Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4654/06.6TBCSC.L1-6
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: DESPACHO SANEADOR
CASO JULGADO
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. Tendo sido proferido despacho saneador tabelar que declarou competente o tribunal, sem apreciar nenhuma questão concreta, pode posteriormente o tribunal apreciar a arguição de uma excepção de incompetência absoluta, em razão da matéria, pois o despacho saneador não formou caso julgado formal relativamente a tal questão concreta.
2. É competente o tribunal judicial e não o tribunal administrativo para julgar um litígio em que se discute o invocado incumprimento de um contrato de cedência de um estabelecimento comercial, apesar de a cedente ser uma concessionária do Estado, uma vez que o contrato em causa tem natureza privada, não intervindo a concessionária cedente munida de poderes de autoridade e não tendo as partes submetido o mesmo a regime de direito público.
(sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

RELATÓRIO.

T…, Lda intentou acção declarativa com processo ordinário contra M…, alegando, em síntese, que celebrou com a ré um contrato, através do qual a ré lhe cedeu o direito de utilização de um estabelecimento comercial na Marina de ..., pelo prazo de 25 anos a contar da entrega do espaço e mediante o pagamento de um preço, que a autora pagou integralmente, aí passando a autora a explorar um estabelecimento de restauração, tendo, porém, a autora reiteradamente incumprido o contrato, uma vez que aumentou desproporcionalmente o valor das taxas a cargo da concessionária, ora autora, pela manutenção da marina, sem que, contudo, prestasse os correspondentes serviços, de vigilância, limpeza e promoção geral, pelo que as partes acordaram em 4/07/2003 que o prazo do contrato seria aumentado em dois anos e fixaram o valor o valor das taxas a pagar pelos anos anteriores, definindo ainda os critérios de fixação dos valores das taxas para os anos seguintes, tendo a ré assinado uma carta anexa em que assumiu compromissos, que não veio a cumprir, nomeadamente não promovendo a ocupação plena dos espaços comerciais da marina, para além de não cumprir outras obrigações contratuais, como a instalação de uma lavandaria, de um supermercado, de arranjos paisagísticos, de um parque de estacionamento, não respeitando o prometido horário de funcionamento para os estabelecimentos comerciais, sendo certo que a autora não teria outorgado o contrato, nem o acordo de 4/07/2003 se soubesse que seria este o comportamento da ré, que lhe causou diminuição de clientela e avultados prejuízos.     

Concluiu pedindo:

- a declaração de que ré incumpriu o contrato;

- a redução do preço do contrato em 15% por via desse incumprimento;

- o pagamento de 7 600,00 euros por cada ano que se complete a partir da citação, sem que a ré tenha cumprido todas as obrigações contratuais;

- a declaração de que a autora tem o direito de não reabrir o estabelecimento até ao cumprimento integral das obrigações pela ré;

- a declaração de que a autora não está obrigada ao pagamento das taxas até ao cumprimento integral das obrigações da ré;

- a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 140 661,01 euros acrescida de IVA e de juros desde a citação e a quantia mensal de 3 768,98 euros acrescido de IVA desde Outubro de 1999 até ao cumprimento integral das obrigações da ré, tudo por prejuízos provocados pelo seu incumprimento.

A ré contestou arguindo, como excepção, o facto de as partes terem celebrado um acordo em 4/07/2003 com o qual puseram fim ao litígio extrajudicialmente, não podendo a autora fundar qualquer pedido em eventual incumprimento da ré relativo a período anterior a este acordo; impugnou ainda os factos alegados na petição inicial que lhe imputam o incumprimento do contrato, bem como os prejuízos invocados pela autora.

Concluiu pedindo a improcedência da acção e a absolvição do pedido.  

A autora replicou opondo-se à excepção.

Teve lugar audiência preliminar, onde foi proferido despacho saneador tabelar e foram fixados os factos assentes e a base instrutória.

No início da audiência de julgamento foi proferido despacho suspendendo a instância, por a ré ter anunciado que iria arguir a incompetência absoluta do tribunal.

A ré veio então a apresentar requerimento alegando que, por concurso público, a E…, SA, em representação do Estado Português, adjudicou à ré a concessão para a construção e exploração da Marina de ..., tendo celebrado o respectivo contrato, ficando a ré submetida ao Regulamento de Exploração e Utilização da Marina, elaborado pela E… e submetido a aprovação ministerial e ficando também com o direito de ceder a terceiros os direitos de exploração de instalações e serviços de natureza comercial e industrial com a prévia apreciação da E…, bem como o direito de cobrar taxas por si fixadas, pelos serviços que prestasse na marina, no âmbito da concessão.   

Por isso, o contrato vigente entre as partes e o acordo celebrado em 4/07/2003 têm por base um contrato administrativo de concessão, assim como as Bases Gerais da Concessão da Marina de ..., constantes no DL 335/91 de 7/9 e o respectivo Regulamento, encontrando-se a ré investida de poderes de autoridade necessários ao interesse público, com os quais contratou com a autora e sendo assim o competente a jurisdição administrativa para tramitar os presentes autos, por força do artigo 4º nº1 alíneas d) e f) do ETAF e incompetente o tribunal cível e sendo ainda possível ao tribunal conhecer desta excepção.

Concluiu pedindo que seja julgada procedente a excepção de incompetência material do tribunal e a absolvição da instância.

A autora respondeu alegando que a ré tem uma dupla capacidade jurídica, sendo a uma delas a capacidade privada inerente a qualquer entidade empresarial privada e a outra de carácter público, mediante a qual prossegue o interesse público relativo à construção e exploração da Marina de ... e que lhe foi atribuído pelo contrato administrativo que celebrou com o Estado; mas as relações que estabelece fora desse interesse público, como o contrato dos autos, que é uma cessão do direito ao estabelecimento comercial de restauração, estão fora do referido interesse público e são estabelecidas no âmbito da sua capacidade jurídica privada, não se encontrando abrangidas nas alíneas d) e f) do nº1 do artigo 4º do ETAF e, como tal, cabem na competência residual do tribunal judicial.

No que diz respeito à questão das taxas, tendo a autora apenas formulado um pedido de suspensão da obrigação de as pagar enquanto a ré não cumprir as suas obrigações (e não de que sejam consideradas não são devidas ou excessivas), também esta questão é da competência do tribunal judicial.

Concluiu pedindo que seja o tribunal julgado competente em razão da matéria para dirimir o conflito relativamente ao incumprimento do contrato celebrado entre as partes e também relativamente à questão das taxas nos termos configurados na petição inicial e, caso assim não se fosse entendido quanto a esta última questão, requereu que fosse admitida a desistência do pedido na parte respeitante à questão das taxas. 

Sobre esta arguição de incompetência material do tribunal, recaiu despacho que julgou o Tribunal absolutamente incompetente em razão da matéria, por entender ser competente a jurisdição administrativa e absolveu a ré da instância.       

                                                            *

Inconformada, a autora interpôs recurso deste despacho e alegou, formulando as seguintes conclusões:

a) O direito da Recorrida requerer a incompetência em razão da matéria do 4º Juízo Cível do Tribunal de Cascais no início da Audiência de Discussão e Julgamento já se encontra precludido.

b) A capacidade jurídica da Recorrida é bifronte. Actua com capacidade jurídica de direito privado nas relações jurídicas que correspondem a este direito, e actua com capacidade de direito público nas relações jurídicas que correspondem por sua vez a este direito e que lhe advêm do âmbito do objecto da sua concessão, tal como definido na Cláusula 4ª do Contrato de Concessão da Construção e Exploração da Marina de ... assinado em 21 de Setembro de 1995, entre ela e o Estado Português, ao tempo representado pela E….

c) O Contrato de Cessão de Direito de Utilização de Estabelecimento Comercial na Marina de ... que vincula Recorrente e Recorrida e que integra quer a causa de pedir, quer os pedidos da petição inicial, é um contrato de cessão de direito de estabelecimento comercial no âmbito do direito privado, sem quaisquer marcas de administratividade e de traços que revelem uma ambiência de direito publico nas relações que nele se estabelecem, que tem por objecto o destino à restauração (vide Cláusula Terceira), actividade esta que nada tem a ver com o serviço e interesse publico subjacentes à capacidade jurídica de direito publico da Recorrida, não actuando esta com “ius imperii”.

d) Tudo se reconduz, no caso dos autos, ao conhecimento de uma acção emergente de uma relação jurídica privada, o que implica a exclusão da jurisdição administrativa pelo que o 4º Juízo Cível do Tribunal de Cascais é competente em razão da matéria para dirimir as questões postas à sua apreciação.

Nestes termos, e nos melhor de Direito que V.Excªs, Venerandos Desembargadores Doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, e por vias dele revogar-se a Douta Decisão “a quo”, substituindo-a por outra que considere o 4º Juízo Cível do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Cascais competente em razão da matéria para dirimir o presente litigio no que se refere ao incumprimento do Contrato de Cessão de Direito de Utilização de Estabelecimento Comercial na Marina de ... outorgado entre Recorrente e Recorrida.

                                                            *

A recorrida apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso e pela confirmação da decisão recorrida.

O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo.

                                                            *

As questões a decidir são:

I) Preclusão de arguição da excepção de incompetência absoluta.

II) Saber se é competente o tribunal cível ou o tribunal administrativo. 

                                                            *

FACTOS.

Foram considerados provados os seguintes factos:

1. Através de concurso público internacional, a E…, S.A., em representação do Estado Português, adjudicou à R. a concessão para a construção e exploração de um porto desportivo na Vila de Cascais (complexo denominado Marina de ...), na sequência do que foi celebrado com a E…, em 21-9-1995, o respectivo contrato de concessão, celebrado pelo prazo de 75 anos, pelo qual a R. ficou titular do direito de construção e exploração, em regime de serviço público regular e contínuo, da referida Marina, para apoio à navegação, abrigo portuário de embarcações de recreio, bem como de instalações e serviços de natureza comercial e industrial, operacionais, complementares e acessórias da mesma, do qual constam, no que ora releva, as seguintes cláusulas:

20ª

“1. Compete à E... elaborar por sua iniciativa, ouvida a M… ou por proposta da M…, o REGULAMENTO de Exploração e Utilização da MARINA e submetê-lo à aprovação dos Ministros do Mar e do Comércio e Turismo.

(…)

5. O REGULAMENTO a que se refere esta Cláusula pode em qualquer altura ser objecto de propostas de alteração, por iniciativa da E..., ouvida a M…, ou desta última, dirigida à E..., que ajuizará da respectiva bondade, e as submeterá à aprovação dos Ministros do Mar e do Comércio e Turismo”.

21ª

1. A M... terá direito de cobrar taxas pelos serviços que prestar no âmbito da CONCESSÃO e pela utilização das instalações e equipamentos da MARINA.

O valor das referidas taxas, bem como as respectivas regras gerais de aplicação, será fixado na tabela de tarifas.

A tabela de tarifas referida no número anterior, bem como as suas revisões, será livremente fixada pela M..., que dela dará conhecimento à E... até 30 (trinta) dias antes da sua entrada em vigor.

A M... não pode cobrar quaisquer taxas que não constem da tabela de tarifas então em vigor nem aplicá-las por forma diferente daquela que dela constar ou onerar, por qualquer outra forma, o preço dos serviços ou da utilização das instalações.

Após autorização do início de exploração da MARINA DE ..., a M... poderá cobrar as taxas e tarifas devidas pelos utentes das instalações e serviços vistoriados, nos termos estabelecidos no seu REGULAMENTO.

28ª

“1. A M... poderá ceder a terceiros que disponham de idoneidade pessoal, técnica e financeira adequada para o efeito, os direitos de exploração de instalações e serviços de natureza comercial ou industrial (…).

2. A verificação da compatibilidade dos Contratos de cessão a que se refere o número anterior com o presente CONTRATO dependem de prévia apreciação da E..., devendo a M... enviar-lhe, 15 (quinze) dias antes da respectiva assinatura, um exemplar definitivo dos mesmos, com a identificação completa do cessionário e dos elementos comprovativos da respectiva idoneidade, considerando-se tais Contratos tacitamente aprovados se a ENTIDADE CONCEDENTE não se pronunciar no prazo de sete dias após a sua recepção.

3. A M... é responsável, perante os utentes e a E..., pela eficiência do funcionamento e a qualidade dos serviços desempenhados por terceiros” (doc junto a fls. 138 e ss)

2. Consta da Clausula 9.ª do contrato de concessão os serviços e instalações obrigatórias a assegurar pela R. .

3. Na Base V do DL 335/91 constam elencados os serviços e instalações obrigatórias a ser efectuados pela R. .

4. Pela aqui Ré e pela I… S.A. foi celebrado o contrato junto a fls. 63 a 83, designado de “CONTRATO PROMESSA DE CESSÃO DE DIREITO DE UTILIZAÇÃO DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL DA MARINA DE ...”, composto pelas cláusulas constantes das referidas folhas, datado de 17/4/1997, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

5. Entre a I… S.A., como primeira contraente, M…, como segunda contraente e M... SOCIEDADE CONCESSIONÁRIA SA DA MARINA DE ..., S.A., aqui Ré, foi celebrado em 01/07/1999 o contrato designado de “CESSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL”, constante de fls. 84 e 85, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

6. Entre M…, como primeira contraente, T…, LDA., como segunda contraente, M... SOCIEDADE CONCESSIONÁRIA SA DA MARINA DE ..., S.A., como terceira contraente e A…, como quarto contraente foi celebrado a 20/12/1999 o contrato designado de “CONTRATO DE CESSÃO DE POSIÇÃO CONTRATUAL”, constante de fls. 86 a 89, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

7. Entre a M... SOCIEDADE CONCESSIONÁRIA SA DA MARINA DE ..., S.A. e T…, LDA., foi celebrado o contrato designado de “CONTRATO DE CESSÃO DE DIREITO DE UTILIZAÇÃO DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL DA MARINA DE ...”, datado de 21/6/2001, constante de fls. 106 a 118 e cujo teor aqui se dá por reproduzido.

8. Na cláusula 9.ª desse contrato está estipulado que “1. Durante o período de vigência do presente contrato, o cessionário satisfará, na proporção que lhe corresponda, as taxas de manutenção e demais serviços prestados no âmbito da exploração da Marina de ..., tais como vigilância, limpeza, ou promoção geral, de acordo com o disposto no regulamento de exploração da Marina de ... e outras normas ou regulamentos que venham a ser aprovados pela E... (…).

9. Entre a M... SOCIEDADE CONCESSIONÁRIA SA DA MARINA DE ..., S.A. e T…, LDA., foi celebrado o acordo designado de “ACORDO DE PAGAMENTO E DE PRORROGAÇÃO DE PRAZO”, datado de 4/7/2003, constante de fls. 193 e 194, cujo teor aqui se dá por reproduzido, do qual faz parte integrante do referido acordo a carta constante de fls. 195 a 197 datado de 30/4/2003, enviada pela aqui autora à aqui ré e por esta recebida, bem como o documento de fls. 198.

10. A A. adquiriu o espaço comercial e o conceito em questão, para fazer nele a sua actividade de restauração – IL C… – o que foi do conhecimento da R. 11. Em 3 de Janeiro de 2000, a R. comunicou à A. que as taxas de manutenção passavam, a partir de Janeiro de 2000, inclusive, para o valor de Esc.: 13.600$00/m2 ano no que se refere aos espaços comerciais (doc. n.º 7 que se dá por reproduzido).

12. E Esc.: 6.000$00/m2 com referência aos terraços, tudo nos termos do indicado doc. n.º 7.

13. No regulamento da Marina de ... de 6-8-1999 consta, o artigo 26º, com o seguinte teor:

“1. As taxas devidas pelos serviços prestados no âmbito da concessão e pela utilização das instalações e equipamentos serão fixadas livremente pela Concessionária com a antecedência de 30 (trinta) dias relativamente à data da sua aplicação e afixadas, em local bem visível e de fácil acesso público.

2. O Valor das referidas taxas, o elenco dos serviços prestados, bem como as respectivas regras gerais de aplicação, serão fixados na Tabela de Tarifas.

3. A tabela de tarifas referida no número anterior, as suas revisões, bem como o elenco dos serviços prestados serão livremente fixados pela Concessionária, que deles dará conhecimento à E... até 30 (trinta) dias antes da sua entrada em vigor.

4. A Concessionária não poderá cobrar quaisquer taxas que não constem da tabela de tarifas então em vigor nem aplicá-las por forma diferente daquela que dela constar”.

14. Consta da cláusula 9.º do contrato referido em 5. que “Durante o período de vigência do presente contrato, o cessionário satisfará, na proporção que lhe corresponda, as taxas de manutenção e demais serviços prestados no âmbito da exploração da Marina de ..., tais como vigilância, limpeza ou promoção geral, de acordo com o disposto no regulamento de exploração da Marina de ..., nos tarifários aplicáveis e outras normas ou regulamentos que venham a ser aprovados pela E..., e dos demais acordos a que fica vinculado o cessionário do direito de utilização do estabelecimento comercial”.

                                                            *         

                                                            *

ENQUADRAMENTO JURÍDICO.

I) Preclusão do direito de arguir a incompetência absoluta do tribunal.

Alega a apelante que, tendo sido declarado competente o tribunal no despacho saneador, este despacho faz caso julgado formal quanto a esta matéria, não podendo ser de novo apreciada a excepção da incompetência do tribunal.

No despacho saneador foi julgado competente o tribunal, de forma tabelar, sem que tivesse sido apreciada qualquer questão concreta a esse propósito.

O artigo 510º do CPC (em vigor à data em que foi proferido o despacho saneador e a que corresponde agora o artigo 595º do NCPC) estabelece no seu nº1 a) que no despacho saneador são conhecidas “as excepções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente” e, no seu nº 3, estabelece que “no caso previsto na alínea a) do nº1, o despacho constitui, logo que transite, caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas …”.

Assim, não tendo sido concretamente apreciada no despacho saneador tabelar a questão ora em apreço, não se verifica o caso julgado formal quanto a esta questão (cfr neste sentido Lebre de Freitas, CPC anotado, volume 2º, página 400).

Não havendo caso julgado formal, pode o tribunal conhecer da excepção de incompetência absoluta em qualquer momento, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado sobre o fundo da causa (arts 102º e 103º do CPC a que correspondem os artigos 97º e 98º do NCPC).  

                                                            *

II) Competência do tribunal em razão da matéria.

Nos termos dos artigos 211º da Constituição da República Portuguesa, 66º do CPC e 18º da LOFTJ (Lei Orgânica do Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei 3/99 de 3/1 e em vigor à data da propositura da acção), os tribunais judiciais têm competência material para todas as causas que não forem atribuídas a outras jurisdições.

O artigo 212º da CRP e, mais concretamente, o ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei 13/2002 de 19/2), definem o âmbito da jurisdição administrativa, sendo discriminadas, no artigo 4º deste último diploma, as causas que são da competência dos tribunais administrativos e fiscais e que, consequentemente, não serão da competência dos tribunais judiciais.

Haverá então que apreciar se a presente acção cabe ou não em alguma das previsões do artigo 4º do ETAF.

O despacho recorrido entendeu que a presente acção é enquadrável nas alíneas d) e f) do nº1 do artigo 4º do ETAF e, como tal, concluiu que são competentes os tribunais administrativos e não os tribunais judiciais, para tramitar os presentes autos.

Por força das referidas alíneas, compete aos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de litígios que tenham por objecto:

d) fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;

f) questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da sua concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.  

Para determinar a competência do tribunal, importa apreciar a versão apresentada pela autora na petição inicial.

Ora a autora alega na petição inicial que, na sequência de um contrato promessa celebrado com a ré e em que a autora veio a ocupar a posição de outro contratante, ambas celebraram um contrato de cedência de exploração de um estabelecimento comercial de restauração, contrato esse que a ré veio a incumprir, razão pela qual são formulados os pedidos de redução do preço do contrato e o pagamento de uma indemnização pelos prejuízos sofridos com o incumprimento, sendo ainda pedido que seja reconhecido à autora o direito de não pagar taxas devidas por serviços que a ré está contratualmente obrigada a pagar, enquanto durar o incumprimento dessas obrigações da ré.

Destes factos apenas resulta a celebração de um contrato atípico de natureza privada, celebrado ao abrigo da liberdade contratual das partes (artigo 405º do CC), de cedência de exploração de um estabelecimento comercial, mediante o pagamento de um preço e ainda mediante o pagamento de “taxas”, ou contrapartidas, por serviços a prestar pela cedente.   

É certo que, como se veio a apurar e está assente, a ré celebrou o referido contrato com a autora na qualidade de concessionária, obtida por um concurso público, sendo o contrato de concessão que celebrou com o Estado Português um contrato administrativo, previsto no artigo 178º do Cód. Proc. Administrativo.

Mas essa qualidade, possibilitando à ré manter relações jurídicas com terceiros munida do poder de autoridade que lhe é conferido pela concessão, não a impede de ter relações de direito privado com terceiros.

E não é a qualidade de concessionária da ré, mas sim o conteúdo e natureza das relações que mantém com os terceiros que vai definir se estamos perante uma das situações previstas no artigo 4º nº1 do ETAF.

No que diz respeito à previsão da alínea d) do nº1 do referido artigo 4º, desde logo se conclui que não estamos perante a fiscalização da legalidade de normas e actos jurídicos praticados por uma concessionária no exercício de poderes administrativos, pois a autora não vem defender-se de actos praticados pela ré no uso da autoridade de concessionária, mas sim invocar o incumprimento desta no âmbito de um contrato privado de cedência de estabelecimento comercial.

Quanto à previsão da alínea f) do nº1 do mesmo artigo, o contrato invocado pela autora não integra nenhum dos três tipos de contratos aí previstos, pois não se trata de um contrato típico previsto no artigo 178º do CPA, nem de um contrato atípico com o objecto passível de um acto administrativo, nem de um contrato atípico passível de um acto de direito privado que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público (cfr neste sentido, numa situação semelhante à dos presentes autos, o ac. RL de 12/12/2013, P. 10239/09 e ainda o ac. RL de 23/11/2004, P. 1548/04, ambos em www.dgsi.pt).

O contrato objecto do presente litígio não integra as referidas alíneas do artigo 4º nº1 do ETAF, pois, como se expõe no douto parecer do Dr Mota de Campos junto a fls 1008 e seguintes, trata-se de um contrato de direito privado que a ré, apesar de concessionária do Estado Português, pode celebrar com terceiros, como pode fazê-lo com um regular fornecedor, não existindo nele uma criação de uma relação administrativa com a ora autora e sendo o mesmo mais próximo da figura contratual de direito civil de cedência de loja em centro comercial.

Da mesma forma, as taxas cobradas pela ré concessionária, embora previstas nas normas reguladoras da concessão, no contrato de cedência de exploração são tidas como uma contrapartida por serviços a prestar por uma das partes e o pedido de suspensão de pagamento dessas taxas, formulado na petição inicial, não constitui uma reacção contra um acto administrativo, mas sim a invocação da excepção de não cumprimento do contrato.              

Conclui-se, portanto, que não estamos perante uma situação que confere a competência aos tribunais administrativos, sendo competente para julgar o litígio dos autos, na sua totalidade, o tribunal comum e procedendo as alegações da apelante.

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                                                            *

DECISÃO.

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e, revogando-se o despacho recorrido, declara-se competente, em razão da matéria, o Tribunal de jurisdição cível, para tramitar os presentes autos.

                                                            *

Custas pela apelada.

                                                            *

    2014-10-01                                                              

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   Maria Teresa Pardal

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Carlos Marinho

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 Anabela Calafate