Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6139/11.0ECLSB-C.L1-9
Relator: TRIGO MESQUITA
Descritores: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
CONTRA-ORDENAÇÃO
CONEXÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/08/2014
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Decisão: ATRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA
Sumário: I - O processo de contra-ordenação no seu início é meramente administrativo e que só se torna judicial se o arguido pretender impugnar a decisão proferida na fase administrativa.
II - Na fase administrativa do processo, nem o auto de notícia, nem a posterior notificação para apresentação da defesa, no domínio da fase administrativa do processo de contra-ordenação equivalem à acusação em processo crime.
III - É a apresentação pelo M.P. ao juiz dos autos provenientes da autoridade administrativa que equivale à acusação. É este o momento em que a autoridade judiciária adquire a notícia do crime.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:                   Conflito de Competência

                   Nuipc. 6139/11.0ECLSB-C.L1

                  I.

                  Suscita-se nos presentes autos a resolução de um conflito negativo de competência que opõe os Mmos. Juizes do 2.º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, da l.ª e 2.ª Secção, respectivamente, porquanto ambos se atribuem mutuamente competência para tramitarem o processo em epígrafe e o Proc. N° 1604/10.9ECLSB, assentando a respectiva divergência, em suma, no facto de se atribuírem mutuamente a competência territorial dos respectivos tribunais.

                   Os despachos cujo conflito há que dirimir e que aqui se dão por reproduzidos, são os seguintes:

                  a)      O despacho datado de 28.02.2014 , proferido pela Mma. Juiz da 2.ª Secção (certificado a fls.62 a 64) - conclui que a aquisição da notícia do crime, como prescreve o art° 241.º, do C.P.P. se determina no momento em que o M.ºP.º dele toma conhecimento pelo que " a acção penal se inicia no momento em que o facto criminoso chega ao conhecimento da autoridade judiciária com competência para exercer a acção penal; tratando-se de processos contra-ordenacionais a notícia adquire-se junto da autoridade administrativa competente, fazendo uma assimilação da autoridade administrativa ao conceito de autoridade judiciária.

                  b)      O despacho datado de 28.03.2014, proferido pelo Mmo. Juiz da 1.ª Secção (certificado a fls. 56 a 59) - defende que tal momento se iniciaria aquando da elaboração do auto de notícia.

                   Ambos os despachos transitaram em julgado gerando-se um conflito negativo de competência (art. 34º, nº 1 CPP).

                   Neste Tribunal foi cumprido o art. 36º, nº 1 CPP.

                  A Ilustre procuradora-geral adjunta pronunciou-se emitindo parecer que aqui se dá por reproduzido.

                   II.

                   De acordo estão os conflituantes de que será competente o tribunal da área onde primeiro tiver havido a notícia de qualquer das contra-ordenações.

                  As contra-ordenações não respeitam à tutela de bens jurídicos ético-penalmente relevantes, mas apenas e tão-só à tutela de meras conveniências de organização social e económica e à defesa de interesses da mais variada gama, que ao Estado incumbe regular através de uma actuação de pendor intervencionista, impondo regras de conduta nos mais variados domínios de relevo para a organização e bem-estar social. Estas normas, ditas de mera ordenação social, têm a sua tutela assegurada através da descrição legal de ilícitos que tomam o nome de contra-ordenações, cuja violação é punível com a aplicação de coimas, a que podem, em determinados casos, acrescer sanções acessórias.

                  A execução da vertente sancionatória pressupõe um processo previamente determinado, de pendor não tão marcadamente garantístico como o processo penal mas que assegure, ainda assim, os direitos de audiência e de defesa (arts. 32.º, n.º 10, da CRP e art. 50.º do RGCO).

                   Para essa finalidade, o legislador adoptou um procedimento consideravelmente mais simplificado e menos formal do que o processo penal, cujo quadro geral consta dos arts. 33.º e ss. do RGCO.

                  Trata-se de um processo que no seu início é meramente administrativo e que só se torna judicial se o arguido pretender impugnar a decisão proferida na fase administrativa.

                  O processo de contra-ordenação tem duas fases: uma fase organicamente administrativa (artigos 33.º e seguintes do RGCORD) e uma fase judicial facultativa (artigos 59.º e seguintes do RGCORD), que contempla o julgamento e o eventual recurso para o Tribunal da Relação.

                  Na fase administrativa prevê-se, apenas os direitos de audição e de defesa do arguido antes de lhe ser aplicada uma coima ou uma sanção acessória (cf. artigo 50.º do RGCORD).

                   Esta é a organização legal do processo de contra-ordenação que não contempla uma fase de inquérito, equivalente ao processo criminal.

                   Do mesmo modo, note-se que depois de deduzida acusação o arguido em processo de contra-ordenação também não pode requerer a abertura de instrução (alegando a aplicabilidade dos artigos 286.º e seguintes do CPP). Tanto o inquérito como a instrução são fases do processo penal não previstas nem aplicáveis aos processo de contra-ordenação.

                  Efectivamente, “(…) a garantia constitucional dos direitos de audiência e de defesa em processo contra-ordenacional (n.º 10 do artigo 32º da Constituição) não pode comportar a consagração de um princípio da estrutura acusatória do processo idêntico ao que a Constituição reserva, no n.º 5 do artigo 32º, para o “processo criminal”, como, ainda – e, numa certa perspectiva, decisivamente –, a posição do arguido está garantida pela possibilidade de recurso jurisdicional.” - Acórdão n.º 581/04, de 28/09/2004, do Tribunal Constitucional.

                  A solução perfilhada pela lei é equilibrada, no plano legislativo e constitucional, porquanto as autoridades administrativas não são Tribunais, o processo de contra-ordenação, na fase administrativa, não é dirigido pelo Ministério Público, a decisão condenatória não é proferida por um juiz e as testemunhas não são ajuramentadas (cf. artigos 33.º e 44.º RGCORD).

                  Em todo o caso, das decisões das autoridades administrativas que apliquem uma coima podem os arguidos recorrer (em recurso de plena jurisdição) para os Tribunais (cf. artigo 59.º/1 do RGCORD), nos quais vigora, na fase judicial dos processos de contra-ordenação, um processo de estrutura acusatória.

                  Acima ficaram expostas as razões pelas quais, atendendo à diferença axiológica e estrutural dos regimes, não é de aplicar aos processos de contraordenação o disposto no artigo 262.º/2 do CPP. Acresce que, in casu, o RGCORD já dispõe de norma própria que trata e regula o tema, o que afasta a aplicação de lei subsidiária.

                   Com efeito, o artigo 54.º do RGCORD:

                  a) no seu n.º 1 esclarece que as actividades fiscalizadoras nem sequer integram o processo de contra-ordenação; e

                  b) no seu n.º 2 estabelece que em contra-ordenação pode haver “investigação” (quando necessário) mas não “inquérito”.

                  O artigo 54.º/2 do RGCORD dita (apenas) que a autoridade administrativa procederá à sua investigação e instrução, finda a qual arquivará o processo ou aplicará uma coima., pelo que o referido artigo não dispõe, como faz o artigo 262.º/2 do CPP, que a notícia de uma infracção dá sempre lugar à abertura de inquérito.

                   Como se disse, trata-se de um processo que no seu início é meramente administrativo e que só se torna judicial se o arguido pretender impugnar a decisão proferida na fase administrativa.

                   E, na fase administrativa do processo, nem o auto de notícia, nem a posterior notificação para apresentação da defesa, no domínio da fase administrativa do processo de contra-ordenação equivalem à acusação em processo crime. Expressamente dispõe o art. 62.º, n.º 1, parte final, do RGCO, que é a apresentação pelo M.P. ao juiz dos autos provenientes da autoridade administrativa que equivale à acusação. É este o momento em que a autoridade judiciária adquire a notícia do crime.

                  Por todo o exposto, será competente para jugar as contra-ordenações em conexão o Tribunal onde o Ministério Público introduziu a impugnação em juízo em primeiro lugar - Processo n.º 6139/11.0ECLSB, introduzido em juízo pelo M.ºP.º em 02.12.2013 e distribuído do 2.º Juízo, 1.ª secção e autuado em 05.11.2013.

 

                   III.

                  Decide-se por isso, dirimir o conflito negativo atribuindo a competência para a tramitação         dos processos em conexão ao  Processo n.º 6139/11.0ECLSB, distribuído do 2.º Juízo, 1.ª secção.

                   Sem tributação.

                   Cumpra o art. 36.º, n.º 3 CPP.

                   Lisboa, 08 de Julho de 2014

  Elaborado e computador e revisto pelo signatário – TRIGO MESQUITA.