Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1797/03.1TCSNT.L1-8
Relator: MARIA ALEXANDRINA BRANQUINHO
Descritores: PENHORA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: -O conflito entre credor e executado, respondendo este na qualidade de fiador do devedor, tem de ser dirimido com observância do princípio constitucional da proporcionalidade que, de facto, se revê num controlo «razoabilidade - coerência; razoabilidade - adequação; proporcionalidade - necessidade».
-Sabendo-se que da venda do bem penhorado pertencente ao fiador não resultará a satisfação do crédito, o prosseguimento da execução não é coerente, não é razoável, não é adequado, pelo que se justifica o levantamento da penhora.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


I-Relatório:


O Banco A vem interpor recurso de decisão da 1.ª instância proferida no processo de execução que instaurou contra B e C.

Eis o teor da decisão recorrida: «Compulsados os autos, e no seguimento da solicitação para agendar a venda do imóvel penhorado efectuada pelo AE, torna-se necessário apreciar a admissibilidade da penhora realizada nos autos em virtude da proporcionalidade e adequação da mesma.

Vejamos.

Nos presentes autos de execução que A, intentou contra B e C, com vista à cobrança coerciva da quantia de €87.857,70, emergente do incumprimento do contrato de mútuo com hipoteca em que os executados figuram respectivamente como mutuário e fiador, foi vendido o imóvel penhorado nos autos, pertencente ao executado B, sobre o qual havia sido constituída hipoteca a favor do exequente para garantia do cumprimento do aludido contrato de mútuo.

Excutido o bem onerado com a garantia real, a execução prosseguiu com a penhora de, para além do mais, do imóvel, melhor identificado no auto de penhora junto aos autos, pertencente ao executado C.

Sobre tal fracção recai hipoteca constituída a favor do Banco D  que, por força/efeito da penhora realizada nestes autos, reclamou os créditos emergentes do contrato de mútuo associado a tal imóvel, sendo que tal mútuo tem vindo a ser pontualmente cumprido.

O crédito reclamado e não impugnado ascende a €87.857,70, sendo que o valor patrimonial/tributário do imóvel que o garante é de €31.779,30, sendo o valor base mínimo de venda de €55,250,00 (85% do valor base-€65.000,00).

A penhora de bens, móveis ou imóveis, tem uma natureza processual de apreensão e garantia de pagamento preferencial do crédito exequendo sobre outros bens não objecto de tal preferência que, no caso de bens sujeitos a registo, será a que decorre da anterioridade registal.

Quer isto dizer, por outro lado, que a penhora e respectiva medida deve ser concretizada (e, como se faz agora, avaliada), com referência ao valor do crédito exequendo e da expectativa de valor de alienação do bem penhorado em processo executivo.

Os princípios da adequação e proporcionalidade impõem que exista, em regra, relação entre tais valores.

Pode admitir-se, excepcionalmente, uma penhora desproporcional no seu valor se se concluir que a penhora daquele bem, eventualmente pagos credores preferentes, permite obter, num juízo de razoável expectativa, será a única forma de obter um diferencial positivo que permita a satisfação do crédito exequendo.
Quer isto dizer, num exemplo explicativo extremo, que não se pode considerar ilícita, sem mais, a penhora de um bem de €1.000.000 de valor para satisfação de um crédito de €1.000. Os aludidos princípios, por regra, afastá-la-ão. Poderá, todavia, admitir-se tal penhora, não porque existam créditos preferentes cujo valor seja igual ao superior ao do bem, mas porque se conclua que inexiste qualquer outro bem ou direito penhorável e existe uma expectativa, razoavelmente fundada em dados objectivos, que permita estabelecer a conclusão que a alienação de tal bem se constitui como a única forma de apresentar produto afectável à satisfação do crédito exequendo.

Deve ser este o critério de análise, é manifesto que não basta para aferição da proporcionalidade e adequação meramente referir, que existem créditos preferentes porque beneficiam de garantia hipotecária.

Há que estabelecer, como se referiu com base em juízos de probabilidade razoável, que após satisfação do crédito hipotecário alguma quantia será entregue para pagamento do crédito exequendo.

Assim não sendo, a penhora dos autos é inútil e não constitui nenhuma garantia de pagamento do crédito exequendo, o que a tornará desadequada e desproporcional.

No caso concreto, verificamos que a quantia exequenda é elevada, sobre o imóvel indicado à penhora recai hipoteca legal registada (Ap. 1944 e 1945 de 2010.12.22) a favor do Banco D., a qual já reclamou créditos no montante de € 87.857,70 acrescidos de juros.
Dispõe o artigo 735º, nº1 do CPC, que estão sujeitos à execução todos os bens do devedor susceptíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondam pela dívida exequenda.

Igualmente o fiador, nos termos do artigo 627º, nº1 do CC, garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor.

A penhora de bens orienta-se por um princípio de proporcionalidade, e de acordo com a proporcionalidade, devem ser penhorados apenas os bens suficientes para satisfazer a prestação exequenda.

Ora, considerando, a situação conhecida de crise do mercado imobiliário, o valor reduzido dos imóveis aquando das vendas judiciais, o valor mínimo de venda do imóvel €55,250,00 (85% do valor base) - manifestamente inferior ao montante reclamado pelo credor hipotecário, in casu, somos de concluir que, com base em juízos de probabilidade razoável, que após satisfação do crédito hipotecário nenhuma quantia será entregue para pagamento do crédito exequendo, aliás, o mais provável é que o valor da venda do imóvel ora penhorado não chegue sequer para liquidar o valor do crédito hipotecário - neste sentido decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão proferido nos autos nº 21410/09.2T2SNT, que corre termos no Juizo 2.º , desta secção.
Assim, a penhora realizada só seria adequada se fosse de molde a satisfazer o interesse do credor, contudo, atento o supra referido, a mesma nada resolverá, já que a penhora do imóvel e consequente venda judicial, não permite que o credor - aqui exequente - possa obter qualquer vantagem patrimonial, atenta a prevalência do credor hipotecário.

Por outro lado, a desvantagem para o devedor seria excessiva.

Assim, de acordo com o princípio de adequação formal, somos de concluir, que é manifesta a desproporção, que cumpre declarar, ordenando o levantamento da penhora de imóvel.

Pelo exposto, determino o levantamento da penhora de imóvel».

Dos autos e da decisão recorrida extraem-se os seguintes factos que relevam para a apreciação do recurso:
1.O Banco A instaurou a presente execução contra B e C com vista à cobrança coerciva da quantia de €99.706,78, emergente do incumprimento do contrato de mútuo com hipoteca em que os executados figuram respectivamente como mutuário e fiador – fls. 2 a 18
2.No decurso da execução foi penhorado um imóvel pertencente ao executado B, sobre o qual havia sido constituída hipoteca a favor da exequente para garantia do cumprimento do aludido contrato de mútuo.
3.Posteriormente, foi ordenada a venda do imóvel referido em 2. que acabou adjudicado à exequente Banco A pelo valor de €59.500,00 – fls. 54.
4.Excutido o bem onerado com a garantia real, a execução prosseguiu com a penhora de um imóvel pertencente ao executado/fiador C,  sobre o qual recai hipoteca constituída a favor do Banco D que, por força/efeito da penhora realizada nestes autos, reclamou os créditos emergentes do contrato de mútuo associado a tal imóvel, sendo que tal mútuo tem vindo a ser pontualmente cumprido – fls. 58., 62. 68. e 69.
5.Citado para reclamar os seus créditos, o credor hipotecário D veio requerer a venda do imóvel penhorado pertencente a C, através de propostas em carta fechada indicando como valor base a quantia de €64.705,88 e, como valor a anunciar para venda a quantia de €55.000,00 fls. 96.
6.O Banco A requereu que a venda se fizesse por propostas em carta fechada pelo valor base de €65.000,00 – fls. 99.
7.Foi determinado que a venda se fizesse através de propostas em carta fechada  pelo valor base de €65.000,00, tal como indicado pela exequente Banco A – fls. 103.
8.O crédito reclamado e não impugnado ascende a €87.857,70, sendo que o valor patrimonial/tributário do imóvel que o garante é de €31.779,30, sendo o valor base mínimo de venda de €55,250,00 (85% do valor base-€65.000,00) – facto extraído da decisão recorrida.
9.O agente de execução solicitou o agendamento da venda do imóvel pertencente a C, o que ficou inviabilizado com a prolação da decisão recorrida a ordenar o levantamento da penhora que sobre tal imóvel incidia.

A recorrente A apresentou as seguintes conclusões de recurso:
1.A ora recorrente, em 23.06.2003, instaurou na Comarca da Grande Lisboa- Noroeste – Juízos de Sintra, acção executiva para pagamento de quantia certa, contra B e C, com vista a obter o pagamento do seu crédito do montante de € 99.706,78, acrescido dos juros vincendos.
2.Para garantia dos aludidos empréstimos, além da fiança prestada, foi constituída hipoteca sobre a fracção autónoma designada pela letra “V”, correspondente ao 3º andar frente, do prédio urbano sito …
3.Acontece, porém, que a fracção acima citada foi objecto de venda, em sede de execução fiscal, tendo o bem imóvel supra descrito sido adjudicado à A, pelo valor de € 59.500,00, importância manifestamente insuficiente para amortização integral do seu crédito.
4.Nessa sequência, a ora recorrente prosseguiu os autos de execução própria, para cobrança do remanescente em dívida.
5.No decurso da acção executiva foi requerida a penhora sobre o vencimento do executado B, no entanto este deixou de pertencer aos quadros da…pelo que não chegou a ser descontado qualquer valor à ordem dos presentes autos.
6.Por outro lado, após pesquisas efetuadas no património dos dois executados, não se apurou a existência de quaisquer bens penhoráveis, com excepção de um bem imóvel cuja titularidade pertence ao executado C, que neste momento consiste no único bem susceptível de penhora encontrado na esfera patrimonial dos executados.
7.Acresce dizer que não foram deduzidos embargos por nenhum dos executados.
8.O Tribunal a quo entendeu que, como existem créditos hipotecários de valor superior ao valor do bem penhorado, com garantia real registada anteriormente, a ora recorrente de nada será ressarcida da sua dívida, tendo, consequentemente, ordenado o levantamento da penhora registada a seu favor.
9.Salvo o devido respeito e melhor opinião, o Tribunal a quo não avaliou no seu todo as consequências, sem qualquer hipótese de retorno aos direitos inicialmente garantidos, geradas pelo levantamento da penhora conforme ordenado.
10.É provável que, caso a venda judicial ocorresse hoje e a dívida ao credor hipotecário se mantenha no valor reclamado, o produto da venda não fosse suficiente para liquidar a dívida de ambos os credores. No entanto, o levantamento da penhora registada a favor da recorrente lesa severamente os seus interesses como credora, inviabilizando por completo o efeito dos direitos salvaguardados por esta.
11.O executado deve ao seu credor hipotecário uma quantia superior ao valor patrimonial, mas dado que a está a pagar, não irá dever esse montante para sempre. Seguramente, a dívida ao ser paga, irá diminuir até ao dia em que o presente imóvel ficar desonerado da hipoteca. E isso poderá verificar-se ao longo de vários anos, como poderá acontecer num futuro breve, até porque a vida não é estática e mudanças podem ocorrer, nomeadamente ao nível financeiro.
12.A libertação do bem imóvel da penhora registada faz com que a ora recorrente nunca possa vir a beneficiar desta garantia real, nem sequer numa futura graduação de créditos caso venham a ser registadas novas penhoras, algo que se demonstraria absolutamente injusto.
13.Ao ser levantada, a penhora permitirá ao executado vender o presente bem imóvel, independentemente do facto de ainda ser devido ou não qualquer quantia ao credor hipotecário, sem que a ora recorrente seja tida nem achada, impedindo, em tempo útil, o ressarcimento do seu crédito.
14.Em todo o caso, sempre se dirá que a penhora registada a favor da ora recorrente dever-se-á manter, mesmo que, a breve trecho, não se concretize a venda judicial.
15.Crê a ora recorrente que o levantamento da penhora registada a seu favor, além de pecar por falta de fundamento legal, consiste numa negação de justiça!
16.Decidindo de maneira diferente, o Tribunal a quo desrespeitou as normas seguintes: a) Artigo 18.° da C.R.P., pois o despacho recorrido, restringindo inadmissivelmente o direito subjectivo da Recorrente, peca por violação do principio da proibição do excesso; b) Artigo 20.°, n.° 2, da C.R.P.: o despacho recorrido nega à Recorrente o acesso aos tribunais para a defesa e efectivo exercício dos seus direitos de credora; c) Artigo 62.°, n.° 1, da C.R.P.: o despacho recorrido veda à Recorrente o ressarcimento do seu direito de crédito, d) Artigo 205.°, da C.R.P.: O despacho recorrido recusa, na prática, à Recorrente a administração da justiça, ao menos na perspectiva de que esta deve ser exercida em tempo útil; e) Artigo 296.°, da C.R.P.: O despacho recorrido não assegura à Recorrente a defesa do seu direito de crédito e, na prática, não dirime o conflito de interesses que subjaz à acção.

Ao levantamento da penhora ordenado na decisão ocorrida subjaz o entendimento de que, sendo o valor de venda do imóvel penhorado manifestamente inferior ao montante reclamado pelo credor hipotecário D, a quantia que se vier a obter com tal venda não será suficiente para pagar àquele credor e, a exequente Banco A não obterá qualquer pagamento. Por isso, e por respeito aos princípios que enformam o art.º 735.º, n.º 3 do CPC, a 1.ª instância entendeu ordenar o levantamento da penhora.

Vejamos:
Ao prescrever que a penhora limita-se aos bens necessários ao pagamento da dívida exequenda e das despesas previsíveis da execução (…), o n.º 3 do art.º 753.º do CPC articula-se, por um lado, com o art.º 10.º, n.º 4 do mesmo diploma que estabelece que as acções executivas são aquelas em que o credor requer as providências adequadas à realização coactiva de uma obrigação que lhe é devida e, por outro, impõe limites à dimensão de tais providências.
 
A necessidade de impor limites deriva do princípio constitucional da proporcionalidade ou, dito de outro modo, do principio da proibição do excesso.

Conforme ensina Gomes Canotilho[1], aquele princípio assume-se como «uma regra de razoabilidade – rule of reasonabless» e, através dela, o juiz «tenta avaliar caso a caso as dimensões do comportamento razoável tendo em conta a situação de facto (…)».

Se bem que, como diz Gomes Canotilho, o princípio da proporcionalidade dissesse «primitivamente respeito ao problema da limitação do poder executivo, sendo considerado como uma medida para as restrições administrativas da liberdade individual», o certo é que segundo o mesmo autor, «o domínio lógico de aplicação» daquele princípio «estende-se aos conflitos de bens jurídicos de qualquer espécie».

No caso estamos perante um conflito entre um credor – A – e um executado – C – respondendo este na qualidade de fiador do devedor B – conflito que tem de ser dirimido com observância do tal princípio da proporcionalidade que, de facto, se revê num controlo «razoabilidade – coerência; razoabilidade – adequação; proporcionalidade – necessidade[2]».  
   
Ora, sabendo-se que da venda do bem penhorado não resultará a satisfação do crédito da A, o prosseguimento da execução não é coerente, não é razoável, não é adequado.
A exequente traz ao recurso uma série de argumentos de que não cuidaremos pois que aqui apenas compete apreciar e decidir questões.

Há, todavia, na última conclusão, um apelo à Constituição da Republica, dizendo a recorrente: «o Tribunal a quo desrespeitou as normas seguintes: a) Artigo 18.° da C.R.P., pois o despacho recorrido, restringindo inadmissivelmente o direito subjectivo da Recorrente, peca por violação do principio da proibição do excesso; b) Artigo 20.°, n.° 2, da C.R.P.: o despacho recorrido nega à Recorrente o acesso aos tribunais para a defesa e efectivo exercício dos seus direitos de credora; c) Artigo 62.°, n.° 1, da C.R.P.: o despacho recorrido veda à Recorrente o ressarcimento do seu direito de crédito, d) Artigo 205.°, da C.R.P.: O despacho recorrido recusa, na prática, à Recorrente a administração da justiça, ao menos na perspectiva de que esta deve ser exercida em tempo útil; e) Artigo 296.°, da C.R.P.: O despacho recorrido não assegura à Recorrente a defesa do seu direito de crédito e, na prática, não dirime o conflito de interesses que subjaz à acção».

Afigura-se que a recorrente não tem razão pois usou da acção executiva com vista à cobrança do seu crédito e, se tal objectivo não logrou atingir, é porque o devedor não tem bens penhoráveis e o fiador tem um imóvel hipotecado a ao Banco D que, a ser vendido, nem a dívida ao credor hipotecário será satisfeita.

Será que o Banco A acautelou devidamente o seu património quando celebrou o contrato de mútuo com o exequente B? Parece que não.

Face ao exposto, acordam os juízes da secção cível em negar provimento ao recurso e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida.      
Custas a cargo da recorrente porque ficou vencida. 

     

Lisboa, 16.11.2016



Maria Alexandrina Branquinho
António Valente
Ilídio Sacarrão Martins



[1]Direito Constitucional e Teoria da Constituição
[2]Ainda Gomes Canotilho

Decisão Texto Integral: