Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
829/11.4TFLSB.L1-9
Relator: CRISTINA BRANCO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
DECISÃO INTERCALAR
RECURSO
ADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/27/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO
Sumário: I - a admissibilidade de recurso, para o Tribunal da Relação, de decisões interlocutórias no processo contra-ordenacional, não sendo imposta constitucionalmente, estaria mesmo em oposição com a natureza deste tipo de processo onde impera a celeridade e menor formalismo.
II - estando em causa uma decisão interlocutória de natureza estritamente processual, a mesma é insusceptível de recurso para o Tribunal da Relação, impondo-se a rejeição do recurso, por inadmissibilidade legal, nos termos dos arts. 414.º, n.º 2, e 420.º, n.ºs 1, al. b), e 2, ambos do CPP.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 829/11.4TFLSB.L1

Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. Nos autos de contra-ordenação que, com o n.º 829/11.4TFLSB, correm termos na 3.ª Secção do 2.º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, “X... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”, identificada nos autos, impugnou judicialmente a decisão administrativa do Instituto de Seguros de Portugal que lhe aplicou, pela prática de 111 contra-ordenações, 108 (cento e oito) p. e p. pelos arts. 36.º, n.º 1, al. a), e 86.º, n.º 3, do DL n.º 291/07, de 21-08, e 3 (três) p. e p. pelos arts. 36.º, n.º 1 al. b), e 86.º, n.º 3, do mesmo diploma, em cúmulo jurídico, a coima única de € 44.890,00 (quarenta e quatro mil oitocentos e noventa euros).
2. Por despacho proferido no início da audiência de discussão e julgamento, em 31-05-2012, foi decidido considerar juridicamente inexistente a decisão da autoridade administrativa e determinar a remessa dos autos à mesma autoridade «para os fins que tiver por convenientes, nomeadamente, para proferir decisão juridicamente existente.»
3. Inconformada com essa decisão, interpôs a arguida o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição):
«1) A procedência do presente recurso é manifesta, porquanto o entendimento de que a omissão de concretização das condutas imputadas aos Arguidos, em sede de decisão condenatória contra-ordenacional, importa a nulidade daquela e, em consequência, o arquivamento dos autos, é o único que se mostra conforme à estrutura acusatória do processo contra-ordenacional, bem como aos princípios da lealdade, da legalidade e da equidade processuais e da certeza e segurança jurídicas; ou seja, é a única que se mostra compatível com as garantias de defesa da Arguida (Cfr. arts. 2.º, 41.º, 58.º, 62.º, do RGCO, e artº 2.º, 13.º, 20.º e 32.º, da CRP); Efetivamente,
2) Não obstante o artº 58.º, n.º 1, al. b), do RGCO não oferecer resposta quanto às consequências da omissão de "descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas", como sucedeu no caso vertente, as consequências da falta de concretização da decisão administrativa devem ser idênticas às daquela omissão em sede de acusação pública, que constitui o caso paralelo para efeitos de aplicação subsidiária, nos termos e para os efeitos do disposto no artº 41.º, do RGCO.
3) Desde logo, porque decorre do preceituado no artº 62.º, n.º 1, do RGCO, que, impugnada a decisão administrativa, este ato passa a valer como acusação, nos termos e para os efeitos do disposto no arte 283.º do CPP.
4) Valendo como acusação, a Decisão Administrativa fixa o objeto do processo contra-ordenacional, devendo, sob pena de nulidade, conter "a descrição dos factos imputados", "incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática" (Cfr. Artº 58.º, n.º 1, al. b), da RGCO, e 283.º, n.º 3, al. b), do CPP, aplicável ex vi artº 41.º, do RGCO).
5) Sendo que tem constituído entendimento assente e unânime da jurisprudência nacional que, verificando-se a nulidade da acusação, nos termos e para os efeitos do disposto no artº 283.º, n.º 3, al. b), do CPP, "Não pode, naquele caso, o juiz de instrução devolver o processo ao MP, para reformular a acusação declarada nula". (Cfr. Ac. da Relação de Lisboa de 30.01.2007, disponível in www.dgsi.pt)
6) Neste quadro legal e jurisprudencial, entende a Arguida que mal esteve o Tribunal a quo em remeter a decisão à Autoridade Administrativa, para reformulação, porquanto a nulidade por omissão do dever de circunstanciação da conduta imputada deve merecer a mesma censura e consequências jurídicas daquela nulidade em sede de acusação processual penal; pelo exposto deve aquela decisão ser revogada ordenando-se o arquivamento dos autos e a absolvição da Arguida.
7) Com efeito, não se vislumbra qualquer razão – ou base legal – que admita o tratamento desigual da acusação pública e, portanto, do Ministério Público, face à Decisão Administrativa e, portanto, à Autoridade administrativa, vedando ao Ministério Público a reformulação da acusação e admitindo essa reformulação pelas Autoridades Administrativas.
8) Dito de outro modo, para além de não ter qualquer suporte legal – em face do disposto no artº 62.º e 41.º do RGCO – o referido entendimento viola igualmente o elemento sistemático de interpretação da lei (artºs 9.º e 10.º, do CC);
9) De resto, a aplicabilidade dos princípios e garantias penais e processuais penais aos processos contra-ordenacionais para cujas infrações se preveem coimas bastante elevadas, tem sido imposta pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem desde, pelo menos, o Ac. Societé Stenuit c. França[1], onde o Tribunal atribuiu natureza materialmente penal às infrações às normas de Direito da Concorrência, por uma empresa privada, assim aplicando todas as garantias decorrentes do artº 6.º da CEDH.
Sem prescindir,
10) Mesmo admitindo-se que a solução do incumprimento do disposto no artº 58.º, n.º 1, al. b), do RGCO, deve ser achada nas normas relativas à sentença penal, ainda assim entende a Recorrente que o Tribunal a quo deveria ter arquivado os autos e ordenado a absolvição da Arguida, uma vez que a possibilidade de suprimento daquelas nulidades parte do pressuposto que o objeto do processo se encontra definitivamente fixado, por ato distinto e prévio.
11) E é seguramente por esse motivo que, no Ac. da Relação do Porto de 30.05.2005, disponível in www.dgsi.pt, em que se discutia um caso em tudo semelhante ao dos presentes autos, não obstante a aplicação subsidiária das regras relativas à sentença penal, se concluiu pela absolvição da Arguida e se ordenou o arquivamento dos autos.
Sem conceder,
12) Concluindo-se pela inexistência de decisão, como conclui o Tribunal – e pelos motivos por que o faz, ou seja, pela violação do princípio do decisor natural –, caberia aplicar o disposto no artº 119.º seja por recurso à alínea b), seja por recurso à alínea e), e, com isso arquivar os autos, por padecerem de nulidade insanável. Esta é a única interpretação compatível com os artºs 2.º e 41.º do RGCO e artº 13.º da CRP.
13) Donde, deveria o Tribunal a quo ter concluído pela absolvição da Arguida, na medida em que a reformulação da Decisão Condenatória não é legalmente admissível, por força do disposto no artº 379.º, n.º 1, al. b), do CPP.
Termos em que deverá ser dado integral provimento ao presente recurso; e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida, absolvendo-se a Arguida e arquivando-se os autos.»
4. Na sua resposta, o Ministério Público junto do Tribunal recorrido pugnou pela parcial procedência do recurso, nos termos da peça processual que constitui fls. 1844-1856, da qual, na ausência de conclusões, se extrai o seguinte segmento conclusivo:
«Pelas razões expostas defendemos que inexiste qualquer vício que possa ser assacado à decisão administrativa, motivo pelo qual não devem os autos ser remetidos à entidade administrativa, mas ao invés deverá ser realizado o competente julgamento, proferindo-se a final sentença em conformidade.
Sintetizando, julgando parcialmente procedente o recurso interposto pela recorrente, revogando-se o despacho que determinou a remessa dos autos à entidade administrativa e determinando-se, consequentemente a apreciação do recurso da decisão administrativa interposto pela recorrente/arguida, V. Ex.as farão a costumada e habitual, JUSTIÇA!»
5. O recurso foi admitido, em 24-04-2013, por despacho de fls. 1890 dos autos, na sequência de deferimento de reclamação do despacho que não o admitiu.
6. Nesta Relação, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu parecer, conforme consta de fls. 1896, sufragando a posição assumida pelo Ministério Público na 1.ª instância e pronunciando-se pela parcial procedência do recurso.
7. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, apresentou a recorrente a resposta que constitui fls. 1898-1903, na qual chama a atenção para a delimitação do objecto do recurso fixado nas suas conclusões e para o facto de a decisão recorrida na parte referente ao incumprimento, pela autoridade administrativa, do disposto no art. 58.º do RGCO, ter transitado em julgado.
8. Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
*
II. Fundamentação
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Em processo contra-ordenacional, o Tribunal da Relação conhece apenas da matéria de direito (art. 75.º, n.º 1, do DL n.º 433/82 de 27 de Outubro, adiante RGCOC), sem prejuízo do conhecimento oficioso relativamente aos vícios previstos no art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP.
A única questão que a recorrente coloca consiste em saber se, tendo a decisão recorrida concluído pela inobservância, por parte da decisão administrativa, do disposto no art. 58.º do RGCOC, com a consequência da inexistência jurídica da decisão, poderia ter remetido os autos à autoridade administrativa, para reformulação da decisão, ou deveria, pelo contrário, ter determinado o arquivamento dos autos ou absolvido a recorrente.

Antes, porém, importará apreciar a questão prévia da (ir)recorribilidade da decisão.

Para tanto, vejamos, antes de mais, qual o teor da decisão recorrida, na parte que ora importa (transcrição):
«(…)
O Tribunal é o competente, o processo é o próprio.
Foi proferido o despacho de fis. 1674, dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, tendo sido deduzida oposição à decisão do presente recurso através de despacho judicial, pelo que foi designada data para julgamento.
Suscita-se, do compulsar dos autos, a seguinte invalidade:
A arguida/recorrente terá sido condenada pelo Instituto de Seguros de Portugal, pela prática de 111 contra-ordenações, 108 previstas e punidas pelos artigos 36º, nº 1, alínea a) e 86º, nº 3, do Dec.-Lei nº 291/07, de 21/08 e 3 previstas e punidas pelos artigos 36º, nº 1, alínea b) e 86º, nº 3, do Dec.-Lei nº 291/07, de 21/08, em cúmulo jurídico, ao pagamento da coima única no valor de €44.890.00.
A referida decisão de fls. 1137 a 1139, dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, é antecedida de um parecer de fls. 1095 a 1135, dos autos, cujo teor aqui damos por integralmente reproduzido, referindo-se a decisão, em relação ao parecer, com a expressão de “Concordamos”.
Importa analisar, em primeira mão, da validade de tal decisão:
Dispõe o nº 1, do artigo 58º, do DL nº 433/83, de 27/10, na redacção dada pelo DL nº 244/95 de 14/09, que a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter a identificação dos arguidos, a descrição do facto imputado, com indicação das provas obtidas, a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão, bem como a coima e as sanções acessórias.
Ora, da análise da decisão, dos autos, constata-se que a mesma carece dos requisitos estabelecidos na alínea b) do nº 1, do já referido artigo 58º, do R.G.C.O..
Face a estas exigências formais prescritas por lei, a decisão condenatória não se pode limitar, como se verifica no caso presente, a um despacho onde se refere que, de acordo com o parecer, com o qual se concorda, se condena a arguida, ou seja, a um despacho tecnicamente de “concordo”, reportando-se ao parecer de fls. 1095 a 1135, dos autos.
A decisão dos autos identifica a arguida e indica as normas violadas e a coima única aplicada.
Dado o disposto no nº 1, alínea b), do citado artigo, a decisão condenatória deve especificar, para além da identificação dos arguidos, quais os factos que considera provados e a fundamentação da decisão de facto, com indicação das provas obtidas.
Por outro lado, atento o disposto na alínea c), do nº 1, do artigo 58ºº, do R.G.C.O., além da indicação das normas segundo as quais se pune, importa fundamentar a decisão, não só de direito – o porquê da aplicação daquelas normas gerais e abstractas, ao caso concreto da arguida – mas também quanto à medida concreta da coima e aplicação e medida de eventuais sanções acessórias – a justificação da medida da coima.
É a decisão que deve conter estes elementos, independentemente, de no parecer que o antecede eles constarem, ou não.
Mais, a decisão da entidade administrativa competente não pode nem deve traduzir-se numa adesão a uma opinião de um funcionário (cuja competência não está em causa) que carece de competência decisória.
Importa um pequeno bosquejo quanto a esta questão.
Efectivamente, a prática pela administração de decisões deste tipo radicam no procedimento administrativo. De facto, é claro o processado de fls. 1095 a 1135, dos autos, consubstanciando o processado que se traduz na emissão de relatório do instrutor do processo, nos termos do disposto no artigo 105º, do Código de Procedimento Administrativo (C.P.A.), seguido por uma decisão que faz sua a fundamentação e proposta de decisão do relatório, traduzindo-se num mais ou menos completo “concordo”, tão comum na Administração Pública.
Em primeira mão tal implica, como já referimos supra, que os juízos de valor sobre todas (quando são todas e não apenas algumas) as matérias referidas no nº 1, do artigo 58º, do R.G.C.O., sejam emitidos por um agente administrativo incompetente para a decisão. Em segunda mão, que o agente competente paute o seu juízo pela sensibilidade e ponderação alheias.
Tal em direito administrativo pode ser defensável – discutível, em certos casos, que é, tendo o Professor Marcello Caetano, no seu “Manual de Direito Administrativo”, Vol. I, pág. 459 e ss., referido que: “A fundamentação exerce, no acto resultante do exercício de poderes vinculados, o mesmo papel que na sentença: mostra como os factos provados justificam a aplicação de certa norma e a dedução de determinada conclusão, esclarecendo o objecto do acto.
(...) Quando uma autoridade concorda com um parecer ou com uma informação, em que se propõe determinada solução para o caso vertido, esse despacho de concordância apropria-se das razões do parecer ou da informação, cujos fundamentos ficam, desde então, sendo os seus.
(...) Os motivos são as razões por que o órgão administrativo tomou certa decisão, e podem consistir em fundamentos de facto ou de direito.
(...) Quando haja obrigação de fundamentar, o órgão competente tem de fazer a especificação concreta dos motivos, havendo vício de forma se se limitar a dizer que se baseia nos fundamertos constantes do processo”.
Em direito contra-ordenacional tal é, em absoluto, inadmissível.
Não só o legislador elencou requisitos mínimos da decisão condenatória – imperativamente referidos no artigo 58º, do R.G.C.O. – como a remessa do direito contra-ordenacional para o penal - artigo 41º, do R.G.C.O. – toma impossível a decisão final por remissão para seja o que for (parecer, informação, jurisprudência, decisão semelhante anterior, etc.).
Por outro lado, a decisão condenatória consubstancia-se num acto, a responsabilidade da autoridade administrativa não pode nem deve ser repartida. Trata-se de um acto, eminentemente, jurisdicional, inscrito no âmbito da competência própria de um órgão decisor que não pode (excepto em casos legalmente previstos como é o caso da delegação de poderes) dissipar tal poder por agentes e órgãos da administração em termos de decisão final. O arguido terá, assim, direito ao princípio do “decisor” natural – proibindo-se o desaforamento da competência ou a criação de “decisores” ad hoc para certas matérias, casos ou arguidos.
Tal é tanto mais verdade que não são admissíveis nem sequer cogitáveis, sentenças proferidas por órgãos jurisdicionais por “concordo”.
Efectivamente, confrontada com a difícil tarefa de decidir, a autoridade administrativa, tal como o Juiz, não podem remeter cegamente para o auto de notícia, acusação, relatório, parecer, alguma peça de douta jurisprudência ou qualquer outra peça processual.
Não pode, assim, a decisão objecto de impugnação ser apreciada pelo Tribunal, uma vez que a mesma não contém elementos que a lei reputa como fundamentais, limitando-se a remeter para uma proposta de decisão (Parecer) o que, igualmente, a entidade administrativa também não pode fazer.
A inobservância do disposto no referido artigo 58º, nos termos dos artigos 118º nº 1 e 123º, ambos do C.P.P., constitui o vício de inexistência jurídica – ver a esse propósito António Beça Pereira, R.G.C.O. anotado, pág. 105 (anotação ao artigo 58º).
Assim e, porque inexiste decisão da Autoridade Administrativa (existe uma proposta de decisão – ela própria, como referimos supra, incompleta – de entidade incompetente para proferir decisão e um despacho inválido – juridicamente inexistente -, em absoluto, por parte do órgão competente para proferir decisão), uma vez que não contém os elementos exigidos naquele normativo, após trânsito, remeta os autos ao Instituto de Seguros de Portugal para os fins que tiver por convenientes, nomeadamente, para proferir decisão juridicamente existente.
Sem custas, por não serem devidas.
Notifique, deposite e, após trânsito, remeta.
D.n.»

O regime dos recursos de decisões proferidas em 1.ª instância, em processo de contra-ordenação, está definido nos arts. 73.º a 75.º do referido RGCOC, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27-10, com as alterações introduzidas pelos DL n.ºs 356/89, de 17-10, 244/95, de 14-09, 323/2001, de 17-12, e pela Lei n.º 109/2001, de 24-12, sendo que, de acordo com o art. 41.º, n.º 1, de tal diploma, o CPP constitui seu direito subsidiário.
No entanto, contrariamente ao que sucede no regime penal (art. 399.º do CPP), em matéria contra-ordenacional vigora o princípio da irrecorribilidade das decisões, tendo em conta, por um lado, a natureza dos ilícitos de mera-ordenação social e o carácter eminentemente económico das coimas dependentes da sua prática e, por outro, que as garantias de controlo da legalidade processual assim se protegem suficientemente, pelo que apenas nos casos expressamente previstos cederá, versando em sentença ou despacho que ponham termo ao processo, ressalvada a excepção quanto ao recurso da não aceitação da impugnação judicial (arts. 63.º, n.º 2, e 73.º, n.º 1, al. d), do RGCOC).
Esses casos, previstos expressamente, constam do elenco do n.º 1 desse art. 73.º e não admitem interpretação que vá para além deles.

Analisado o despacho recorrido, verificamos que o mesmo se limitou a determinar o envio do processo à autoridade administrativa, com vista a suprir a omissão de factos e outros elementos que entende ali não constarem.
Ora, não estando manifestamente em causa nenhuma das situações previstas nas als. a), b), d) e e) do n.º 1 do art. 73.º do RGCOC, também há que considerar que tal decisão não se enquadra de forma alguma na previsão da sua al. c), pois que não está em causa uma qualquer situação de “absolvição da arguida”, antes sim a mera declaração de nulidade/inexistência de uma decisão, que pode vir a ser refeita (com o colmatar dos vícios detectados) e implicar nova decisão, pelos mesmos factos, contra a arguida.

E da conjugação dos n.ºs 1 e 2 do referido art. 73.º resulta que o recurso, ao abrigo do estabelecido no n.º 2 deste preceito, só é admissível no tocante a sentença – ou, segundo o entendimento de alguma jurisprudência, de despacho que tenha sido proferido nos termos do art. 64.º, o que significa que tem de pôr termo ao processo, podendo ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação (n.º 3 desse art. 64.º).

Na verdade, todos os casos aludidos no n.º 1 do art. 73.º se reportam a situações de decisão final, à excepção do específico da sua alínea d) – rejeição da impugnação -, já previsto, como referido, no art. 63.º e, quando no seu n.º 2 se estabelece para além dos casos enunciados no número anterior, isso tem de interpretar-se como excluindo esses casos, mas já não o de se destinar a sentença proferida nos termos indicados.

Embora salvaguardando a faculdade desse recurso perante a excepcionalidade das situações a que se destina, revela-se que a atribuição da mesma alargada a outras decisões que não ponham termo ao processo colide com a geral restrição em matéria de recorribilidade e não se justifica, dadas as suas importantes finalidades, para decisões sem a característica de decisões finais.

No sentido de que a situação de anulação da decisão da autoridade administrativa não é passível de recurso enquadrável na al. c) do n.º 1 do art. 73.º do RGCOC, veja-se, designadamente, o acórdão desta Relação de Lisboa de 13-02-2007 (Proc. n.º 101/2007-5, em que foi Relator o Exmo. Senhor Juiz Desembargador Dr. Vieira Lamim, in www.dgsi.pt), donde se destaca o seguinte passo:
«Em manifesto contraponto com o Código Processo Penal- art. 399, onde vigora, como princípio geral, a regra de que é permitido recorrer das decisões cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei, o R.G.C.O. adopta princípio de sinal contrário, possibilitando o recurso apenas nos casos expressamente consagrados- art.73.
Já tendo os factos sido objecto de um processo perante a autoridade administrativa, relativamente ao qual a lei assegura plenas garantias de defesa, e tendo sido interposto recurso da decisão proferida, no termo do processo, cuja apreciação foi feita por um tribunal com todas as garantias inerentes ao processo judicial, compreende-se e aceita-se que se restrinja o direito ao recurso para o Tribunal da Relação[1].
Perante as várias alíneas do nº1, do art.73, é manifesto que o caso dos autos não cabe na previsão das alíneas a,b, e d, que prevêem situações em que só ao acoimado é possível recorrer; nestas hipóteses o direito de recorrer tem um recorte garantístico, daí que só o condenado possa recorrer ou então, o Ministério Público no exclusivo interesse e em benefício da defesa, art.411, nº1 al.a, do Código Processo Penal. Também não ocorre a previsão da alínea e, uma vez que o tribunal decidiu mediante audiência de julgamento.
A alínea c, prevê os casos em que o arguido for absolvido ou o processo arquivado, pugnando o Ministério Público pela condenação, o que não é o caso dos autos, uma vez que o tribunal não se decidiu pela absolvição nem pelo arquivamento, mas antes pela nulidade da decisão da autoridade administrativa com devolução a esta do processo para repetição da decisão.»
No mesmo sentido – o de que a anulação da decisão da autoridade administrativa, proferida na sentença da 1.ª instância e que determina a remessa do processo a tal entidade para, querendo, proferir nova decisão administrativa com obediência aos requisitos constantes do art. 58.º, n.º 1 do DL n.º 433/82 não se enquadra na previsão do art. 73.º, n.º 1, al. c) do RGCOC, não sendo por isso passível de recurso para o Tribunal da Relação - veja-se a decisão de 16-06-2011, proferida no Proc. n.º 1458/09.8TYLSB-A.L1-5 (ibidem) pelo Exmo. Senhor Juiz Desembargador, Dr. Sousa Pinto, em sede de Reclamação e na qualidade de Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa.
Ainda neste sentido – e para além da generalidade da jurisprudência –, tomaram posição expressa Oliveira Mendes e Santos Cabral, in Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 2003, págs. 186-187, Simas Santos/Lopes de Sousa, in Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, Vislis, 2006, pág. 477, e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações, UCE, Lisboa 2001, pág. 301.

Sempre se dirá, ainda, que, no caso dos autos, o Tribunal, em face da oposição da arguida à decisão através de simples despacho, nos termos do art. 64.º, n.º 1, do RGCOC, determinou a realização do julgamento, tendo designado dia para o efeito e apenas mais tarde, por despacho avulso, entendeu devolver os autos à autoridade administrativa.
Daqui se pode concluir, seguramente, não estarmos perante uma situação enquadrável no âmbito do referido art. 64.º.
E também não estamos perante uma sentença, pois que, na lição de Anselmo de Castro (in Lições de Processo Civil, 1966, 3.º, pág. 154), esta é a aquela que decide, no todo ou em parte, o objecto do litígio, obstando assim a que a matéria litigiosa apreciada na decisão seja novamente apreciada na mesma instância. Será parcial, quando se limite a uma parte individualizada susceptível de apreciação especial - o que apenas poderá acontecer quando a pretensão seja divisível em várias partes – ou quando incide apenas sobre uma das várias pretensões.

Em síntese conclusiva, a admissibilidade de recurso, para o Tribunal da Relação, de decisões interlocutórias no processo contra-ordenacional, não sendo imposta constitucionalmente, estaria mesmo em oposição com a natureza deste tipo de processo onde impera a celeridade e menor formalismo.
Estando em causa, como está, uma decisão interlocutória de natureza estritamente processual, a mesma é insusceptível de recurso para este Tribunal, impondo-se a rejeição do recurso, por inadmissibilidade legal, nos termos dos arts. 414.º, n.º 2, e 420.º, n.ºs 1, al. b), e 2, ambos do CPP.

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III. Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal da Relação de Lisboa em rejeitar o recurso interposto pela arguida, “X... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”, por inadmissibilidade legal.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs, a que acresce igual quantia a título de legal sanção pela rejeição (art. 420.º, n.º 3, do CPP).
Notifique.
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(Certifica-se, para os efeitos do disposto no art. 94.º, n.º 2, do CPP, que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, a primeira signatária)
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                                                     Lisboa,  27.03.2014
                                                     Cristina Branco
                                                     Ana Filipa Lourenço

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[1] Disponível in www.echr.coe.int