Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
955/20.9YLPRT.L1-2
Relator: NELSON BORGES CARNEIRO
Descritores: PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – Os atos a praticar pelo juiz no procedimento especial de despejo assumem carácter urgente, embora o processo não seja qualificado como urgente.
II – Os procedimentos especiais de despejo ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório de resposta à epidemia SARS-CoV-2, não sendo, porém, esta suspensão automática, pois está dependente de o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, poder ficar colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
III – A qual só poderá ser apreciada pelo tribunal se for suscitada pela parte que nela tenha nisso interesse, no caso, o arrendatário.
IV – Porquanto, o tribunal antes de lhe ser colocada a questão, não dispõe de elementos para saber se a decisão judicial a proferir é suscetível de colocar o arrendatário em situação de fragilidade e, portanto, suspender a tramitação do processo.
V – Assim, os procedimentos especiais de despejo não devem ser suspensos antes de ser suscitada a questão pelo arrendatário, de que a decisão final a proferir é suscetível de o colocar em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 2ª secção (cível) do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. RELATÓRIO
AAA, requereu procedimento especial de despejo contra BBB.
Pelo senhor secretário de justiça foi proferido despacho que considerou que os autos configuram um “procedimento especial de despejo com fundamento na resolução nos termos do artigo 1083.º, n.º 3 do CC” e, como tal os mesmos se encontram suspensos nos termos do artigo 6.º- C/6-c da Lei 1-A/2020, de 19-3, na sua redação atual”.
O tribunal a quo proferiu despacho que “indeferiu a reclamação apresentada, mantendo a suspensão do procedimento especial de despejo”.
Inconformada, veio a autora apelar do despacho, tendo extraído das alegações[1],[2] que apresentou as seguintes
CONCLUSÕES[3]:
a) A arrendatária não procede no pagamento das rendas desde dezembro de 2019 e a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas operou por comunicação recebida em 06.03.2020;
b) Ao procedimento especial de despejo que está em causa nos autos poderia ser aplicável o disposto no artigo 6.º-A, nº 6, alínea c) da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, aditado pela Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, todavia não estão reunidos os pressupostos para que o artigo 6.º-A, nº 6, alínea c) seja aplicável;
c) «Artigo 6.º-A
Regime processual transitório e excecional
6 - Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório:
c) As ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para
entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa» (negrito e sublinhado nosso);                    
d) O artigo 6º-A, nº 6, alínea c) é claro quando refere como requisito a existência de “decisão judicial a proferir”;
e) A Secretaria do BNA suspendeu automaticamente o presente PED, sem sequer ter feito a “triagem” referida no artigo 15.ºC do NRAU, ou ainda da notificação da arrendatária, nos termos do artigo 15.ºD do NRAU;
f) Não existe qualquer decisão final a proferir que possa colocar a arrendatária em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
g) O BNA não notificou a arrendatária, que sempre poderia, em conformidade com o disposto no n.º 1 do art. 15.º D do NRAU, desocupar o locado; deduzir oposição ou requerer o diferimento da desocupação, evitando-se, deste modo, que a mesma fosse colocada em situação de especial fragilidade;
h) O legislador não se limitou a decretar a suspensão dos procedimentos especiais de despejo, de forma automática e sem qualquer critério, nem determinou que ocorresse sempre a suspensão, caso estivéssemos perante uma situação de habitação própria e permanente;
i) Não se verifica, no disposto no artigo 6º-A, nº 6, alínea c) que exista qualquer presunção de uma situação de fragilidade ou que esta possa constituir facto público e notório;
j) A interpretação da norma constante do artigo 6º-A, nº 6, alínea c) da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março (com as alterações resultantes da Lei nº 16/2020, de 29 de Maio), segundo a qual deverá ser declarada a suspensão do procedimento de despejo, ainda que a arrendatária não apresente quaisquer provas de que teve uma quebra de rendimentos e/ou poderá ficar em situação de fragilidade decorrente do despejo, é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa.
Pelo exposto e com o douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido e substituindo-o por
outro que não admita a suspensão automática do presente procedimento especial de despejo, e permita o andamento dos presentes autos, com o que se fará JUSTIÇA!
Colhidos os vistos[4], cumpre decidir.
OBJETO DO RECURSO[5],[6]
Emerge das conclusões de recurso apresentadas por AAA, ora apelante, que o seu objeto está circunscrito às seguintes questões:
1.) Saber se é automática a suspensão do procedimento especial de despejo, no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório das medidas excecionais e temporárias de resposta à epidemia sars-cov-2, ou, se a suspensão está dependente da verificação de o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
2.) Saber se a interpretação da norma constante do artigo 6º-A, nº 6, alínea c) da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, segundo a qual deverá ser declarada a suspensão do procedimento de despejo, ainda que a arrendatária não apresente quaisquer provas de que teve uma quebra de rendimentos e/ou poderá ficar em situação de fragilidade decorrente do despejo, é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa.        
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. FACTOS
1.) A requerente deu entrada no BNA do procedimento especial de despejo, no dia 3
de agosto de 2020;
2.) Alega como fundamento do requerido a resolução pelo senhorio, nos termos do
nº 3 do artigo 1083.º do Código Civil.
3.) A 20 de outubro de 2020 a Requerente apresentou no processo um requerimento
a solicitar informação quanto ao estado do processo uma vez que o mesmo se encontra parado
desde 3 agosto de 2020.
2.3. O DIREITO
Delimitada a matéria de facto, que não vem impugnada[7], importa conhecer o objeto do recurso, circunscrito pelas respetivas conclusões, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e as que sejam de conhecimento oficioso[8].          
1.) SABER SE É AUTOMÁTICA A SUSPENSÃO DO PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO, NO DECURSO DO PERÍODO DE VIGÊNCIA DO REGIME EXCECIONAL E TRANSITÓRIO DAS MEDIDAS EXCECIONAIS E TEMPORÁRIAS DE RESPOSTA À EPIDEMIA SARS-COV-2, OU, SE A SUSPENSÃO ESTÁ DEPENDENTE DA VERIFICAÇÃO DE O ARRENDATÁRIO, POR FORÇA DA DECISÃO JUDICIAL FINAL A PROFERIR, POSSA SER COLOCADO EM SITUAÇÃO DE FRAGILIDADE POR FALTA DE HABITAÇÃO PRÓPRIA OU POR OUTRA RAZÃO SOCIAL IMPERIOSA.
A apelante alegou que “A Secretaria do BNA suspendeu automaticamente o presente PED, sem sequer ter feito a “triagem” referida no artigo 15.ºC do NRAU, ou ainda da notificação da arrendatária, nos termos do artigo 15.ºD do NRAU”.
Mais alegou que “Não existe qualquer decisão final a proferir que possa colocar a arrendatária em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa, não se verificando, no disposto no artigo 6º-A, nº 6, alínea c) que exista qualquer presunção de uma situação de fragilidade ou que esta possa constituir facto público e notório”.
Vejamos a questão.
O procedimento especial de despejo é um meio processual que se destina a efetivar a cessação do arrendamento, independentemente do fim a que este se destina, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convenção entre as partes – art. 15º, nº 1, do NRAU.
O procedimento especial de despejo é assim aplicável para recuperação do imóvel em todos os casos de extinção do contrato de arrendamento que não resultem de ação de despejo[9].
Atentemos, em primeiro lugar, à evolução legislativa relativamente às medidas excecionais e temporárias de resposta à epidemia SARS-CoV-2, aprovadas pela Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, relativamente ao procedimento especial de despejo:
- São suspensas as ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria – art. 7º, nº 10, da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03.
- Durante a situação excecional referida no n.º 1, são suspensas as ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa redação introduzida pelo art. 2º, da Lei n.º 4-A/2020, de 06-04, que alterou a redação do art. 7º, nº 11, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março.
- Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório, as ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa -art. 6º-A, nº 6, al. c), aditado à Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, pelo art. 2º, da Lei n.º 16/2020 de 29-05, e que revogou ainda o art. 7º, da Lei 1-A/2020, de 19-03.
O primitivo texto da norma inserida no n.º 11 encontrava-se no n.º 10 do artigo 7.º na redação inicial da Lei 1-A/2020, com o seguinte teor: «10 – São suspensas as ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria». A Lei 4-A/2020 acrescentou-lhe os trechos inicial (Durante a situação excecional referida no n.º 1) e final (ou por outra razão social imperiosa) [10].
Após o fragmento relativo ao período de aplicação, a norma estabelece que são suspensos determinados processos – processos declarativos (ações) de despejo, procedimentos especiais de despejo, e processos executivos (execuções) para entrega de coisa imóvel arrendada – quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa[11].
Da gramática da disposição, resulta que a suspensão do processo não é automática, antes carecendo da prévia apreciação de um requisito complexo: que «o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa». O tribunal terá de aferir os pressupostos de facto integradores daquele requisito complexo e composto por conceitos indeterminados: a decisão judicial final a proferir tem de ser suscetível de colocar o arrendatário em situação de fragilidade, por qualquer razão social imperiosa, nomeadamente por falta de habitação própria. O tribunal carecerá, assim, de saber qual a situação financeira e patrimonial do arrendatário[12].
Tendo em consideração o princípio dispositivo, densificado nos artigos 3.º e 5.º do CPC em título de disposições e princípios fundamentais, o tribunal só deverá apreciar a questão da suspensão se a mesma for suscitada pela parte que nela tem interesse, com indicação dos factos que a fundamentam, e dando oportunidade à parte contrária de exercer o contraditório. Trata-se de um incidente enxertado na marcha do processo a que se aplicarão os artigos 292.º a 295.º do CPC[13].
Nos processos abrangidos pelo n.º 11 (reportando-nos nestes parágrafos aos números do revogado artigo 7.º) há duas espécies não urgentes – ações de despejo e execuções para entrega de imóvel arrendado –, e uma urgente, o procedimento especial de despejo (artigo 15.º-S, n.ºs 5 e 8, do NRAU). Às duas primeiras aplicavam-se os n.ºs 1 e 6, alínea b), sem prejuízo de os respetivos processos serem tramitados nos termos do n.º 5, a menos que fosse requerida e deferida a suspensão total do processo ao abrigo do disposto no n.º 11. À terceira (procedimento especial de despejo), aplicava-se a tramitação definida no n.º 7 para os processos urgentes, sem prejuízo de poder ser requerida e deferida a suspensão do processo ao abrigo do disposto no n.º 11[14].
Destes processos apenas um deles é urgente, o procedimento especial de despejo, mas a lei estabelece um regime geral de suspensão, que tem a particularidade de depender da situação especial de fragilidade do arrendatário.  Parece, assim, que o processo pode continuar quando essa situação de fragilidade não exista, mas a lei não esclarece em que termos. Crê-se que a única possibilidade é a aplicação do regime dos processos urgentes por analogia, atendendo a que o legislador só determinou a suspensão em caso de fragilidade do arrendatário[15].
Está em causa, nesta norma, a suspensão, por um lado, dos meios processuais destinados a produzir a cessação judicial de um contrato de arrendamento e, por outro, dos meios destinados a efetivar essa mesma cessação, mediante a desocupação coerciva do locado, sendo que, da análise da mesma, resulta que a proteção visada pelo preceito respeita aos contratos de arrendamento habitacionais nas situações em que o arrendatário possa ser colocado na chamada, pelo legislador, “situação de fragilidade” por falta de habitação própria ou, nas palavras aditadas da Lei n.º 4-A/2020, “por outra razão social iminente” (ou seja, uma razão social a aferir pelo aplicador, não só nos casos em que a mesma já esteja verificada, mas também naqueles em que aquela seja previsível que ocorra, efetivamente, numa situação de grande proximidade temporal) [16]
Havendo uma clara “preocupação do legislador em evitar que arrendatários sejam despejados ou retirados dos locais que ocupam, dado que ficariam sujeitos a não ter onde viver no meio de uma pandemia, propiciando também a possibilidade de serem agentes transmissores da mesma para terceiros”, mantém-se suspensas as “ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada”, mas apenas “quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa” (al. c)[17].
É “de difícil aferição judicial, neste momento, o saber-se se alguém poderá “ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria””, utilizando-se também outra cláusula geral ainda de mais difícil concretização (“razão social imperiosa”), considerando-se, por sua vez, que deverá ser o arrendatário a alegar a existência dessa “situação de fragilidade” ou essa “outra razão social imperiosa”, dado que dificilmente tal poderá resultar unicamente dos termos do processo em causa[18].
A suspensão do andamento deste tipo de processos estava e está dependente da verificação do circunstancialismo ali exigido: que o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria (versão inicial da Lei) ou possa também ser colocado naquela situação de fragilidade por outra razão social imperiosa (versão da Lei com as alterações introduzidas pela Lei 4-A/2020 de 6/4 e pela Lei 16/2020, de 29/5) [19].
A prova daquele circunstancialismo – para se decidir sobre a sua eventual verificação e consequente suspensão do processo – incumbia ao requerido, como arrendatário, pois era a si que o mesmo aproveitava[20].
Podemos, pois, concluir, da seguinte forma:
- Os atos a praticar pelo juiz no procedimento especial de despejo assumem carácter urgente, embora o processo não seja qualificado como urgente (art. 15º-S, nº 8, do NRAU)[21];
- Os procedimentos especiais de despejo ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório de resposta à epidemia SARS-CoV-2 (art. 6º-A, nº 6, al. c), da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03), não sendo, porém, esta suspensão automática, pois está dependente de o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, poder ficar colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
- A qual só poderá ser apreciada pelo tribunal se for suscitada pela parte que nela tenha nisso interesse, no caso, o arrendatário;
- Porquanto, o tribunal antes de lhe ser colocada a questão, não dispõe de elementos para saber se a decisão judicial a proferir é suscetível de colocar o arrendatário em situação de fragilidade;
- Assim, os procedimentos especiais de despejo não devem ser suspensos antes de ser suscitada a questão pelo arrendatário, de que a decisão final a proferir é suscetível de o colocar em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.        
*
Reportemo-nos, então, ao caso dos autos.
Pelo senhor secretário de justiça foi proferido despacho considerando que os autos configuram um “procedimento especial de despejo com fundamento na resolução nos termos do artigo 1083.º, n.º 3 do CC” e, como tal os mesmos se encontram suspensos nos termos do artigo 6.º- C/6-c da Lei 1-A/2020, de 19-3, na sua redação atual”.
Temos, pois, que a secretaria do BNA suspendeu o
procedimento especial de despejo, sem ter recusado o requerimento de despejo (nos termos do art. 15.º-C, nº 1, do NRAU), ou, sem ter notificado a arrendatária para desocupar o locado, deduzir oposição à pretensão e, ou, requerer o diferimento da desocupação do locado (nos termos do art. 15.ºD do NRAU).
Assim, a questão da suspensão do processo não foi suscitada pela arrendatária, nomeadamente, por a decisão judicial final a proferir a colocar em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa, mas sim, oficiosamente.
Não tendo sido suscitada a questão da suspensão pela parte que nela tinha interesse, no caso, a arrendatária, não há fundamento legal para os autos não serem tramitados (na sequência da notificação o arrendatário pode desocupar o locado, deduzir oposição, e mesmo que o requerimento de desejo se converta em título de desocupação, ainda se pode por à pretensão de despejo).
No caso de o requerimento de despejo ser recebido, o BNA notifica o arrendatário nos termos do art. 15º-D, do NRAU e, em princípio, esta notificação não o coloca em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
Não havendo nos autos qualquer decisão final a
proferir que possa colocar a arrendatária em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa, não será aplicável o disposto no artigo 6º-A, nº 6, alínea c) da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março (com as alterações resultantes da Lei nº 16/2020, de 29 de maio).
Além do mais, não está demonstrada a verificação dos pressupostos para a aplicação de qualquer suspensão, e nem se sabendo, se por força de qualquer decisão judicial final a proferir, possa a arrendatária vir a ser colocada em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa, o que terá sempre que ser alegado e provado pela mesma, por não dispor o tribunal de tais elementos.
Assim, como entende a apelante, “Não pode ser decretada a suspensão do presente PED desde logo nesta fase administrativa, com base na possibilidade de a arrendatária ser colocada em situação de fragilidade, quando a mesma nem sequer foi notificada para alegar e comprovar o que tivesse por conveniente quanto a tal”.
Mas, caso a coloque, então sim, a arrendatária pode suscitar a questão da suspensão do processo, mas até esse momento, como nada está alegado que nos permita apurar e decidir sobre a mesma, não há fundamento legal para os autos não serem tramitados e estarem suspensos.
Destarte, procedendo o recurso de apelação, há que revogar o despacho proferido pelo tribunal a quo que “indeferiu a reclamação apresentada, mantendo a suspensão do procedimento especial de despejo”.
O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cujas decisões esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras – art. 608º, nº 2, ex vi, do art. 663º, nº 2, ambos do CPCivil.
Do princípio de que a sentença deve resolver todas as questões suscitadas pelas partes excetuam-se aquelas cujas decisões esteja prejudicada pela solução dada a outras».
Assim, por exemplo, se o tribunal se declara
incompetente para conhecer do pedido, em razão da matéria ou da hierarquia, não faria sentido que na sentença se pronunciasse ainda sobre as questões levantadas pelas partes quanto ao mérito da causa[22].
Sendo procedendo o recurso de apelação, mostra-se prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pela apelante, nomeadamente, “saber se a interpretação da norma constante do artigo 6º-a, nº 6, alínea c) da Lei nº 1-a/2020, de 19 de março, segundo a qual deverá ser declarada a suspensão do procedimento de despejo, ainda que a arrendatária não apresente quaisquer provas de que teve uma quebra de rendimentos e/ou poderá ficar em situação de fragilidade decorrente do despejo, é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa”.
3. DISPOSITIVO
3.1. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível (2ª) do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido, substituindo-o por outro que determine o prosseguimento dos autos de procedimento especial de despejo.               
3.2. REGIME DE CUSTAS
Não há lugar ao pagamento de custas, quer com encargos, quer com custas de parte[23].

Lisboa, 2021-02-11[24],[25]
Nelson Borges Carneiro
Pedro Martins
Inês Moura
_______________________________________________________
[1] Para além do dever de apresentar a sua alegação, impende sobre o recorrente o ónus de nela concluir, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão – ónus de formular conclusões (art. 639º, nº 1) – FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, volume II, 2ª edição, p. 503.
[2] As conclusões exercem ainda a importante função de delimitação do objeto do recurso, como clara e inequivocamente resulta do art. 639º, nº 3. Conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que o recorrente pretende obter do tribunal superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo tribunal a quo – ABRANTES GERALDES – PAULO PIMENTA – PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, volume 1º, 2ª ed., p. 795.
[3] O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão. Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar, as normas jurídicas violadas; o sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas, e invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada – art. 639º, nºs 1 e 2, do CPCivil.
[4] Na sessão anterior ao julgamento do recurso, o processo, acompanhado com o projeto de acórdão, vai com vista simultânea, por meios eletrónicos, aos dois juízes-adjuntos, pelo prazo de cinco dias, ou, quando tal não for tecnicamente possível, o relator ordena a extração de cópias do projeto de acórdão e das peças processuais relevantes para a apreciação do objeto da apelação – art. 657º, n.º 2, do CPCivil.
[5] Todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas, não podendo de elas conhecer o tribunal de recurso.
[6] Vem sendo entendido que o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir.
[7] Quando não tenha sido impugnada, nem haja lugar a qualquer alteração da matéria de facto, o acórdão limita-se a remeter para os termos da decisão da 1.ª instância que decidiu aquela matéria – art. 663º, nº 6, do CPCivil.
[8] Relativamente a questões de conhecimento oficioso e que, por isso mesmo, não foram suscitadas anteriormente, a Relação deve assegurar o contraditório, nos termos gerais do art. 3º, nº 3. A Relação não pode surpreender as partes com uma decisão que venha contra a corrente do processo, impondo-se que as ouça previamente – ABRANTES GERALDES – PAULO PIMENTA – PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, volume 1º, 2ª ed., p. 829.
[9] MENEZES LEITÃO, Arrendamento Urbano, 9ª edição, p.217.
[10] HIGINA CASTELO, O arrendamento urbano nas leis temporárias de 2020, Revista do Ministério Público, Número Especial COVID-19:2020, p. 336.
[11] HIGINA CASTELO, O arrendamento urbano nas leis temporárias de 2020, Revista do Ministério Público, Número Especial COVID-19:2020, p. 337.
[12] HIGINA CASTELO, O arrendamento urbano nas leis temporárias de 2020, Revista do Ministério Público, Número Especial COVID-19:2020, p. 336/37.
[13] HIGINA CASTELO, O arrendamento urbano nas leis temporárias de 2020, Revista do Ministério Público, Número Especial COVID-19:2020, p. 337.
[14] HIGINA CASTELO, O arrendamento urbano nas leis temporárias de 2020, Revista do Ministério Público, Número Especial COVID-19:2020, p. 338.
[15] LUÍS MENEZES LEITÃO, Os prazos em tempo de pandemia COVID-19, Estado de emergência - covid-19 – Implicações na justiça, CEJ, 2ª edição, p. 71.
[16] LUÍS MENEZES LEITÃO, Algumas questões face à legislação aprovada no contexto da pandemia COVID 19 – jurisdição civil, comercial e processual civil, Estado de emergência - covid-19 – Implicações na justiça, CEJ, 2ª edição, p. 349.
[17] OLIVEIRA MARTINS, (De novo a) Lei n.º 1-A/2020 – uma terceira leitura (talvez final?), Julgar Online, abril de 2020, p. 20.
[18] OLIVEIRA MARTINS, (De novo a) Lei n.º 1-A/2020 – uma terceira leitura (talvez final?), Julgar Online, abril de 2020, p. 20.
[19] Ac. Tribunal da Relação do Porto de 2020-12-09, Relator: MENDES COELHO, http://www.dgsi.pt/jtrp.
[20] Ac. Tribunal da Relação do Porto de 2020-12-09, Relator: MENDES COELHO, http://www.dgsi.pt/jtrp.
[21] MENEZES LEITÃO, Arrendamento Urbano, 9ª edição, p.217, e Ac. STJustiça de 2016-11-24, Relator: TOMÉ GOMES, http://www.dgsi.pt/jstj.
[22] ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, vol. 5º, p. 58.
[23] A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito – nº 1, do art. 527º, do CPCivil. A taxa de justiça relativa aos recursos é a prevista nos artigos 529.º, n.º 2, e 530.º, n.º 1, ambos do CPCivil, e 6.º, n.º 2, e 7.º, n.º 2, do RCProcessuais, devida por mero efeito do impulso processual da recorrente e do recorrido que contra-alegue. A responsabilidade pelo pagamento das custas nos recursos, constante dos artigos 527.º e seguintes do CPCivil, só abrange os encargos e as custas de parte. Como o arrendatário não interveio no recurso, por não ter sido citado para o efeito, inexiste fundamento legal para a sua responsabilização pelo pagamento das custas respetivas. Como a autora extraiu vantagem do recurso, na medida em que foi revogado o despacho de suspensão do procedimento especial de despejo, seria ela, em princípio, a responsável pelo pagamento das custas. Uma vez que o recurso não envolveu encargos, e o arrendatário não pagou no seu âmbito taxa de justiça ou honorários a mandatário judicial, não se constituiu a seu favor crédito algum por custas de parte no confronto da recorrente autora – Neste sentido, SALVADOR DA COSTA, Condenação do recorrente no pagamento das custas do recurso no caso de beneficiar de apoio judiciário, Blogue do IPPC, publicado em 2020-11-26.
[24] A assinatura eletrónica substitui e dispensa para todos os efeitos a assinatura autógrafa em suporte de papel dos atos processuais – art. 19º, nº 2, da Portaria n.º 280/2013, de 26/08, com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 267/2018, de 20/09.
[25] Acórdão assinado digitalmente.