensa desta diligência e sobre o mérito da causa, omitiu o tribunal recorrido a realização de uma formalidade essencial, que inquinou de nulidade a sentença proferida por ter decidido de questão de que não podia conhecer e apenas impugnável por via do competente recurso.

Na procedência desta nulidade, prejudicadas ficam as demais nulidades e questões suscitadas.
*
 
DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da relação, em julgar procedente a apelação, anulando a sentença proferida em primeira instância e devendo o tribunal recorrido proceder à realização da audiência prévia omitida, ou proferir o despacho previsto no artº 547 e 6 do C.P.C., convidando as partes a pronunciar-se sobre a possibilidade de dispensa desta diligência, sobre eventuais excepções e sobre o mérito da causa.
Sem custas.



Lisboa 8 de Fevereiro de 2018


                                  
(Cristina Neves)
(Manuel Rodrigues )                                  
(Ana Paula A.A. Carvalho)