Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8950/2003-3
Relator: RODRIGUES SIMÃO
Descritores: APREENSÃO
CORRESPONDÊNCIA
MEIOS DE PROVA
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/23/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
Decisão Texto Integral: Acordam em audiência no Tribunal da Relação de Lisboa:
I - Relatório.
1. No Processo, do 2º Juízo de Angra do Heroísmo, recorre o Mº Pº do acórdão de fls. 851/860, publicado em 13-06-03, que absolveu os arguidos (J), (M) e (C) da imputada autoria de um crime de tráfico de estupefacientes do artº 21º, nº 1 do DL 15/93, de 22-01.

2. O recorrente, motivado o recurso, conclui (em transcrição):

(...)

II - Fundamentação.

7. Colhidos os vistos e realizada audiência, cumpre decidir.
As questões do recurso([1]) são (na própria formulação do recorrente) as de saber se:
a) existe “erro de direito quanto á qualificação jurídica da actuação dos agentes da GNR, quando se deslocaram à estação de correios de Angra do Heroísmo e detectaram duas encomendas que haviam sido depositadas na estação de correios dos Restauradores e dirigidas à mãe do arguido João” , pois “Tal actuação cabe no âmbito duma actuação policial de prevenção do crime e determina mesmo a faculdade de detecção de correspondência de conteúdo criminoso, neste caso droga; sendo que tal legitimidade policial é plenamente consagrada no art. 249 n° 2 alínea c) do CPP”?
b) “não existe qualquer proibição de prova, sendo válida aquela que é representada pela apreensão de haxixe na residência indicada, verificando-se errada interpretação dos arts. 179 e 126 nº 3 ambos do CPP, uma vez que não se verifica a nulidade de violação de correspondência”?
c) “Existe erro notório na apreciação da prova” e contradição insanável de fundamentação?

8. A matéria de facto do acórdão recorrido é a seguinte (em transcrição):
No dia 12Fev02 os 3 arguidos chegaram à ilha Terceira onde foram abordados no aeroporto das Lajes por agentes da GNR e onde foram revistados nas suas pessoas e bagagens, nada tendo sido encontrado de relevante, senão vários talões de compras constantes dos autos, nomeadamente o de fls. 46, assim como uma faca e uma embalagem de supercola.
No dia 13Fev02 foram detectadas na estação de correio de Angra do Heroísmo duas encomendas que haviam sido depositadas na estação de correios dos Restauradores em Lisboa a 11Fev02 dirigidas a Teresina Maria de Oliveira Baptista, Canada da Ribeirinha, 408, Reguinho, São Bento, e com remetente com os dizeres Perfumaria Xanadu, Av. Fontes Pereira de Melo, H, 1º Dtº, as quais foram logo apreendidas por agentes da GNR.
As encomendas foram levadas ao aeroporto das Lajes e passadas no RX das bagagens, tendo-se constatado com uma certeza quase absoluta de que cada uma continha um sabonete de haxixe, convicção que foi reforçada quando exibidas aos cães da corporação, treinados para o efeito, os quais se manifestaram positivamente.
Efectuados estes testes, as encomendas foram novamente depositadas na estação dos correios de Angra do Heroísmo e mais tarde entregues na residência do destinatário, a mãe do arguido João, pelo respectivo carteiro, onde foram apreendidas e levadas à presença do Mº Juiz de Instrução Criminal e abertas.
Encontram-se apreendidos nos presentes autos 2 sabonetes de haxixe com o peso, respectivamente de 248,5 gr e 243,7 gr.
9. Porque a decisão e a argumentação do tribunal recorrido merece a nossa concordância, há que proceder à sua transcrição:
Nos termos do art. 179 n.º 1 CPP, sob pena de nulidade, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão, mesmo nas estações de correios e de telecomunicações, de cartas, encomendas… ou qualquer outra correspondência quando tiver fundadas razões para crer que, cumulativamente, a correspondência foi expedida pelo suspeito… mesmo que sob nome diverso ou através de pessoa diversa; estiver em causa crime punível com pena superior, no seu máximo, a 3 anos; e a diligência se revele provavelmente de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
Analisados os termos deste preceito legal, liminarmente, e por argumento a contrario sensu, verifica-se que qualquer apreensão nos correios, de encomendas – que para este efeito se integra no amplo conceito de correspondência – deverá ser sempre previamente autorizada ou ordenada pelo juiz com funções de instrução, que deverá sempre apreciar os devidos pressupostos e decidir em conformidade.
Só assim não é quando efectuadas no decurso de revistas ou buscas, aplicando-se porém as garantias e pressupostos processualmente previstos para a efectivação destes meios de prova, nos termos expressos do art. 178º n.º 3 CPP.
E deverá ser o juiz com funções de instrução a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida, nos termos do art. 179º n.º 3 CPP.
Analisemos então os factos provados nos presentes autos.
Feita uma revista nas pessoas e bagagens dos arguidos com mandado judicial ordenado a fls. 13, foram apreendidos no âmbito dessa revista objectos que são idóneos a fundamentar uma suspeição de remessa de produto estupefaciente por via postal. Nada há, de facto e de direito, a apontar-se a tal revista.
Só que, na sequência dessa suspeição, os agentes policiais decidiram de motu próprio apreender 2 encomendas nos correios de Angra do Heroísmo, levá-las ao RX das bagagens do aeroporto e a teste por canídeos, tendo junto aos autos as fotografias então efectuadas e que se encontram a fls. 4 a 7, constando do relatório de fls. 3 e do próprio depoimento do agente (E) prestadas em audiência que, quase sem dúvidas, cada uma das encomendas contém um sabonete de haxixe, conforme fotos que se anexam.
Aliás, este mesmo método de actuação consta, de modo explícito, da própria acusação formulada contra os arguidos.
Ora, é manifesto que tal “apreensão” nos correios não foi autorizada ou ordenada por juiz de instrução e muito menos foi o juiz de instrução a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo de tais encomendas “apreendidas”.
Todavia, várias considerações há que tecer-se a respeito da validade como meio de prova, assim como da metodologia utilizada na sua obtenção, uma vez que outras tantas objecções de índole jurídico se mostram legítimas, embora não perfilhadas por este Tribunal, que, sem embargo, as levou necessária e oficiosamente em consideração.
A primeira delas respeita à utilização de RX para se prescrutar o conteúdo de encomendas postais.
Não pode deixar de considerar-se como proibida essa utilização quanto a encomendas postais. O art. 194º n.º 1 CP prevê como crime não apenas a abertura de encomenda que se encontre fechada, como também – e neste ponto é significativo – que se tome conhecimento, por processos técnicos, do seu conteúdo.[2]
Não se diga que a ser assim seria igualmente proibida a utilização de RX nas bagagens de passageiros aéreos, cuja legalidade, por motivos de segurança, se impõe.
Mas uma coisa é bagagem pessoal e outra é uma encomenda postal fechada, para todos os efeitos equiparada legalmente a correspondência. É consabido que quem viaja por via aérea concorda tacitamente na revista da sua bagagem, nomeadamente através da utilização de aparelhos de RX. Quem considerar que a sua vida privada é desse modo devassada, sempre poderá optar por não transportar bagagem, ou até não viajar. Contudo, e por um lado, esta hipótese é-lhe sempre conferida antes da viagem; por outro lado, não deverá verificar-se qualquer discriminação na vigilância de bagagem quanto a determinados passageiros em relação a quaisquer outros.
Já quanto a encomendas postais tais garantias não lhe são dadas e qualquer pessoa tem o direito – disponível, é certo – de remeter por via postal o que bem entender sem que o seu conteúdo seja vistoriado e sem que disso mesmo possa vir a não ter conhecimento, sendo certo que, por motivos de investigação criminal existem os meios processuais previstos a obviar a tal situação, quando tal se justifique.
Também não se diga que a abertura de encomendas nas alfândegas é prática habitual, cuja legalidade, agora por motivos aduaneiros, igualmente se impõe.
Análogas considerações se tecem quanto a esta situação. Também aqui quem remete encomendas que atravessam fronteiras, concorda tacitamente na revista dessas encomendas, nomeadamente através da utilização de aparelhos de RX. Quem considerar que a sua vida privada é desse modo devassada, sempre poderá optar por não remeter artigos cuja sujeição a impostos aduaneiros eventualmente existentes impõe uma verificação, para tais efeitos. Contudo, e também, esta hipótese é-lhe sempre conferida antes da remessa.
A utilização de cães para detecção de produtos estupefacientes – desde que não exista qualquer apreensão legalmente proibida que a anteceda – não constitui qualquer meio proibido de obtenção de prova uma vez que os referidos animais não descrevem o conteúdo de uma encomenda a ninguém, apenas se circunscrevendo à existência ou não de produto estupefaciente.
Conclui-se assim, sem que dúvidas se coloquem, que se o legislador proíbe a violação de correspondência e considera nula toda a prova obtida através de actos que impliquem violação da vida privada, impondo inclusive que o juiz de instrução seja a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da encomenda, não é concerteza para permitir que alguém que não ele, em acto prévio tome conhecimento desse mesmo conteúdo e o fotografe, como aconteceu nos presentes autos.
Nos presentes autos existem portanto dois comportamentos que tornam nula toda a prova obtida: a “apreensão” das encomendas nos correios por agentes policiais sem qualquer ordem nesse sentido ou, alternativamente, autorização de remetente e destinatário, pelo menos nesse momento, que é o que releva; e por outro lado, a utilização de RX, quer na detecção, quer na realização de fotografias do conteúdo dessas encomendas.
Outra das objecções possíveis prende-se com a possível desvalorização enquanto meio de prova da primeira das apreensões, através da eventual convalidação – sanação - da prova obtida exclusivamente através da segunda das apreensões, esta sim judicialmente ordenada e assim plenamente válida. Por outras palavras, questiona-se assim se, provindo a prova dos presentes autos exclusivamente desta segunda apreensão, tal não tornará irrelevante a primeira, ainda que eventualmente nula.
A resposta não é absolutamente unívoca. Se ambos os meios de obtenção de prova se mostrarem absoluta e processualmente independentes enquanto carreadores de diferente prova para os autos, é manifesto que um dos meios, ainda que ilegal, não terá a virtualidade de inquinar toda a prova carreada pelo outro, que não é ilegal.
Já pelo contrário, uma vez que se verifique - um mínimo que seja - de relevância processual entre o meio ilegal e um outro meio legal que lhe suceda, não poderá deixar de actuar o efeito à distância ou por arrastamento da nulidade do primeiro, que assim inquinará a prova carreada pelo segundo.
Ora nos presentes autos verifica-se que um dos fundamentos fácticos da apreensão requerida ao Juiz de instrução é precisamente a detecção… com quase absoluta certeza, de dois sabonetes, através de aparelho de RX – vide relatório de fls. 3.
Se tal diligência policial não fosse considerada como útil, simplesmente não teria sido efectuada, nem constaria do relatório de fls. 3 como fundamento da requerida apreensão e finalmente não constaria da factualidade vertida na própria acusação deduzida nos presentes autos, como expressa e efectivamente consta.
Não se verificando essa independência absoluta entre ambas as apreensões, não pode concluir-se pela irrelevância da primeira das apreensões e, consequentemente, pela validade da prova obtida com a apreensão posterior judicialmente ordenada[3].
Não tendo verificado na íntegra o procedimento processual minuciosamente analisado supra, ter-se-á inevitavelmente uma nulidade da prova obtida, tal como prescreve o art. 126º n.º 3 CPP, segundo o qual, ressalvados os casos previstos na lei, são nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, designadamente na correspondência… sem o consentimento do respectivo titular.
E trata-se de uma nulidade absoluta, e portanto insanável, nos termos do referido art. 126º n.º 3 CPP, a que não é de aplicar-se nem o art. 119º nem o art. 120º CPP, por expressa ressalva do art. 118º n.º 3 do mesmo diploma.
E compreende-se que assim seja. É de considerar-se como bem mais perigoso num estado de direito democrático que qualquer pessoa seja alvo de intromissão na sua esfera jurídica pessoal através do apuramento do conteúdo da sua correspondência, do que a obtenção de qualquer meio de prova que afinal possa concluir-se essencial para a punição de um ilícito criminal, por mais grave que este se venha a revelar. Não só nem sempre as suspeitas se revelam fundadas e assim se verificariam inúmeras violações do direito à privacidade e correspondência dos cidadãos sem qualquer fundamento razoável, como também a lei consagra meios legítimos de ultrapassar-se essa questão como sejam a autorização – válida - do visado ou a autorização ou ordem da autoridade judicial competente. E esta autoridade judicial competente não é concerteza integrada pelos agentes policiais que executaram a apreensão e passagem ao RX, face ao que expressamente dispõem os arts. 1º n.º 1 al. b), 270º e 178º, 179º n.º 3 e 268º n.º 1 al. d), todos do CPP.
Sendo assim, será nula toda a prova subsequente - referente aos factos subsequentemente imputados aos arguidos - designadamente os resultantes de elementos bancários, declarações em audiência, em tudo o que os liguem aos factos – exíguos – dados como provados[4].
E sem dúvida que, nos presentes autos, todos os actos subsequentes dependem materialmente da primeira apreensão efectuada pelos agentes policiais. Sem esta, nenhum dos restantes se lhe seguiriam – assim, vide a propósito, Manuel Costa Andrade, Sobre o “efeito à distância” das proibições de valoração da prova, in Sobre as proibições de prova em Processo Penal. Coimbra Ed., 1992, pg. 312 a 318.
Passando agora à sede do estrito enquadramento jurídico-penal, atento o previsto em qualquer das modalidades tipicamente previstas pelo DL 15/93 de 22Jan é liminarmente manifesto que não se encontram preenchidos quaisquer dos elementos objectivos ou subjectivos dos mesmos, pelo que, nessa conformidade, não pode deixar de concluir-se pela absolvição dos arguidos do crime que lhes vem imputado.
Prescreve o art. 39º n.º 3 e 62º n.º 6 DL 15/93 de 22Jan que, as substâncias... incluídas nas tabelas I a IV são sempre declaradas perdidas a favor do Estado. Tal já resultaria de qualquer modo do previsto em idênticos termos pelos arts. 110º e 111º CP aqui aplicáveis por virtude do art. 48º DL 15/93.
Assim, nos termos dos referidos artigos cumpre declarar-se a perda a favor dos Estado de todo o produto estupefaciente - manifestamente perigoso e sem qualquer interesse, pela sua quantidade diminuta – que deverá ser destruído”.

10. Não concorda com esta decisão o recorrente.
O núcleo da sua argumentação, recorde-se, é a de que existe “erro de direito quanto á qualificação jurídica da actuação dos agentes da GNR, quando se deslocaram à estação de correios de Angra do Heroísmo e detectaram duas encomendas que haviam sido depositadas na estação de correios dos Restauradores e dirigidas à mãe do arguido João” , pois “Tal actuação cabe no âmbito duma actuação policial de prevenção do crime e determina mesmo a faculdade de detecção de correspondência de conteúdo criminoso, neste caso droga; sendo que tal legitimidade policial é plenamente consagrada no art. 249 n° 2 alínea c) do CPP”.
Na verdade, as demais questões suscitadas e acima (em 7.) referenciadas, são apenas e em bom rigor meras decorrências daquela ou outras formas de colocar a mesma questão.
Importa pois enfrentá-la, desde já.
10.1. Dispõe o referido artº 249º do CPP, sob a epígrafe “Providências cautelares quanto aos meios de prova”: “1 - Compete aos órgãos de polícia criminal , mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações, praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova. 2 - Compete-lhes, nomeadamente, nos termos do número anterior: a) Proceder a exames dos vestígios do crime, em especial às diligências previstas no artigo 171º, nº 2, e no artigo 173º, assegurando a manutenção do estado das coisas e dos lugares; b) Colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição; c) Proceder a apreensões no decurso de revistas ou buscas ou em caso de urgência ou perigo na demora, bem como adoptar as medidas cautelares necessárias à conservação ou manutenção dos objectos apreendidos.([5]) 3 - Mesmo após a intervenção da autoridade judiciária, cabe aos órgãos de polícia criminal assegurar novos meios de prova de que tiverem conhecimento, sem prejuízo de deverem dar deles notícia imediata àquela autoridade”.
Está em causa, dada a alegação do recorrente, a alínea c) do nº 2.
Nessa alínea prevêem-se “revistas” e “buscas”, no âmbito de “...actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova...”.
Mas nada disso sucedia aqui, como é bom de ver.
E o certo é que nada impedia as autoridades policiais de solicitar e logo obter a ordem judicial para a apreensão da correspondência que depois se obteve (cfr. fls. 31- 1ª parte), sendo certo que nenhuma urgência foi alegada ou se descortina que pudesse, de alguma forma, “justificar” a acção policial desenvolvida.
10.2. Acresce que nunca a pretensão de estar meramente em causa uma “actuação policial de prevenção do crime” poderia justificar a ofensa ou a obnubilação de direitos e garantias fundamentais.
Pensamos, com efeito, que esse não será sequer o entendimento do Digno recorrente.
Mas seria essa precisamente a consequência de este TRL dar guarida à tese do recurso: por ser eventualmente necessário garantir a expeditividade e a eficácia da acção policial, estar-se-ia a aceitar que esta se desenvolvesse, ao menos numa fase inicial, numa espécie de “terra de ninguém”, onde os direitos e garantias fundamentais poderiam estar temporariamente suspensas.
10.3. Ora, pensamos exactamente o contrário: as “Providências cautelares quanto aos meios de prova”, ou, como diz o recorrente, uma “actuação policial de prevenção do crime” têm de sujeitar-se à plena vigência das normas que regem aqueles direitos e garantias fundamentais([6]).
Isto é, as normas do artº 249º do CPP têm de conter-se nos limites gerais dos artºs 18º, 26º e 34º da CRP e dos que, na sequência, são depois particularmente delineados nas várias normas do CPP, que os concretizam.
Ora, designadamente no que tange às “ingerências” na correspondência, que a Constituição só admite nos “...casos previstos na lei em matéria criminal” – cfr. artº 34º, nº 4 da CRP – temos que, conforme bem se salienta na decisão recorrida, têm sempre de seguir-se as regras do artº 179º do CPP, sob pena de haver nulidade.
É que estando em causa o direito fundamental ao segredo das comunicações, deve associar-se o respectivo regime ao do das escutas telefónicas([7]), pelo que e desde logo, nos termos desta norma, “...a apreensão de correspondência está ..., sujeita, a um regime de catálogo...”, sendo só possível depois da devida autorização judicial e sendo que é necessariamente o juiz “...a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida...”.
10.4. No caso concreto, acresce ainda e finalmente que a correspondência em causa nem sequer era dirigida a qualquer dos arguidos mas sim a uma terceira pessoa.
Esta foi totalmente alheia à acção policial e não se vê que nela, de alguma forma, tenha consentido.
Assim sendo, a correcção da decisão recorrida mais se nos impõe.

11. Mas será que pode ser ultrapassada essa posição na base da posterior acção já legalmente desenvolvida, “...aquela que é representada pela apreensão de haxixe na residência indicada, verificando-se errada interpretação dos arts. 179 e 126 nº 3 ambos do CPP, uma vez que não se verifica a nulidade de violação de correspondência”, como defende o recorrente?
Manifestamente, não se pode ir por essa via.
Para além do que refere a propósito a própria decisão recorrida e que acima se transcreveu, temos que, a seguir-se tal rumo, estaria o poder judicial a incorrer em forte deslealdade, permitindo a inquinação do processo penal, onde deve garantir-se a plena igualdade de armas e o pleno respeito pelos direitos do arguido e demais sujeitos.
Na verdade, o conhecimento prévio e ilegítimo do conteúdo da correspondência foi a única causa da posterior acção policial, essa sim já judicialmente autorizada e por isso, em si mesma, legítima.
Mas subsiste sempre aquela primeira acção ilegítima.
Tem assim de considerar-se o que a doutrina apelida de “efeito à distância”, ou seja a extensão da proibição de valoração à prova depois obtida, na sequência e por causa da inicial e ilegitimamente recolhida.
O Prof. Manuel da Costa Andrade([8]), cuja doutrina nos merece todo o crédito, parece inclinar-se para a ideia geral de que só não se verificará aquele efeito – a proibição de valoração – “...quando o recurso aos processos hipotéticos de investigação permitiria seguramente alcançar o mesmo resultado probatório”.
Ora, manifestamente, nada disso se verifica no presente caso: como já se disse, só por via do acesso ilegítimo ao conteúdo da correspondência a polícia desencadeou depois a investigação por forma legítima e adequada.
Pode pois dizer-se de forma figurativa que as autoridades foram, “preguiçosamente”, pela via mais fácil, esquecendo que dessa forma ofendiam direitos fundamentais, sendo que o poder judicial não pode, manifestamente e sob pena de negar as suas características mais básicas, contemporizar com tais práticas, que são desleais e impróprias de um processo democrático, porque ofensivas de direitos básicos e gerais.

12. A pretensão de que existem “erro notório” e “contradição insanável” – o que apenas se constituía como uma outra forma de apresentação da questão fundamental e que, de qualquer forma, no texto da decisão se não evidenciam - está depois e por via de tudo o já dito claramente prejudicada.

III - Decisão.

13. Tudo ponderado, declara-se improcedente o recurso.
13.1. Sem tributação.
Lisboa, 23 de Junho de 2004
(António Rodrigues Simão)
(Carlos Augusto Santos de Sousa)
(Mário Armando Correia Miranda Jones)
(João Cotrim Mendes)
_______________________________________________
                    ([1]) Delimitado, como se sabe, no seu âmbito, pelas conclusões formuladas pelo recorrente (cfr. artºs 684º, nº 3 do CPC e 4º do CPP, Simas Santos e Leal Henriques “Recursos em Processo Penal”, 3ª edição, pág. 48 bem como Acs. do STJ de 16-11-95, in BMJ 451/279 e de 31-01-96, in BMJ 453/338).
[2] O direito à inviolabilidade de correspondência impõe-se quer nas relações Estado-individuo quer nas relações jurídicas privadas (relações horizontais), gozando de protecção constitucional (arts. 34ºnº 1, 26º nº 1, e 18º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa) - in. Ac. da Rel. de Lisboa de 29-6-1994 (R. 33 028)
[3] art. 122º CPP.
[4]  Nemo tenetur se ipsum accusare.
([5]) Redacção introduzida pela Lei Nº 59/1998, de 25 de Agosto
([6]) É que, como refere Manuel da Costa Andrade, a pág. 35 de, “Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal”, citando autor alemão, “...o princípio do Estado de Direito representa um baluarte contra o qual esbarram os interesses da perseguição penal”.
([7]) Cfr. Manuel da Costa Andrade, in “Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal”, pág. 278.
([8]) No já várias vezes citado “Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal”, págs. 61/66.