Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2084/08.4TBPDL.L1-2
Relator: EDUARDO AZEVEDO
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
RENÚNCIA
CÔNJUGE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: SUMÁRIO (do relator).

1- Se o direito de preferência pertencer a ambos os cônjuges, a comunicação para o seu exercício deve ser efectuada a ambos.

2- Cabendo o exercício desse direito, relativo a uma compra e venda, a ambos os cônjuges, perante a eventual renúncia de um deles e não se provando que se comunicou o projecto de venda ao outro e mesmo assim considerou-se que essa renúncia impedia tal exercício, numa acção de preferência essa decisão encontra-se em oposição com a jurisprudência fixada pelo assento de 25.06.1987 (DR, 1ª série, nº 234, de 10.10.1988).

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa

A e B em 28.07.2008 propuseram esta acção declarativa com processo sumário contra C e esposa, D, E e esposa, F.

Pediram que lhes fosse reconhecido o direito de preferência na aquisição do imóvel dos autos, adjudicando-se-lhes o mesmo e fosse ordenado o registo predial desse imóvel a seu favor, em substituição dos RR que vierem a constar do registo predial.

Alegaram, em síntese, que os primeiros RR venderam aos segundos um prédio rústico, com o qual a sua propriedade confina, sem que lhes tivesse sido dado conhecimento do negócio e a subsequente possibilidade de exercerem o direito de preferência.

Em 12.08.2008, os AA depositaram o montante de 300,00€ a título de preço.

Pelo decesso do R C, em incidente de habilitação de herdeiros, foram habilitadas para contra si verem prosseguir a presente lide a R D e G.

Contestaram estas habilitadas, alegando, em súmula, que o falecido C por várias vezes questionou o A sobre se queria comprar o prédio, tendo o mesmo declinado, o que manteve após lhe ter sido comunicada a venda aos segundos RR, sua identidade e preço; e os AA não têm o direito de preferência, uma vez que o seu prédio tem uma área superior à unidade de cultura.

Igualmente contestaram os 2ºs RR referindo que os 1ºs RR foi comunicado aos AA a venda para exercerem o seu direito de preferência, não se mostrando interessados.

Os AA responderam, mantendo a sua posição inicial.

Elaborou-se despacho saneador com a fixação dos factos assentes e da base instrutória.

Realizou-se audiência de julgamento, tendo sido decidida a matéria de facto.

Foi proferida sentença, em 14.08.2013, pela qual julgou-se a acção improcedente por não provada e, em consequência, absolveram-se os RR do pedido.

Os AA recorreram, recurso admitido como apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo.

Foram extraídas as seguintes conclusões:

1.º - Vêm os AA. recorrer da sentença propalada nos presentes autos, que julgou a acção improcedente por não provada e em consequência absolveu os RR. do pedido contra eles formulado, com fundamento no facto de a mesma estar em oposição frontal com a jurisprudência fixada no Assento de 25 de Junho de 1987 (Diário da Republica, 1.a série, n.° 234, de 10 de Outubro de 1988), no sentido de que “com a entrada em vigor da CRP em 1976, e mesmo antes da modificação introduzida no artigo 1463.º do CPC pelo Decreto-Lei n.º 368/77, de 3 de Setembro, a notificação para o exercício do direito de preferência deve ser feita a ambos os cônjuges, por aplicação do principio da igualdade jurídica estabelecida no artigo 36.º, n.º 3, CRP”;

2.º - Resulta dos factos dados como provados o preenchimento dos pressupostos de que a lei faz depender conferir aos AA. esse direito, vindo a acção a improceder por o Tribunal a quo ter entendido que o A. tinha renunciado ao seu direito de preferência;

3.º - Ainda que tenha havido renuncia, o certo é que a mesma, como se verifica nos factos provados, foi declarada pelo A. marido, pelo que o direito de preferência por parte da A. mulher não se extingue nem se extinguiu por tal declaração do marido, porque a eventual renuncia não foi conjunta e só esta seria juridicamente vinculante;

4.º - Os titulares do direito potestativo de preferência são os proprietários, neste caso ambos os AA., pelo que a comunicação para preferência tinha de ser feita a ambos os cônjuges, sendo certo que neste caso a A. mulher não teve acesso ao (ou conhecimento) do teor da comunicação, nem tal facto foi alegado;

5.º - A decisão recorrida violou o disposto no n.º 3 do artigo 36.º da Constituição da República Portuguesa e está em clara contradição com o Assento de 25 de Junho de 1987 e profícua jurisprudência dos tribunais superiores, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que declare que o direito de preferência dos AA. foi violado, por não falta de comunicação relativamente à A. mulher.

Termina pretendendo o provimento do recurso e, consequentemente, a revogação da sentença recorrida, substituindo-a por outra que declare que o direito de preferência dos AA foi violado, por falta de comunicação relativamente à A.

Não foram formuladas contra-alegações.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais cumpre decidir.

A questão a conhecer reverte unicamente em saber se a sentença está em oposição à citada jurisprudência uniformizada quando se considerou que mediante apenas a renúncia do A à compra e venda que ambos os autores pretendiam preferir não foi violado o seu direito de preferência.

Fundamentação

Na sentença assentou-se na seguinte matéria:

1. Por escritura pública datada de 19 de Abril de 2002 com a epígrafe “compra e venda”, elaborada no Cartório Notarial do Concelho da ..., onde compareceram, como primeiro outorgante, H - o qual outorga na qualidade de procurador de I, José e de Laudalina - e, como segundo outorgante, A, casado com B, o primeiro outorgante disse que, pela escritura, os seus representados vendem ao segundo outorgante, livre de ónus e encargos e pelo preço de 1 436,39€ (mil quatrocentos e trinta e seis Euros e trinta e nove cêntimos), quantia que declarou já ter recebido dos compradores, o prédio rústico de vinte e seis ares e quarenta centiares de terra de mata, sito no Boqueirão, freguesia do Rosário, concelho …, descrito na Conservatória do Registo Predial do mesmo concelho sob o n.º …, com registo de aquisição nela feito a favor dos seus representados, em comum e sem determinação de parte ou direito, pela inscrição G-dois, e inscrito na respectiva matriz cadastral sob o artigo 107.º da Secção H, com o valor patrimonial de 7,78 €; disse o segundo outorgante que aceitava a compra.

2. Por escritura pública de 11 de Setembro de 2003, com a epígrafe “compra e venda”, realizada no Cartório Notarial do Concelho da ... compareceram como primeiro outorgantes António e mulher, Maria, como segundo outorgante A, e como terceira outorgante Ana; disseram os primeiros outorgantes que, pelo preço de 1 000,00€ (mil Euros) que do segundo outorgante, seu filho, já receberam, lhe vendem, livre de ónus e encargos, o prédio rústico constituído por quarenta ares e oitenta centiares de terra, sito no …, freguesia do Rosário, concelho da …, descrito na Conservatória do Registo Predial do mesmo concelho sob o n.º 220, com o registo de aquisição feito a seu favor pela inscrição G-três, inscrito na respectiva matriz cadastral sob o artigo 108.º da secção H, com o valor patrimonial de 12,45€; mais declararam que não possuem quaisquer outros prédios rústicos. Declarou o segundo outorgante que aceitava o presente contrato nos termos expostos e que o prédio se destina a ser reunido ao prédio rústico contíguo, inscrito na respectiva matriz cadastral sob o artigo 107.º da Secção H, descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob o n.° 2782 da freguesia do Rosário, registado a seu favor através da inscrição G-3, formando um único prédio com a área total de 67,20 ares (sessenta e sete ares e vinte centiares). Disse a terceira outorgante que dá o seu consentimento aos primeiros outorgantes seus pais para que possam vender livremente a seu irmão.

Disseram os primeiros e segundo outorgantes que não celebraram qualquer contrato promessa de compra e venda, referente ao prédio vendido. As confrontações são: a Norte, com Leonildo .; a Sul e Nascente com E; a Poente com A.

3. Por escritura Pública celebrada no dia 23 de Outubro de 2007 no Cartório Notarial da ..., E e esposa, F, aqui segundos réus, declararam comprar a C e esposa, D, aqui primeiros réus, que declararam vender o prédio rústico constituído por 3,20 ares (três ares e vinte centiares) de terra, sito na Canada do …, freguesia do Rosário, concelho da …, descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º 3203 da freguesia do ..e inscrito na matriz cadastral rústica da respectiva freguesia sob o artigo 109.º da Secção H, pelo preço de 300,00€ (trezentos Euros).

4. A aquisição de E e esposa não foi objecto de registo predial a seu favor.

5. O réu E consta como titular do prédio inscrito na matriz cadastral rústica da respectiva freguesia sob o artigo 109.º, Secção H.

6. Encontra-se registada pela A.P. 2 de 2003/12/11, a favor de E e F a reserva de usufruto (após doação) do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º 1760/19940303 (Nossa Senhora do Rosário) inscrito na matriz sob o artigo 130.º, Secção H, o qual tem a área total de (ha) 0,484000.

7. Antes da escritura pública, o réu C abordou o autor dando-lhe conhecimento da compra e venda e perguntando-lhe sobre se queria comprar o prédio.

8. O autor declarou que não estava interessado na compra e que C vendesse ao réu E.

Posto isto.

Na questão a conhecer deve-se averiguar se a sentença opõem-se à jurisprudência uniformizada pelo assento de 25.06.1987 (DR, 1ª série, nº 234, de 10.10.1988), pelo qual “com a entrada em vigor da Constituição da Republica de 1976, e mesmo antes da modificação introduzida no artigo 1463 do Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei n. 368/77, de 3 de Setembro, a notificação para o exercício do direito de preferência deve ser feita a ambos os cônjuges, por aplicação do princípio da igualdade jurídica estabelecida no artigo 36, n. 3 da Constituição da Republica Portuguesa”.

No caso afirmativo, sendo esta a única causa para a discordância em discussão nesta instância é desde logo inamovível a decisão da 1ª instância na parte em que logo concluiu, não fora ao efeito que atribuiu à declaração do apelante ao falecido vendedor, antes da escritura do imóvel, de que não estava interessado na compra e que se vendesse ao recorrido Manuel, de que estavam, “pois, preenchidos os requisitos primários que conferem aos autores o direito de preferência na venda efectuada entre os réus.” e “Violado o seu direito, têm os mesmos a faculdade jurídica de haver para si o prédio alienado, conforme prescreve o artigo 1410.º, n.º 1, “ex vi” do artigo 1380.°, n.° 4, todos do Código Civil.”

Na sentença, a essa declaração foi atribuída incondicionalmente o efeito de renúncia ao exercício de direito de preferência tal como os recorrentes pretendiam exercer, o que quer dizer, portanto, foi julgada válida e eficaz tanto para o declarante como para a esposa, a recorrente. 

Recorde-se que os recorrentes, resulta das escrituras citadas de 19.04.2002 e de 11.09.2003, estão casados segundo o regime de comunhão de adquiridos, questão que se afigura consensual nos autos tal como será relativamente ao factos dos prédios que dão pretexto ao exercício de tal direito potestativo pertencerem ao património comum do casal (artº 1724º do CC).   

No referido assento discutia-se, com base no princípio da igualdade jurídica dos cônjuges, consagrado na citada norma constitucional (os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade civil e politica e à manutenção e educação dos filhos) se se impunha a comunicação, judicial (artº 1463º do CPC então em vigor, ora 1035º do NCPC) ou extrajudicial, prevista no artº 25º, nº 2, do DL 201/75, de 15.04, do projecto do negócio para o exercício do direito de preferência a ambos os cônjuges, sendo que ambos eram titulares do direito de preferência na compra do prédio rústico vendido por dele serem rendeiros.

Os assentos foram convertidos em acórdão de uniformização de jurisprudência atento ao disposto no 17º, nº 2, do DL 329-A/95, de 12.12, diploma que no seu artº 4º, nº 2 revogou o artº 2º do CC que consagrava essa figura.

Com estes parâmetros julgamos que efectivamente está verificada a citada oposição.

Sendo outra a causa para o exercício do direito de preferência que se discute do aresto do tribunal superior, seguindo a doutrina expendida por António Geraldes (Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3ª ed, 2010, 48, 49), como também são “irrelevantes eventuais divergências relativamente a questões de facto” e “não se mostra necessária a verificação de um identidade integral entre os objectos de cada um dos processos em que foi proferido o acórdão de uniformização e a decisão recorrida”, pode-se dizer que existe “oposição frontal” por verificar-se identidade entre a questão de direito discutida na sentença sobre a matéria em análise e a que foi objecto da uniformização jurisprudencial, a controvérsia incide em questão de direito essencial para o resultado numa e outra decisão e foram obtidas respostas diversas em cada um dos processos, mantendo-se o quadro normativo substancialmente idêntico.

Ora, face aos factos como assentes e uma vez que não se provou que à recorrente tenha sido efectuada a devida comunicação pelos vendedores do prédio nos termos do artº 416º, nº 1 aplicável ex vi artº 1380º, nº 4, ambos do CC, conclui-se mediante essa jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que aos recorrentes deve-se reconhecer o direito que por esta acção pretendem ver exercido, por não se encontrar extinto por renúncia.

E certo é que que competia aos recorridos alegar e demonstrar tal realidade ao abrigo do artº 342º, nº 2 do CC, não competindo, por isso, ao preferente a prova da falta dessa comunicação.

Nada impede o conhecimento desta questão nesta oportunidade já que é uma das perspectivas de direito pela qual a situação jurídica controvertida poderia ser analisada e mesmo que não expressamente invocada seria previsível que fosse suscitada, podendo a parte contrária sobre ela se pronunciar. De resto ela própria é objecto do recurso em que houve oportunidade de ser exercido o contraditório tal como este é legalmente prescrito.

E, diga-se, a conclusão a extrair a final é independente da noção que se possa ter sobre a forma como há-de ser cumprido o dever jurídico de comunicar o projecto de venda, designadamente com todos os seus essentialia negotii, na medida em que podendo ser extrajudicial vigora o princípio geral da liberdade de forma, ou seja, pode ser feita por qualquer meio idóneo, nomeadamente por simples declaração verbal ou de forma meramente tácita (artºs 219º do CC).

Assim como do que agora se possa dizer sobre a determinação do destinatário da comunicação, nos termos conjugados dos artºs 416 nº 1 e 769 nº 1 do CC, segundo a jurisprudência e doutrina citada pelos recorrentes.

Ainda sobre a validade da declaração unilateral do recorrente que se deu como provada, que poderia ser entendida como não admissível porque se está perante um direito que só por ambos os cônjuges poderia ser exercido e enquanto renúncia antecipada a um direito de preferência legal.

Visto ainda que os recorrentes cumpriram devidamente a obrigação de depósito do preço que vincula o preferente (artº 1410, nº 1, do CC), por todo o exposto será julgada procedente a apelação, revogada a sentença e condenados os recorridos no pedido formulado.

Decisão

Acordam os Juízes nesta Relação em julgar procedente o recurso, revogando-se a sentença recorrida e, consequentemente, julgam ainda procedentes os pedidos dos recorrentes, pelo que reconhece-se aos mesmos o direito de preferência na aquisição do imóvel objecto da compra e venda celebrada entre C e esposa, D como vendedores e E e esposa, F como compradores, por escritura de 23.10.2007 constante dos autos, adjudicando-se-lhes esse prédio, bem como a inscreverem no registo predial essa aquisição a seu favor, em substituição dos mesmos E e esposa, F.

Custas pelos recorridos.

*****

20.11.2014

Eduardo José Oliveira Azevedo

Olindo Santos Geraldes

Lucia Sousa