Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3521/2008-6
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: COMPRA E VENDA
ESCRITA COMERCIAL
FORÇA PROBATÓRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/15/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I. A escrita comercial, embora sem força probatória plena, constitui um princípio de prova, nos termos do disposto no art. 44.º do Código Comercial.
II. O princípio de prova desfaz-se, quando se demonstra, por qualquer meio, uma realidade contrária à da escrita comercial.
OG
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
M, S.P.A., com sede em Itália, instaurou em 11 de Março de 2005, na 2.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, contra N, Lda., acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que a Ré fosse condenada apagar-lhe a quantia de € 36 706,67, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, a partir da citação.
Para tanto, alegou em síntese, que, no exercício da sua actividade de fabrico, comercialização e venda de artigos de vestuário e acessórios, vendeu à R. diversos artigos, discriminados nas respectivas facturas, no valor total de € 63 384,70, da qual apenas foi liquidada a quantia de € 27 290,02, para além de ter tido ainda despesas bancárias, no valor de € 11,99.
Contestou a Ré, negando que a Autora lhe tivesse vendido os referidos artigos, tendo encomendado a mercadoria a Roupa (...), Lda., com a qual acordou a sua devolução parcial, pagando o resto, e concluindo pela improcedência da acção.
A A. apresentou ainda réplica, expressamente admitida no despacho saneador.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 23 de Outubro de 2007, sentença a julgar a acção improcedente, absolvendo-se a Ré do pedido.

Inconformada, recorreu a Autora, que, tendo alegado, formulou essencialmente as seguintes conclusões:
a) Na escrita comercial da Recorrida, no ano de 2003, consta a Recorrente como seu fornecedor.
b) Com lançamento das facturas da Recorrente n.º s 4942358, 4943824, 4944491 e 4944836 na conta de fornecedores da Recorrida n.º 22.1.2.06.
c) Encontrando-se somente paga, pela Recorrida à Recorrente, parte da primeira factura.
d) Não tendo a Recorrida logrado provar que o fornecimento/venda da mercadoria tenha sido efectuada por outra entidade.
e) Deverá ser considerado como de compra e venda o fornecimento da mercadoria efectuada pela Recorrente à Recorrida e titulada nas facturas junto à petição inicial.
f) Não podendo ser levada em conta a nota de crédito junto à contestação, porquanto os artigos em causa foram vendidos e facturados pela Recorrente à Recorrida.
g) Deve, assim, dar-se como resposta ao art. 2.º da petição inicial em conformidade, decidindo-se que a Recorrente vendeu à Recorrida os diversos artigos discriminados nas facturas.

Pretende, com o provimento do recurso, a revogação da decisão recorrida e a condenação da Ré no pedido.

Contra-alegou a Ré no sentido da improcedência do recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Neste recurso, para além da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, está em causa o direito de crédito proveniente de contrato de compra e venda comercial.

II. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Foram dados como provados os seguintes factos:
1. A A. dedica-se ao fabrico, comercialização e venda de artigos de vestuário e acessórios.
2. No âmbito do seu comércio, a A. enviou à Ré diversos artigos discriminados nas facturas: n.º 4942358, de 28-2-2003, no montante de € 43.118,20; n.º 4943824, de 17-3-2003, no montante de € 10.861,40; n.º 4944491, de 27-3-2003, no montante de € 5.304,50; n.º 4944836, de 31-3-2003, no montante de € 2.711,20; e n.º 4946725, de 14-4-2003, no montante de € 1.989,40; as quatro primeiras foram, em 30-6-2003, lançadas pela Ré na conta de fornecedores n.º 22.1.2.06 (M, SPA) (resposta ao artigo 2.º da petição inicial).
3. A Ré pagou, por conta da factura n.º 4942358, a quantia de € 27.290,02.
4. No exercício da sua actividade, a Ré encomendou a Roupa Lda., os artigos de vestuário e acessórios constantes das notas de encomendas, respectivamente, com as referências n.º s NE 220106, NE 220107, NE 220108, NE 220111, NE 220112, NE 220215 e NE 220216, todas de 7.8.2002.
5. Material relativamente ao qual a Ré acordou com a Roupa de Marca a devolução da mercadoria que consta das notas de devolução a que correspondem os avisos de lançamento n.º s 1354, 1355, 1357, 1358, 1361, 1362, 1363, 1364, 1365, 1366, 1368, 1369, 1370, 1371, 1376, 1378, 1379, 1380, 1385, 1389, 1472, 1473, 1474, 1475, 1476, 1477, 1478 e 1479, de 14-3-2003 a 26-3-2003.
6. Mercadoria que foi toda recepcionada pela Roupa (...).
7. As facturas em referência contêm a expressão “Marlboro Classics”, constante das notas de encomenda feitas a Roupa.
8. A Roupa (...) fora a importadora, para Portugal, das mercadorias da A. e, nessa qualidade, recebera a encomenda.
9. Em data incerta, a Roupa informou de que se encontrava em situação de ruptura comercial com a A., tendo sugerido a realização de uma reunião, na qual participassem uma representante da A., um representante da Roupa e os gerentes da Ré.
10. Reunião que se realizou em Portugal, no mês de Setembro de 2003, com a presença de Dª F, em representação da A., de C, em representação de Roupa, e dos gerentes da Ré.
11. Nessa reunião foi acordado que a Ré pagaria à A. a mercadoria não devolvida à Roupa.
12. A Ré pagou à A., através da FDI, a quantia de € 27.290,02.
13. O artigo com a referência LWN1380040419, da factura n.º 1 da A., foi encomendado pela Ré à Roupa, pela nota de encomenda n.º 220106, e devolvido através da nota de devolução n.º 1475, expedida pelo correio no dia 31.03.2003.
14. Estando titulada a devolução através da nota de crédito da Roupa, com a referência n.º NC 000148, de 03.04.2003.
(…)
15. A Roupa foi a importadora para Portugal das mercadorias comercializadas pela A.

2.2. Descrita a matéria de facto relevante dada como provada, desprovida de juízos conclusivos, interessa agora conhecer do objecto do recurso, definido pelas respectivas conclusões, e cujas questões emergentes foram antes postas em destaque.
A Apelante impugnou a resposta dada ao quesito 2.º da base instrutória, por não se ter dado como provada a compra e venda mercantil, alegada no artigo 2.º da petição inicial, fonte do quesito. Para o efeito, a Recorrente invocou o relatório pericial e a escrita comercial da Recorrida.
A decisão sobre a matéria de facto pode ser alterada nas circunstâncias especificadas no art. 712.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC).
Assim, importa reapreciar a prova produzida, nomeadamente aquela em que assentou a parte impugnada, de acordo com o disposto no art. 712.º, n.º 2, do CPC.
A fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, constante de fls. 549 e 550, feita em termos genéricos, entre outros meios probatórios, refere o relatório pericial de fls. 445.
A resposta dada ao quesito 2.º mostra-se, porém, em conformidade com o relatório da perícia feito por um único perito.
No mesmo relatório, contudo, nada se diz, nem podia dizer (por escapar ao objecto da prova pericial), quanto à compra e venda comercial, não sendo idóneo para justificar a alteração da resposta dada ao quesito pretendida pela Apelante.
A circunstância referida no relatório pericial e transposta para a decisão, nos termos da qual as quatro primeiras facturas estavam “lançadas na conta de fornecedores n.º 22.1.06 (M SPA) na data de 30.06.03”, com apelo declarado ao disposto no art. 44.º do Código Comercial, também não permite uma resposta diferente.
O art. 44.º do Código Comercial determina que os livros de escrituração comercial podem fazer prova entre comerciantes, sobre os factos do seu comércio.
Este artigo refere-se à força probatória da escrituração comercial quando invocada entre comerciantes por factos do seu comércio (VAZ SERRA, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 110, pág. 19, e J.G. PINTO COELHO, Lições de Direito Comercial, 2.ª edição, 1.º Volume, pág. 564 e 565).
Fernando Olavo esclarece que a escrita comercial não tem força probatória plena, mas, por efeito do disposto no art. 44.º do Código Comercial, traz vantagem na prova (Direito Comercial, I, 2.ª edição, pág. 366).
Sendo certo não ter a escrita comercial a força probatória plena, com as consequências daí resultantes, tem já efeito, como princípio de prova, que pode ser afastado por qualquer outro meio. Na verdade, tratando-se de escritos elaborados, exclusivamente, para documentação e memória do respectivo comerciante, podem os mesmos não corresponder à verdade, designadamente por ausência de certos cuidados, que se observam quando os escritos documentam actos com efeitos junto de terceiros (J. RODRIGUES BASTOS, Das Relações Jurídicas, V, pág. 195).
Neste contexto, tendo ficado provado que o fornecimento da mercadoria, à Apelada, foi feito por outra sociedade, nomeadamente a Roupa …, Lda., que a importou da Apelante, como também ficou demonstrado, o princípio de prova, emergente da escrita comercial da Apelada, desfez-se e, por isso, não podem retirar-se os efeitos pretendidos pela Apelante, nomeadamente quanto às quatro primeiras facturas, já que em relação à última factura, no valor de € 1 989,40, nem sequer existe o registo na conta de fornecedores.
Por outro lado, ao contrário do que a Apelante continua a sustentar, ficou também provado que a Roupa, Lda., foi apenas a importadora da mercadoria, tendo ficado por demonstrar que fosse agente comercial da Apelante, como esta alegara (resposta restritiva ao quesito retirado do artigo 3.º da réplica).
Assim, não obstante o envio, para a Apelada, da mercadoria discriminada nas facturas constantes dos autos, não é possível, com a prova produzida, concluir no sentido de que o contrato de compra e venda comercial teve, como sujeitos, por um lado, a Apelante e, por outro, a Apelada.
Carece, deste modo, de fundamento a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

2.3. A alteração do enquadramento jurídico dos factos, feito na sentença recorrida, estava dependente da modificação da decisão sobre a matéria de facto. Falhando esse pressuposto, nos termos demonstrados, também não pode proceder a impugnação do fundamento jurídico expresso na sentença.
Na verdade, a Apelante não logrou provar a existência do direito de crédito sobre a Apelada, emergente de contrato de compra e venda mercantil, sendo certo que lhe competia o respectivo ónus, de harmonia com o disposto no art. 342.º, n.º 1, do Código Civil.
Nestas condições, improcedendo o recurso, não há motivo para alterar a decisão recorrida, a qual não violou qualquer disposição legal.

2.4. Em conclusão, pode retirar-se de mais relevante:
I. A escrita comercial, embora sem força probatória plena, constitui um princípio de prova, nos termos do disposto no art. 44.º do Código Comercial.
II. O princípio de prova desfaz-se, quando se demonstra, por qualquer meio, uma realidade contrária à da escrita comercial.

2.5. A Apelante, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 446.º, n.º s 1 e 2, do CPC.

III. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
1) Negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
2) Condenar a Apelante (Autora) no pagamento das custas.
Lisboa, 15 de Maio de 2008
(Olindo dos Santos Geraldes)
(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)