Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
56/14.9T8PTS.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
AUTOMÓVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I. Condena em objeto diverso do pedido, assim incorrendo na nulidade prevista na alínea e) do art.º 668.º do CPC de 1961, o tribunal que, tendo o autor peticionado a condenação da seguradora na reparação in natura do edifício destruído pela colisão com a viatura, pesada de mercadorias, segurada na ré, condena esta no pagamento de uma quantia à autora, sem que tal mutação na prestação a fixar tivesse sido suscitada pelas partes.
II. O art.º 508.º n.º 1 do Código Civil, com a redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 190/85, de 24.6, em vigor à data do acidente dos autos – julho de 1996 - que estipula que a indemnização fundada em acidente de viação, quando não haja culpa do responsável, tem como limite máximo, no caso de danos causados em coisas, ainda que pertencentes a diferentes proprietários, o montante correspondente à alçada da relação, deve ser compatibilizado com o n.º 1 do art.º 6.º do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31.12, com a redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 3/96, de 25.01 que, em cumprimento das exigências do Direito Comunitário em relação ao seguro obrigatório da responsabilidade civil automóvel, desde 01.01.1996 fixara o capital mínimo obrigatoriamente seguro, independentemente do número de vítimas ou da natureza dos danos, em Esc. 120 000 000$00 por sinistro, ou seja, em € 598 557,47.
III. Havendo mais do que um lesado, se o valor dos danos sofridos por todos exceder aquele limite, o n.º 1 do art.º 16.º do Dec.-Lei n.º 522/85 estipula que “os direitos dos lesados (…) reduzir-se-ão proporcionalmente até à concorrência daquele montante.”
IV. Se a seguradora, de boa-fé, pagar a algum ou a alguns dos lesados mais do que lhe competiria à luz do rateio previsto no n.º 1 do citado art.º 16.º, não poderá ser obrigada a pagar aos outros lesados mais do que a parcela restante do capital seguro.
V. Se a seguradora ressarcir na íntegra determinados lesados e não alegar nem demonstrar que o fez por justificadamente desconhecer os direitos de outros lesados, estes terão direito a receber o valor correspondente ao rateio a que houver que proceder nos termos do n.º 1 do art.º 16.º do Dec.-Lei n.º 522/85, vigente à data do sinistro, ainda que assim a seguradora tenha de desembolsar quantia que exceda o limite legal supra referido.
VI. A mora do credor apresenta-se como matéria de exceção face à sua pretensão de cumprimento da obrigação, pelo que cabe ao devedor demonstrá-la (n.º 2 do art.º 342.º do Código Civil), ou seja, cabe ao devedor demonstrar que ofereceu ao credor a prestação que lhe era legalmente devida, e que este a recusou indevidamente ou não lhe deu a cooperação necessária à realização da prestação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 30.6.2000 António, sua mulher, Dolores e Joana, intentaram no Tribunal Judicial da Comarca da Ponta do Sol ação declarativa de condenação, com processo ordinário, contra Companhia de Seguros (…), S.A., requerendo igualmente a intervenção provocada de Maria.
Os AA. alegaram que, juntamente com a Chamada Maria, são comproprietários e compossuidores de um prédio urbano, constituído por um edifício com dois pisos, sito na freguesia da (…), ilha da Madeira. No dia 6 de julho de 1996 um veículo pesado de mercadorias despistou-se e embateu contra esse edifício, provocando-lhe sérios danos, que impossibilitam a sua utilização. A proprietária do aludido veículo havia transferido para a ora R. a respetiva responsabilidade civil automóvel.
Os AA. terminaram pedindo que, julgada a ação procedente por provada, fosse a R. condenada a:
a) Reparar o prédio identificado no art.º 1.º da petição inicial, nas exatas condições em que o mesmo se encontrava à data do acidente, nos termos referidos nos artigos 17.º a 29.º da petição;
b) Pagar aos AA. e à Chamada Interveniente a quantia mensal de Esc. 150 000$00, por cada mês de impossibilidade de ocupação do referido prédio, a contar da citação, quantia essa acrescida de juros à taxa legal, a contar da citação e até à conclusão da reparação, a título de indemnização pela dita não ocupação.
Foi admitido o chamamento da aludida interveniente que, citada, nada disse.
A R. seguradora contestou, impugnando, por desconhecimento, os danos alegados pelos AA. e afirmando que em julho de 1998 havia declarado aos AA. estar disposta a pagar o montante de Esc. 2 866 366$00, correspondente a orçamento elaborado por uma empresa para a reparação do edifício, proposta que já anteriormente efetuara em maio de 1997. Mais alegou ter pago a outros lesados pelo mesmo sinistro diversas indemnizações, que quantificou, que deveriam ser tidas em consideração na decisão a proferir na presente ação.
A R. terminou concluindo que a ação deveria ser julgada de harmonia com os factos já provados e aceites pela R. e os que se viessem a apurar e as disposições legais aplicáveis.
Os AA. apresentaram réplica que foi julgada não escrita em despacho saneador lavrado em 22.01.2002, que antecedeu imediato despacho de seleção da matéria de facto assente e de fixação da base instrutória.
Realizou-se perícia colegial.
A audiência de discussão e julgamento realizou-se nos dias 27.6.2012, 03.10.2012, 28.11.2012 e 21.12.2012, data em que foi proferida decisão de facto.
Em 27.02.2013 foi emitida sentença, que julgou a ação parcialmente procedente e consequentemente condenou a R. a pagar aos AA. e à Chamada a quantia de € 14 297,37, na proporção de 1/3 para os primeiros AA., 1/3 para a segunda A. e 1/3 para a Chamada, absolvendo-se a R. da restante parte do pedido.
Os AA. apelaram da sentença, tendo apresentado alegações em que formularam as seguintes conclusões:
A) A douta sentença recorrida é nula, porque condena em objecto diverso do pedido, como decorre do que preceitua a alínea e) do número 668.º do Código de Processo Civil, doravante apenas CPC.
B) O Tribunal a quo julgou incorrectamente os quesitos levados aos pontos 15.º e 16.º da douta base instrutória;
C) Impõe-se, assim, que tais concretos pontos de facto, as respostas aos quesitos 15.º e 16.º, sejam reformuladas de molde a que a resposta dada ao quesito 15.º esclareça que as obras ali aludidas não eram aquelas que os Autores reputavam necessárias a proceder às reparações dos danos padecidos pelo imóvel;
D) E, no que ao quesito 16.º concerne, de forma a que a resposta a este quesito mencione que os Autores sempre justificaram à Ré porque não aceitavam as propostas desta.
E) As respostas dadas aos quesitos 15.º e 16.º da douta base instrutória, devem, por isso, serem modificadas;
F) A sentença objecto do presente recurso, ademais, viola o preceituado no número 1 do artigo 12.º, 217.º, 218.º, 342.º, 508.º e 562.º do Código Civil e ainda o artigo 6.º do Decreto-lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-lei n.º 3/96, de 25 de Janeiro, em vigor à data dos factos;
Os apelantes terminaram pedindo que o recurso fosse julgado procedente e, consequentemente, a Ré condenada no pedido deduzido na petição inicial, tudo com as demais consequências legais.
A R. não contra-alegou, mas interpôs apelação subordinada, em que rematou com conclusões que, atenta a sua extensão e devido a sérias dificuldades evidenciadas na sua transcrição por meios informáticos, assim se sintetizam, quanto ao seu objeto:
a) Deve aditar-se, ao abrigo do art.º 662.º n.º 1 do CPC, a matéria de facto alegada no art.º 10.º da contestação;
b) A responsabilidade pelo acidente em causa nos autos emerge apenas do risco, pelo que está sujeita ao limite máximo de Esc. 2 000 000$00, correspondente a € 9 975,96;
c) Havendo que ratear a indemnização devida pelos diversos lesados;
d) Tendo-se apurado que a indemnização devida aos AA./recorridos era de € 14 297,37 e estando provado que a R. pagou a quatro outros lesados o total de € 23 258,87, era devida aos AA., em rateio, a quantia de € 3 797,77;
e) Os AA. pedem a reparação do prédio nos exatos termos descritos na petição inicial; ora, esses termos não se provaram, pelo que o pedido deve improceder;
f) A R. não procedeu à reparação do prédio por mora imputável aos AA., pelo que, atendendo ao agravamento da situação do prédio decorrente da mora, nenhuma obrigação impende sobre a R.;
g) A mora dos AA. é reconhecida na sentença recorrida, a qual, ao não absolver na íntegra a ora apelante, enferma de nulidade por contradição com os seus fundamentos – art.º 615.º n.º 1 alínea c) do CPC.
A apelante/R. terminou pedindo que a sentença proferida fosse revogada e substituída por acórdão que determinasse a total improcedência da ação.
Os AA. contra-alegaram, pugnando pela improcedência da apelação da R. e pela total procedência da ação, nos termos explanados na sua apelação.
A instância foi suspensa por óbito da A. Joana Mendes de Freitas.
Por sentença de 09.7.2015 Luís foi julgado habilitado a prosseguir os termos da causa no lugar da falecida A. Joana.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
Pela interligação do seu objeto, apreciar-se-á conjuntamente ambas as apelações.
As questões que estes recursos suscitam são as seguintes:
Nulidades da sentença; impugnação da matéria de facto; direito dos AA. e da Chamada.
Primeira questão (nulidades da sentença)
Apreciar-se-á primeiramente a nulidade invocada pelos AA. e, depois, a arguida pela R..
Nulidade invocada pelos apelantes/AA.:
Os AA. entendem que a sentença padece da nulidade prevista na alínea e) do art.º 668.º do CPC, na medida em que, tendo os AA. peticionado a condenação da R. na reconstituição natural do seu prédio, o tribunal condenou a R. no pagamento de uma indemnização.
Os preceitos de natureza adjetiva a ter aqui em consideração são os constantes do CPC de 1961, na medida em que a sentença ora impugnada foi proferida em fevereiro de 2013, data anterior à da entrada em vigor do CPC atual (aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho), pelo que, ressalvada menção expressa em contrário, as normas doravante referidas estarão contidas no anterior CPC.
É sabido que o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes (n.º 1 do art.º 3.º). Sendo que a causa se define pelos sujeitos, pela causa de pedir e pelo pedido (cfr. artigos 497.º e 498.º). Cabendo ao autor indicar, na petição inicial, o pedido (art.º 467.º n.º 1 alínea e)), que é, na formulação do art.º 498.º n.º 3, o efeito jurídico que se pretende obter. Citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, à causa de pedir e ao pedido, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei (art.º 268.º). Sendo que a modificação do pedido (assim como da causa de pedir), dependerá sempre da vontade do autor (artigos 272.º e 273.º). E a omissão do pedido, a sua ininteligibilidade, contradição com a causa de pedir ou incompatibilidade substantiva entre pedidos acarreta a nulidade insanável do processo, por ineptidão da petição inicial (art.º 193.º).
Destas regras deflui, como consequência expressa no art.º 661.º, que “a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir” (n.º 1). Constituindo causa de nulidade da sentença a condenação “em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido” (alínea e) do n.º 1 do art.º 668.º).
Revertamos ao caso dos autos.
Nesta ação os AA. formularam dois pedidos:
a) O de condenação da R. a “reparar o prédio identificado no artigo 1º deste petitório, nas exactas condições em que o mesmo se encontrava à data do acidente, nos termos em que é referido nos artigos 17º a 29º desta petição”;
b) O de condenação da R. no pagamento aos AA. e à Chamada interveniente da quantia mensal de Esc. 150$00, por cada mês de impossibilidade de ocupação do referido prédio.
Ou seja, o segundo pedido consiste na condenação da R. na prestação de uma obrigação pecuniária. O primeiro pedido consiste na condenação da R. numa prestação de facere, em termos que se mostram concretizados nos artigos 18.º a 29.º da petição inicial, onde se lê o seguinte:
18.º Pelo que os Autores reclamam da Ré a eliminação dos mencionados danos, exigindo que esta proceda à reconstrução do edifício identificado no artigo 1º deste articulado.
19.º Devendo para o efeito, no interior do aludido edifício, realizar a reparação das paredes interiores em ambos os pisos.
20.º Reparar os tectos falsos interiores do rés-do-chão e primeiro andar.
21.º Proceder à reposição integral do pavimento do piso superior, com madeira de soalho e refazer a respectiva estrutura de suporte, com barrotes e vigas de madeira.
22.º Reparar os vãos de todas as portas e janelas, com a colocação de novas forras em madeira, portas, portadas e janelas.
23.º Repor toda a instalação eléctrica do edifício.
24.º Bem como, toda a instalação de águas e esgotos.
25.º No exterior, realizar a reparação de todo o muro de periferia, com a utilização de elementos de pedra basáltica, e reparar toda a zona de calçada e acessos correspondentes ao espaço de logradouro do edifício.
26.º Repor o pórtico, com colunas metálicas e cobertura de madeira, e o portão também metálico, localizados ambos na entrada superior do edifício.
27.º Ao nível da cobertura, proceder à sua reparação com uma nova estrutura de vigas e barrotes em madeira, e posterior colocação de telha tipo luso sobre a mesma e, ainda, sobre o pórtico a que alude o artigo anterior.
28.º Proceder à reparação integral e reforço das paredes “mestras” do primeiro andar, bem como ao reforço das paredes “mestras” do rés-do-chão, incluindo a correcção das inclinações actualmente aí existentes.
29.º Utilizando para o efeito elementos de pedra basáltica, com iguais características às que anteriormente compunham as referidas paredes do edifício.”
Constando ainda no art.º 30.º da petição inicial, que porventura não terá sido indicado no petitório por mero lapso, o seguinte:
E procedendo ao reboco e pintura geral do edifício, no seu interior e exterior, e à respectiva limpeza do mesmo.”
Ou seja, os AA. indicam, de forma pormenorizada, o efeito jurídico pretendido, que é o da reparação in natura do edifício sinistrado, a operar pela R..
Em vez disso, o tribunal a quo condenou a R. numa obrigação pecuniária, ou seja, no pagamento aos AA. e à Chamada, da quantia de € 14 297,37, a dividir, em partes iguais, por cada um daqueles.
Ao assim decidir o tribunal a quo condenou em objeto diverso do pedido.
É verdade que, sendo embora a reconstituição natural a solução preferencial adotada pela lei para a reparação do dano emergente da responsabilidade civil (artigos 562.º e 566.º n.º 1 do Código Civil), a indemnização poderá ser fixada em dinheiro (n.º 1 do art.º 566.º). Tal ocorrerá se a reconstituição natural não for materialmente possível, não reparar integralmente os danos ou se for excessivamente onerosa para o devedor (n.º 1 do art.º 566.º do CC). Porém, tal mutação na prestação a fixar deverá ser suscitada pelas partes na ação, sob pena, como se disse, de violação do princípio do dispositivo, com o tribunal a substituir-se às partes, máxime ao autor, na definição do meio de satisfação dos seus interesses, impondo ao lesado e ao devedor uma prestação substitutiva cujo conteúdo, por não fazer parte do objeto da ação, não foi alvo de adequada discussão (vide, neste sentido, acórdão da Relação de Évora, de 03.4.2008, processo 2659/07-2, acessível em www.dgsi.pt).
Como se viu, no caso dos autos os AA. não procederam a qualquer quantificação do valor dos danos no que concerne à reparação do seu prédio, na medida em que apenas pretendiam que a R. fosse condenada a proceder à reparação in natura.
Perspetiva-se, pois, que o tribunal a quo, ao condenar a R., a título de indemnização pelos estragos causados no aludido prédio, no pagamento aos AA. e à Chamada de uma quantia pecuniária, cometeu a nulidade prevista na alínea e) do n.º 1 do art.º 668.º.
As consequências de tal nulidade poderão ser irrelevantes, se os apelantes/AA. lograrem, em sede de apelação, o reconhecimento do alegado direito à plena reparação natural do prédio, matéria que será apreciada adiante.
Nulidade invocada pela R./apelante:
Segundo a R./apelante, a mora dos AA. foi reconhecida na sentença recorrida, pelo que esta, ao não absolver na íntegra a ora apelante, enferma de nulidade por contradição com os seus fundamentos, nos termos do art.º 615.º n.º 1 alínea c) do CPC atual.
Conforme se expôs acima, a esta matéria é aplicável o CPC anterior.
Na alínea c) do art.º 668.º do CPC de 1961, correspondente à norma invocada do atual CPC, comina-se com nulidade a sentença em que “os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
Trata-se de casos em que a sentença, pelas razões de facto e de direito nela indicadas, aponta logicamente para um determinado desfecho ou conclusão, mas retira-se uma outra, que está em patente desarmonia com as premissas indicadas.
No caso dos autos, o tribunal entendeu que os AA., ao não terem aceitado a proposta de reparação que alegadamente lhes havia sido apresentada pela R. em julho de 1998, entraram em mora. Daí que a R. não seja responsável por nenhum dos danos emergentes da mora e nessa parte a R. tenha sido absolvida do pedido. Mas tal não obstava, dentro deste raciocínio, que a R. fosse condenada na indemnização dos danos existentes antes da entrada dos AA. em mora, que na sentença foram fixados no valor que a R. aceitara pagar aos AA. em 1998 (€ 14 297,37).
Não ocorre, pois, a apontada contradição ou nulidade.
Segunda questão (modificação da matéria de facto)
O tribunal a quo deu como provada a seguinte
Matéria de facto
Da matéria assente
1. Encontra-se inscrita, pela inscrição G-3, Ap. (…), a aquisição por usucapião de 1/3 para cada um, a favor de Joana (…), António (…)e mulher, Dolores (…), e Maria (…), do prédio urbano sito na Vila, composto por casa sobrada, com área coberta de 341,41 m2, que confronta a Norte com Caminho do Calvário, Sul e Leste com herdeiros de António (…) e Oeste com Manuel (…) e outro, inscrito na matriz predial sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial da (…) sob o nº (…) (cf. documento de fls. 15) – alínea A.
2. No dia 6 de Julho de 1996, pelas 17:00, no Sítio do Calvário, no local do prédio referido em A, ocorreu um acidente de viação – alínea B.
3. O acidente envolveu o veículo pesado de mercadorias com a matrícula PE-89-97 – alínea C.
4. O veículo referido em C era propriedade da sociedade Euro (…) SA – alínea D.
5. E era conduzido por José (…) – alínea E.
6. O veículo circulava na Estrada Regional 101, no sentido Funchal – Ribeira Brava – alínea F.
7. O PE foi embater no muro de suporte existente do lado direito da Estrada Regional 101, atento o seu sentido de marcha – alínea G.
8. O muro referido em G ficou destruído numa extensão de 6 metros – alínea H.
9. O referido em G ocorreu de repente e porque o PE se descontrolou devido a avaria no sistema de travões – alínea I.
10. Após ter transposto o muro o PE foi embater no prédio referido em A – alínea J.
11. A Euro (…) SA e a (…) Companhia de Seguros SA, por escrito consubstanciado na apólice nº (…), declararam que a segunda assumia a responsabilidade civil emergente de acidente de viação no que concerne aos danos causados a terceiro pelo veículo de matrícula PE-(…), mediante o pagamento de prémio anual por parte da primeira – alínea L.
Da base instrutória
12. Devido ao embate referido em J o prédio referido em A ficou com parte da parede norte do piso superior derrubada – resposta ao quesito 1.
13. A parede Nordeste ficou em parte derrubada e as paredes laterais Noroeste, Sudeste e Sudoeste, estão desaprumadas devido ao embate – resposta ao quesito 2.
14. A estrutura dos tectos dos pisos superior e inferior do prédio referido em A era composta por ripado de madeira coberto a gesso – resposta ao quesito 3.
15. A estrutura referida na resposta ao quesito anterior ficou em parte derrubada – resposta ao quesito 4.
16. As partes da estrutura que subsistem revelam apodrecimento na parte em que a cobertura foi danificada – resposta ao quesito 5.
17. O referido em 5 deve-se ao rombo provocado na cobertura do prédio – resposta ao quesito 6.
18. O pavimento do piso superior está deformado devido ao derrube da parede e do tecto do prédio – resposta ao quesito 7.
19. O veículo PE-(…) caiu sobre o muro da entrada e o pórtico de acesso ao piso superior do prédio – resposta ao quesito 8.
20. Derrubando-os – resposta ao quesito 9.
21. Devido à deformação das paredes, ao nível do piso superior, as portas e janelas não abrem nem fecham – resposta ao quesito 10.
22. Devido ao referido nas respostas aos quesitos anteriores, os autores, a seguir ao embate, não podiam usar o prédio na parte danificada, e actualmente não podem utilizá-lo na totalidade devido ao agravamento da situação pelo decurso do tempo – resposta ao quesito 11.
23. O prédio referido em A tinha um valor locativo de 150 000$00 por mês no ano do acidente.
24. Em Janeiro de 1997 foi efectuado pela MM (…) & (…) Lda., um orçamento para reparação do prédio referido em A no montante de 2 449 886$00 acrescido de IVA – resposta ao quesito 13.
25. Em Julho de 1998 a ré escreveu aos autores informando que se encontrava disposta a indemnizá-los pelo valor do orçamento efectuado pela MM (…) & (…) Lda., no total de 2 866 366$00 – resposta ao quesito 14.
26. A comunicação referida no quesito 14 foi precedida de conversações entre a autora e um funcionário da ré, com vista a obter as necessárias aceitação e autorização dos autores para a realização das obras – resposta ao quesito 15.
27. Os autores não responderam à proposta referida no quesito 14 – resposta ao quesito 16.
28. A empresa MM (…) & (…) Lda. dispunha de condições técnicas e de situação económica para efectuar a obra em questão – resposta ao quesito 17.
O Direito
Tendo a presente ação sido instaurada em 2000, ou seja, antes das alterações introduzidas ao CPC de 1961 pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24.8., e sido a sentença recorrida proferida em fevereiro de 2013, data anterior à da entrada em vigor do CPC atual, a modificabilidade da decisão de facto pela Relação está regulada no art.º 712.º do Código de Processo Civil de 1961, na redação anterior à introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24.8., diploma que não é aplicável a estes autos – art.º 11.º n.º 1 do Dec.-Lei n.º 303/2007 e art.º 7.º n.º 1 da Lei n.º 41/2013, a contrario.
Nos termos desse artigo, a Relação pode alterar a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
Nos termos do art.º 690.º-A do Código de Processo Civil, quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
No seu recurso os apelantes/AA. impugnaram a resposta dada à matéria de facto levada aos quesitos 15.º e 16.º da base instrutória, que corresponde aos n.ºs 26 e 27 da matéria de facto.
Tem interesse, para melhor compreensão, a transcrição da resposta dada ao quesito 14.º (que não foi impugnada):
Em Julho de 1998 a ré escreveu aos autores informando que se encontrava disposta a indemnizá-los pelo valor do orçamento efectuado pela MM (…) & (…) Lda., no total de 2 866 366$00”.
Na resposta aos quesitos 15.º e 16.º foi dado como provado o seguinte:
15.º - “A comunicação referida no quesito 14 foi precedida de conversações entre a autora e um funcionário da ré, com vista a obter as necessárias aceitação e autorização dos autores para a realização das obras.”
16.º - “Os autores não responderam à proposta referida no quesito 14.”
Os AA. entendem que não se pode dar como provado que os autores não responderam à proposta referida no quesito 14, antes se devendo dar como provado que os AA. deram a saber à R. que as obras aludidas no quesito 15 não eram aquelas que reputavam necessárias para proceder às reparações dos danos padecidos pelo imóvel.
Para esse efeito os apelantes invocam o depoimento da testemunha Luís (…).
O tribunal a quo, para além do depoimento dessa testemunha, indicou, como fundamento da resposta aos quesitos ora questionados, o depoimento das testemunhas Feliciano e Luís Miguel.
A testemunha primeiramente ouvida, Feliciano, à data dos factos prestava serviços de peritagem de seguros para a R. e declarou que aquando do sinistro pediu a um engenheiro civil da sua confiança que avaliasse o custo de reparação dos danos sofridos pelo edifício, tendo este orçamentado a reparação em dois milhões e quatrocentos mil escudos. Porém o proprietário do edifício apresentou orçamentos efetuados por duas outras empresas, um no valor de quatro milhões e tal escudos, quase cinco milhões, e outro no valor de catorze milhões, montantes que a testemunha na altura não aceitou porque no seu entender estavam extraordinariamente inflacionados face aos trabalhos que era para serem executados. A seguradora aceitava adjudicar a obra pelo valor indicado pela testemunha, mas o proprietário recusava, por reputar o valor de insuficiente, fazendo fé nos orçamentos que apresentara. A testemunha acrescentou ainda que na altura corria o rumor de que o proprietário não estava interessado na rápida recuperação do edifício, porque queria livrar-se dos inquilinos que lá tinha.
A testemunha Luís Miguel, profissional de seguros da R., declarou que em janeiro de 1997 começaram a surgir orçamentos para a reparação do edifício, tendo o perito avaliador, Sr. Drummond, informado a companhia de quanto era o orçamento, e dado nota também de outros orçamentos, apresentados pelo proprietário, que o perito indicava estarem inflacionadíssimos: um era no valor de Esc 4 886 000$00 e outro era de € 14 000 000$00. Como as negociações não davam em nada, a testemunha, que estava sediada em Lisboa, deslocou-se à Ribeira Brava, tendo marcado uma reunião com o proprietário, Sr. António (…), em maio de 1998. Quem foi à reunião foi a esposa do Sr. António (…), que na altura estaria no continente, reunião essa que foi inconclusiva. Então a companhia enviou ao Sr. António (…) uma informação a dizer que se encontrava à sua disposição o valor do orçamento que tinha sido aprovado. Não tiveram qualquer resposta nem contraproposta. A obra não foi executada porque não foi dada autorização para ela. Segundo a testemunha, constava que os proprietários queriam o edifício para outros fins e por isso não queriam fazer a obra.
Também foi ouvido, como testemunha, Luís (…), filho dos primeiros AA. e posteriormente habilitado a prosseguir a ação no lugar da falecida A. Joana. Esta testemunha disse que os proprietários não queriam que a seguradora lhes desse dinheiro, mas sim que o prédio fosse reconstruído, ficando em condições de segurança. O orçamento que a companhia apresentou, no valor de 2600 ou 2800 contos era um arranjo “cosmético”, um arranjo meramente parcial. Por iniciativa dos AA. foi lá uma empresa que orçamentou em quatro mil contos e uma outra construtora apresentou também outro orçamento, de valor superior.
Ponderados os depoimentos ouvidos, que se nos afigura não suscitarem dúvidas quanto à sua seriedade, fica a convicção de que, independentemente de não ter havido uma resposta formal ao escrito referido no quesito 14.º, os AA. já tinham dado a conhecer à R. que não aceitavam a dita proposta, por considerarem que a mesma ficava aquém do que era necessário para a reparação dos danos sofridos pelo edifício. Ora, tal não fica patente na matéria de facto constante da resposta aos quesitos 15.º e 16.º.
Deverá, assim, alterar-se a resposta dada ao quesito 15.º, correspondente ao n.º 26 da matéria de facto, dando-se como provado o seguinte:
26. “A comunicação referida no quesito 14 foi precedida de contactos entre o A. e a R., a quem o A. deu a conhecer que entendia que o orçamento referido na resposta ao quesito 14 era insuficiente para a completa reparação do prédio sinistrado.”
No seu recurso subordinado, também a R./apelante pretende modificar a matéria de facto, aditando-lhe o teor do art.º 10.º da contestação. Trata-se da alegação do pagamento, pela R., de indemnizações a outros lesados atinentes ao mesmo sinistro, que teria relevância atento o disposto no art.º 508.º do Código Civil. Tal matéria (que a A. havia impugnado na réplica que veio a ser rejeitada no despacho saneador) não foi levada à base instrutória, o que suscitou reclamação por parte da R., que foi indeferida. Tal decisão apenas é suscetível de impugnação no recurso da decisão final (n.º 3 do art.º 511.º), o que a R. ora concretizou na sua apelação. Além disso a apelante pretende que tais factos sejam dados como provados, ao abrigo do art.º 662.º n.º 1 do CPC, por a sua prova resultar dos autos.
Vejamos.
Nos termos do art.º 511.º n.º 1 do CPC (de 1961), “o juiz, ao fixar a base instrutória, seleciona a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, que deva considerar-se controvertida.”
Ora, atendendo aos limites impostos pelo art.º 508.º do Código Civil quanto à responsabilidade pelo risco, o alegado pela seguradora no que concerne aos danos sofridos por outros lesados tinha relevo, pelo que deveria ter sido levado à base instrutória. Por outro lado, sendo certo que os AA. impugnaram, por desconhecerem a letra e assinatura, os documentos de quitação juntos pela R. com a contestação (documentos 4 a 12), tais pagamentos foram confirmados no decurso da audiência de julgamento pelas testemunhas Feliciano e Luís Miguel, já supra identificadas. Está, assim, esta Relação em condições de ampliar nesta parte a matéria de facto, sem necessidade de anular a decisão recorrida (cfr. n.º 4 do art.º 712.º do CPC).
Daí que nesta parte defere-se à pretensão da apelante R. e determina-se que seja aditada à matéria de facto o seguinte n.º 29:
Em virtude do sinistro supra referido, outras entidades sofreram danos, tendo a R. pago as seguintes quantias:
a) € 18 203,86 à Banda Musical da Ribeira Brava, para substituição de instrumentos musicais danificados;
b) € 117,32 à Direcção Regional de Estradas, para reparação de danos num muro de guarda da E.R. n.º 229;
c) € 1 652,93 à Delegação Escolar da Ribeira Brava, para reparação e substituição de equipamentos – fotocopiadoras e respetivos consumíveis;
d) € 3 284,76 à EEM – Electricidade da Madeira, S.A., por estragos em equipamentos resultantes da queda de um poste de betão.”
Terceira questão (direito dos AA. e da Chamada)
Está provado que em 06 de julho de 1996 um veículo pesado de mercadorias, quando circulava numa estrada no concelho de Ribeira Brava, sofreu uma avaria nos travões, tendo por isso o respetivo condutor perdido o controlo do veículo, que após embater num muro veio a precipitar-se contra o prédio dos AA. e da Chamada, causando-lhe os avultados danos supra descritos. A perigosidade da circulação automóvel, a frequência e a gravidade dos danos que a mesma provoca, determinou que, contrariamente à regra geral (art.º 483.º do Código Civil) a lei preveja a ressarcibilidade de tais danos ainda que os mesmos não sejam imputáveis a título de culpa de outrem. Tal responsabilidade, decorrente do mero risco subjacente à utilização de veículos automóveis, é assacada àquele que, no dizer da lei “tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário” (n.º 1 do art.º 503.º do Código Civil).
Em princípio, o responsável por acidente rodoviário causado por um automóvel é o seu proprietário. No caso dos autos, a responsável era a sociedade Euro (…) S.A., a quem pertencia o referido veículo pesado (n.º 4 da matéria de facto). Tal sociedade havia transferido a sua responsabilidade civil decorrente do veículo para a ora R. (n.º 11 da matéria de facto).
A circunstância de os danos decorrerem de um acontecimento não culposo determina que sejam impostos limites ao valor máximo da indemnização a ser suportada pelo responsável.
À data do acidente destes autos o art.º 508.º n.º 1 do Código Civil estipulava (redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 190/85, de 24.6) que a indemnização fundada em acidente de viação, quando não houvesse culpa do responsável, teria como limite máximo, no caso de danos causados em coisas, ainda que pertencentes a diferentes proprietários, o montante correspondente à alçada da relação.
Daqui inferiu o tribunal a quo que, in casu, o limite da indemnização seria de € 30 000,00, que corresponderia à alçada da Relação à data do acidente.
Tal conclusão, porém, é incorreta, pois ignora a necessidade de compatibilizar o aludido preceito com aqueloutro que, em cumprimento das exigências do Direito Comunitário em relação ao seguro obrigatório da responsabilidade civil automóvel, desde 01.01.1996 fixara o capital mínimo obrigatoriamente seguro, independentemente do número de vítimas ou da natureza dos danos, em Esc. 120 000 000$00 por sinistro, ou seja, em € 598 557,47 (n.º 1 do art.º 6.º do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31.12, com a redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 3/96, de 25,01). Compatibilização essa que o STJ, por meio de acórdão de uniformização de jurisprudência, datado de 25.3.2004, publicado sob o n.º 3/2004, no D.R., I série-A, de 13.5.2004, formulara pela seguinte forma: “o segmento do artigo 508.º, n.º 1, do Código Civil, em que se fixam os limites máximos da indemnização a pagar aos lesados em acidentes de viação causados por veículos sujeitos ao regime do seguro obrigatório automóvel, nos casos em que não haja culpa do responsável, foi tacitamente revogado pelo artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 3/96, de 25 de Janeiro.” De resto, o legislador veio a dissipar eventuais dúvidas através do Dec.-Lei n.º 59/2004, de 19.3, que alterou a redação do art.º 508.º do Código Civil, estipulando que “a indemnização fundada em acidente de viação, quando não haja culpa do responsável, tem como limite máximo o capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel” (n.º 1 do artigo).
Assim, no caso dos autos, o limite a ter em consideração na fixação da indemnização devida pela seguradora é de € 598 557,47.
Havendo mais do que um lesado, se o valor dos danos sofridos por todos exceder aquele limite, o n.º 1 do art.º 16.º do Dec.-Lei n.º 522/85 estipula que “os direitos dos lesados (…) reduzir-se-ão proporcionalmente até à concorrência daquele montante.”
O que sucederá, se a seguradora pagar a algum ou a alguns dos lesados mais do que lhe competiria à luz do rateio previsto no n.º 1 do art.º 16.º citado?
O n.º 2 do art.º 16.º estabelece o seguinte: “A seguradora ou o Fundo de Garantia Automóvel, que, de boa-fé e por desconhecimento da existência de outras pretensões, liquidar a um lesado uma indemnização de valor superior à que lhe competiria nos termos do número anterior não fica obrigada para com os outros lesados senão até à concorrência da parte restante do capital seguro”.
Assim, a seguradora que, na ignorância, não censurável, da existência de outros lesados, tenha pago a uma ou mais vítimas de um sinistro automóvel valores indemnizatórios que esgotam ou quase esgotam o limite máximo da responsabilidade pelo risco a que estiver adstrita, não poderá ser obrigada a pagar aos outros lesados mais do que a parcela restante do capital seguro.
Está provado que, tal como a seguradora alegou, esta pagou valores indemnizatórios a outros lesados, na íntegra, ou seja, sem cuidar da eventual necessidade de acautelar o interesse de outros lesados, sujeitando os pagamentos a rateio. Ora, a R. não alegou nem demonstrou que desconhecia a ocorrência de danos no prédio dos AA., ou seja, que ignorava a possibilidade de existirem outras entidades com direito a serem ressarcidas, em igualdade de posição com as entidades a quem pagou indemnizações. Assim, se porventura se verificar que o montante indemnizatório devido aos AA., conjugado com o que a R. pagou aos restantes lesados, excede o valor de € 598 557,47, deverá calcular-se o montante correspondente ao rateio previsto no n.º 1 do art.º 16.º do Dec.-Lei 522/85, tendo os AA. e a Chamada direito a receber o valor correspondente, ainda que assim a R. tenha de desembolsar quantia que exceda o limite legal supra referido (cfr., sobre esta matéria e neste sentido, acórdão do STJ, de 08.10.2015, processo 360/12.0T2AND.C1.S2, in www.dgsi.pt).
Feitas estas considerações, passemos a determinar o direito dos AA. e da Chamada.
Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação” - art.º 562.º do Código Civil.
O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão” - n.º 1 do art.º 564.º do CC.
Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis” – n.º 2 do art.º 564.º do CC.
A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor” – n.º 1 do art.º 566.º do CC.
Sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos” – n.º 2 do art.º 566.º do CC.
Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados” – n.º 3 do art.º 566.º do CC.
Conforme já se referiu supra, a respeito da primeira questão (nulidade da sentença recorrida), o legislador privilegia, como forma de cumprimento da obrigação de indemnização, a reparação natural, ou seja, a prática dos atos destinados a restaurar ou reconstituir a situação material que existia antes do sinistro, ou que existiria se o sinistro não tivesse ocorrido.
No caso dos autos, em que o veículo automóvel segurado na R. colidiu com o prédio dos AA. e da Chamada, causando a sua destruição parcial e impossibilitando a sua utilização, a reconstituição natural consiste na realização dos trabalhos e obras necessários a repor o edifício, tanto quanto possível, no estado em que se encontrava antes da colisão, sendo certo que nada foi alegado no sentido de que o mesmo sofria de qualquer deficiência ou limitação à sua utilização antes do acidente. Por outro lado, ficou provado que os AA. e a Chamada ficaram impossibilitados, em virtude dos danos sofridos pelo edifício, de o utilizar e explorar (n.ºs 22 e 23 da matéria de facto), sofrendo assim de indevidas limitações ao exercício das faculdades que preenchem o conteúdo do direito de propriedade (art.º 1305.º do Código Civil), ainda que compartilhado em termos de compropriedade (artigos 1403.º e 1405.º do Código Civil). Uma vez que a reparação natural da impossibilidade de utilização do prédio é materialmente impossível, os AA. têm direito a um equivalente pecuniário, que contabilizaram de acordo com o valor locativo do prédio, que se provou que à data do sinistro era de Esc. 150 000$00 por mês, ou seja, € 748,19 (n.º 23 da matéria de facto).
Na sentença recorrida negou-se aos AA. a peticionada indemnização pela privação da utilização da coisa, por se entender que os AA. haviam recusado indevidamente a reparação do imóvel que lhes fora oferecida pela R., tendo por isso entrado em mora, nos termos do art.º 813.º do Código Civil.
Vejamos.
Nos termos do art.º 813.º do Código Civil, “o credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação.”
Na sentença recorrida entendeu-se que cabia aos AA. provar que a reparação dos danos era de valor superior ao montante da proposta oferecida pela ré em 1998. Não o tendo feito, incorreram em mora.
Discordamos de tal entendimento.
A mora do credor apresenta-se como matéria de exceção face à sua pretensão, pelo que cabe ao devedor demonstrá-la (n.º 2 do art.º 342.º do Código Civil).
Ou seja, cabia ao devedor demonstrar que oferecera ao credor a prestação que lhe era legalmente devida, e que este a recusara indevidamente, ou não lhe dera a cooperação necessária à realização da prestação.
Ora, o factualismo provado não permite dar por preenchida a mora dos credores. Por um lado, a proposta dada como provada sob o n.º 25 da matéria de facto não aponta para a reparação natural do prédio, a ser efetuada pela R. ou por alguém a seu cargo, mas tão só constitui uma oferta de pagamento de uma quantia pecuniária, sem que se mostrem preenchidos os pressupostos, já supra mencionados, de substituição da restauração natural por uma obrigação pecuniária. Por outro lado, cabia à R. demonstrar que a quantia oferecida era suficiente para o pagamento dos trabalhos necessários à integral reparação do prédio – o que não se mostra feito, sendo certo que a R. soube, atempadamente, que os AA. não concordavam com a proposta que lhes fora feita, por a reputarem de insuficiente para a integral reparação do edifício (n.º 26 da matéria de facto, com a alteração introduzida neste acórdão).
Assim, não se acompanha o tribunal a quo quando dá como provado que os AA. entraram em mora, devendo por isso a R. ser isentada dos encargos decorrentes da demora na prestação da indemnização.
Em suma: os AA. e a Chamada têm direito à reparação, pela R., dos danos padecidos pelo seu prédio em virtude da colisão sofrida, neles se incluindo os que decorreram da mora na realização da prestação devida, reparação essa in natura.
Mais têm os AA. e a Chamada direito, a título de lucros cessantes, ao pagamento da quantia de € 748,19, por cada mês decorrido desde a data da citação (ocorrida em 09.10.2000) – conforme foi peticionado -, até à reparação do prédio, acrescida de juros de mora, à taxa legal sucessivamente vigente, desde o final de cada mês, até integral pagamento.
O valor total da indemnização, incluindo o da reparação do edifício (não tendo qualquer base legal a pretensão dos AA./apelantes de que a reparação indemnizatória in natura não está sujeita ao limite previsto no art.º 508.º do Código Civil), está sujeito ao limite de € 598 557,47, devendo, no caso de a indemnização devida aos AA. e à Chamada, somada às indemnizações referidas no n.º 29 da matéria de facto, exceder o referido limite, proceder-se ao cálculo do que corresponde aos AA. e à Chamada, uma vez efetuado o rateio entre todas as indemnizações, nos termos do n.º 1 do art.º 16.º do Dec.-Lei 522/85.
Cabe ainda notar que não se vê que exista entre os danos no prédio alegados pelos AA. e os que se provaram diferença relevante, de molde a obstar à condenação da R. na reparação dos danos provados – pelo que improcede o obstáculo à procedência da ação invocado pela apelante R. e supra elencado sob a alínea e).
Assim, a apelação dos AA. é procedente e a apelação da R. é improcedente.
DECISÃO
Pelo exposto:
1.º Julga-se a apelação dos AA. procedente e consequentemente revoga-se a sentença recorrida e em sua substituição julga-se a ação provada e procedente e consequentemente:
a) Condena-se a R. a reparar o prédio identificado no n.º 1 da matéria de facto, colocando-o nas condições em que se encontrava imediatamente antes do acidente objeto destes autos, procedendo assim à eliminação e reparação dos danos descritos nos números 12 a 21 da matéria de facto;
b) Condena-se a R. a pagar aos AA. e à Chamada a quantia de € 748,19 (setecentos e quarenta e oito euros e dezanove cêntimos) por cada mês de calendário decorrido desde 09.10.2000, até que cesse, pela integral reparação do edifício, a impossibilidade da sua utilização;
c) Condena-se a R. a pagar aos AA. e à Chamada, sobre cada uma das quantias mensais referidas em b), juros de mora, à taxa legal sucessivamente vigente, vencidos e vincendos, desde o final do mês respetivo, até integral pagamento;
d) Declara-se que o valor total das prestações indemnizatórias referidas em a) e b) está sujeito ao limite de € 598 557,47 (quinhentos e noventa e oito mil quinhentos e cinquenta e sete euros e quarenta e sete cêntimos), isto é, no caso de a indemnização devida aos AA. e à Chamada, somada às indemnizações referidas no n.º 29 da matéria de facto, exceder o referido limite, deverá proceder-se ao cálculo do que corresponde aos AA. e à Chamada nos termos do rateio previsto no n.º 1 do art.º 16.º do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31.12, cingindo-se a responsabilidade da R. para com os AA. e à Chamada ao resultado desse cálculo;
2.º Julga-se a apelação da R. improcedente.
As custas da ação e das duas apelações são a cargo da R., que em todas decaiu.
Lisboa, 14.01.2015

Jorge Leal

Ondina Carmo Alves

Olindo dos Santos Geraldes