Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3488/05.0TVLSB-B.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: INSOLVENTE
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/12/2021
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE
Sumário: I - Estando em causa um crédito pertencente à massa insolvente, só o AI é que pode intentar uma acção com vista à sua cobrança (art. 81/1-2-4 do CIRE).
II - Não tem fundamento legal deixar-se ao insolvente a possibilidade de intentar acções de cobrança de créditos da massa insolvente (neste sentido, por exemplo, o ac. do TRL de 11/05/2017, proc. 6490-12.1T2SNT-C.L1-6; contra, sem razão, vai o ac. do STJ de 10/12/2019, proc. 5324/07.3TVLSB-A.L1.S1).
III – Pelo quer o mandato, quer a procuração, para cobrança de tais créditos, caducam com a declaração de insolvência (arts. 110/1 e 112/1 do CIRE), ou são ineficazes quanto à massa insolvente se tiverem sido atribuídos depois da declaração (art. 81/6 do CIRE).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

AA, advogado, intentou a 14/06/2018 uma acção comum para condenação de RR-Lda, a pagar-lhe honorários por serviços forenses que lhe prestou.
Fá-lo por apenso a uma acção iniciada por ré, representada por ele, em 17/11/2005 e cuja sentença transitou em julgado em 24/11/2011 (certidão de 09/12/2011), tendo visto de correição de 11/05/2012.
Na acção o autor não diz em que data prestou os serviços, mas a ré, na contestação, fá-lo especificando que esses serviços respeitam a três acções distintas, uma delas sendo aquela a que esta acção foi apensada, como já descrito. As outras duas acções são, segundo a ré, a do processo 0000/1993 da 13ª vara da 3ª secção do Tribunal cível de Lisboa (terminou por transacção realizada em 02/02/1994 e homologada por sentença na mesma data, pelo que cessou ai o patrocínio do autor) e a do processo 111/95 da 6ª vara -3ª secção do Tribunal de Lisboa (no mínimo desde 21/03/2002 que se encontra encerrado atento que no mesmo se pedia o reconhecimento de que a loja 00 da Rua T em Lisboa pertencia a RR-Lda, e que a dita loja foi entregue a esta sociedade em 21-03-2002, pelo que no mínimo desde essa data que cessou o patrocínio do autor nesse processo).
Notificado para responder à matéria da excepção, o autor veio fazê-lo, sem pôr em causa os factos alegados na parte transcrita acima, alegando outros que funcionariam como interrupção da prescrição.
Na audiência prévia de 18/10/2019, foi proferido o seguinte despacho, na parte que importa:
Cumpre concretizar o autor, na sua petição inicial, os honorários respeitantes a cada uma das acções por si identificadas na nota de honorários junta como doc.2, a saber processo 3488/05.0TVLSB da 9ª Vara Cível de Lisboa; processo 000[/93] da 13ª Vara, 3ª Secção Cível de Lisboa e o processo 111/95 da 6ª Vara, 3ª secção do Tribunal Cível de Lisboa.
Assim convida-se o autor a aperfeiçoar a petição inicial, em vinte dias, devendo individualizar cada um dos processos, devidamente identificados, relativamente aos honorários e despesas tidas em cada um deles, sob pena de indeferimento liminar da petição inicial, por manifesta insuficiência da causa de pedir.
O autor fê-lo e na petição corrigida reporta os honorários aos serviços prestados por causa daquelas três acções, não pondo em causa que tenha sido naquele período indicado pela ré.
Na nova contestação apresentada, a ré, no final, faz o seguinte requerimento: requer ainda ao abrigo do disposto no artigo 429 do CPC, devidamente conjugado com o artigo 417 do mesmo CPC, que o autor seja notificado para vir juntar aos autos a sua declaração de rendimentos respeitante ao ano de 2017 a fim de se provar que o mesmo não emitiu qualquer factura no valor que aqui peticiona.
No despacho saneador deferiu-se aquele requerimento de prova, determinando-se a notificação do autor nos termos do mesmo para juntar o aí solicitado.
A 02/07/2020, o autor veio dizer que não apresenta desde 2012 declaração de rendimentos atenta a sua declaração de insolvência que corre termos pelo juízo local cível de Lisboa, juiz 2, proc. 0000/12.0TJLSB.
Na resposta a este requerimento, a ré, a 07/07/2020 disse, entre o mais:
[…] traz agora o autor um facto novo ao presente processo, o qual apenas corrobora os factos alegados pela ré na sua contestação, e que consiste na sua declaração de insolvência, a qual atento o número do processo datará do ano 2012.
Assim e antes de mais, pode o autor não ter sequer legitimidade para, por si, propor a presente acção, uma vez que certamente existe uma massa insolvente e um administrador de insolvência nomeado.
Sendo que a divida que o autor reclama se existisse, o que apenas se admite por mero dever de patrocínio, sempre teria de ser anterior a 03/06/2014, data em que o autor deixou de exercer a advocacia, por ter visto cancelada a sua inscrição na Ordem dos Advogados [….] cfr. doc.1 que aqui se junta.
E também teria de ser anterior a 20/01/2012, data a partir da qual o autor esteve suspenso do exercício da advocacia por […] cfr. doc.2 que aqui se junta 9.
Pelo que se existisse qualquer divida, o que mais uma vez apenas se concebe por mero dever de cautela e patrocínio, a mesma seria atento o supra exposto, obrigatoriamente anterior à declaração de insolvência do autor e como tal seria um crédito da massa insolvente.
E caberia ao AI assumir a representação do insolvente, aqui autor, nos termos do disposto no artigo 81/4 do CIRE.
Até porque qualquer pagamento de dívidas à massa, efectuado ao insolvente após a sua declaração de insolvência não seria liberatório para a ré, nos termos do art. 81/7 do CIRE.
[…]
Se tal crédito existisse o autor teria de ter obrigatoriamente comunicado o mesmo ao Sr. AI.
Sendo que não o tendo feito, hipoteticamente e caso tivesse requerido a exoneração do passivo restante, tal teria graves consequências, nomeadamente a não concessão da exoneração.
O que decerto o autor não arriscaria.
Assim deverá o autor ser notificado para juntar aos autos certidão da sentença da sua declaração de insolvência, com data de trânsito em julgado e onde conste o estado do processo e bem assim se o insolvente beneficiou ou não da exoneração do passivo restante.
Termos em que deve o autor ser notificado para juntar aos autos certidão negativa respeitante à dispensa de entrega de IRS desde 2012 até 2017 e bem assim certidão da sentença da sua declaração de insolvência, com data de trânsito em julgado e onde conste o estado do processo e bem assim se o insolvente beneficiou ou não da exoneração do passivo restante.
A 08/07/2020, foi proferido o seguinte despacho:
Antes do mais, deverá o autor juntar certidão com nota de trânsito da sentença que decretou a sua insolvência onde conste o estado do processo e se o requerente aqui autor beneficiou ou não da exoneração do passivo restante. Mais se deve juntar certidão negativa respeitante à dispensa de entrega de IRS conforme o mesmo alegou. Prazo: 10 dias.
A 05/08/2020, o autor apresenta uma certidão (de 20/07/2020) relativa àquela processo donde consta, entre o mais:
Certifica que neste tribunal e juízo correm termos uns de insolvência pessoal singular (requerida), sob o n.º 0000/12.0TJLSB, em que é insolvente [o autor…], a qual foi apresentada em juízo a 06/09/2012.
Certifica-se ainda que a sentença proferida nos presentes autos transitou em julgado em 02/08/2013.
Mais certifica que […] não foi proferido despacho de exoneração do passivo restante, encontra-se a aguardar o desfecho do apenso V – liquidação do activo; o apenso V […] encontra-se a aguardar que o AI informe do estado das diligências efectuadas; o apenso T – recurso de revisão, já baixou, tendo sido julgado improcedente o recurso de revisão       
A 18/08/2020, a ré vem dizer, entre o mais, que:
No que respeita à certidão do processo de insolvência constata-se que o autor foi declarado insolvente por sentença transitada em julgado em 02/08/2013. Sendo que o processo de insolvência ainda não se encontra encerrado, encontrando-se em fase de liquidação. Deste modo, o autor não tem sequer legitimidade para, por si, propor a presente acção, uma vez que existe uma massa insolvente e um AI nomeado, ou seja o Dr. Jorge Fialho Faustino. E cabe ao senhor AI assumir a representação do insolvente, aqui autor, nos termos do disposto no artigo 81/4 do CIRE.
Até porque conforme já se alegou, qualquer eventual pagamento de dívidas à massa, efectuado ao insolvente após a sua declaração de insolvência não seria liberatório para a ré, nos termos do artigo 81/7 do CIRE.
Ora o autor, tendo em conta que já exerceu advocacia, não é desconhecedor do que supra se alegou.
Sendo certo que se a divida que o autor peticiona existisse, o que este bem sabe não ser verdade, certamente o autor teria comunicado a mesma ao AI para que aquele a cobrasse tal como lhe competiria.
Jamais omitindo à massa insolvente durante tanto tempo a existência de tão elevado crédito se o mesmo efectivamente existisse.
Exposto isto, em função dos documentos ora juntos pelo autor, apenas nos resta concluir primeiro pela inexistência da divida e seguidamente pela ilegitimidade do autor para a presente acção uma vez que quem representa a sua massa insolvente é o AI, ilegitimidade que deverá ser declarada nos termos supra exposto.
A 03/11/2020, numa conclusão de 06/10/2020, foi proferido o seguinte despacho:
Compulsada a certidão junta aos autos, verifica-se que o aqui autor foi declarado insolvente, por sentença transitada em julgado, a 02/08/2013, proferida no âmbito do processo 0000/12.0TJLSB.J2.
Os presentes autos foram instaurados pelo autor, a 18/06/2018, ou seja, posteriormente à data da declaração da sua insolvência.
Não obstante já ter sido proferido despacho tabelar no despacho saneador proferido a 16/06/2020, declarando que as partes são legitimas, entende-se que tal despacho saneador tabelar (que continua a dever ser proferido no presente quadro jurídico-processual) em que não houve uma apreciação concreta a qualquer questão de legitimidade activa ou passiva, não forma caso julgado formal porquanto nada foi decidido em concreto.
Assim e uma vez que o autor foi declarado insolvente antes da instauração desta acção, quando a instaurou, já não tinha legitimidade para o fazer.
De facto, tendo presente o disposto nos artigos 81/1 e 85/3, ambos do CIRE, pacífico é que em razão da declaração da insolvência de devedor, fica este último privado dos poderes de administração e disposição relativamente a bens compreendidos na massa insolvente, ou seja, sendo essencialmente os efeitos da referida decisão de natureza patrimonial, e reflectindo-se eles nos poderes de actuação do insolvente no referido domínio e na sua esfera jurídica, passam os poderes em causa a ser da competência do AI.
Acresce que a legitimidade que o CIRE confere ao AI de agir/actuar em defesa do interesse da massa insolvente e dos direitos dos credores, não é partilhada/ cumulativa com uma outra - de igual natureza e conteúdo - do próprio insolvente, a ponto de no âmbito da prossecução e defesa dos interesses e direitos acima referidos poder também o insolvente agir por si e em “substituição” do administrador da insolvência no desempenho das funções que lhe incumbe/compete (ac. do TRL de 11/05/2017, proc. 6490-12.1T2SNT-C.L1-6).
Tendo em conta o supra exposto, notifique o autor e ré para querendo se pronunciar sobre o supra referido, em dez dias.
Notifique também o AI identificado na sentença junta aos autos a fl. 68v, se tem interesse em prosseguir, como representante da massa insolvente e dos credores, com os presentes autos, devendo, para tanto, constituir mandatário que o aqui represente e que venha aos autos ratificar todo o processado, sem prejuízo do decurso do prazo previsto no artigo 291 do CPC.
Acresce que, nos termos artigo 112/1 do CIRE, com a declaração de insolvência do autor, caducou o mandato si outorgado a favor do seu procurador no âmbito dos presentes autos, o que se determina.
A 16/11/2020, o autor veio interpor recurso deste despacho - para que seja revogada a decisão proferida de despacho de extinção [sic] - terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
A- Os presentes autos reportam-se a uma acção declarativa de condenação para pagamento de honorários, intentada pelo ora recorrente contra a RR-Lda, alegando a intervenção do recorrente como mandatário da ré em diversos processos já devidamente identificados, concluindo-se por um pedido de condenação ao pagamento de 19.700€.
B- A acção foi interposta em 14/06/2018 e o ora recorrente foi declarado insolvente por sentença transitada em julgado em 02/08/2013, proferida no âmbito do Processo n.º 0000/12.0TJLSB, juiz 2 do Juízo Local Cível de Lisboa.
C- Veio o Sr. juiz a quo, entender que a declaração de insolvência do ora recorrente o privou dos poderes de administração e disposição relativamente a bens compreendidos na massa insolvente, ou seja, sendo essencialmente os efeitos da referida decisão de natureza patrimonial, e reflectindo-se eles nos poderes de actuação do insolvente, passam os poderes em causa a ser da competência do AI, subsumindo a questão ao regime legal previsto no artigo 81 do CIRE.
D- Entendendo o Sr. Juiz a quo que a legitimidade que o CIRE confere ao administrador de insolvência para agir / actuar em defesa do interesse da massa insolvente, não é cumulativa com uma outra de igual natureza e conteúdo do próprio insolvente.
E- Considera o apelante que, contrariamente ao entendido no despacho de que se recorre, não estarmos perante uma questão de subsunção ao regime legal previsto no artigo 81 do CIRE.
F- Com efeito, a pretensão do ora recorrente, apesar de ter sido declarado insolvente anteriormente à propositura da acção de honorários, em nada colide com os interesses gerais dos credores da massa insolvente, mas apenas com os interesses particulares do apelante, face ao invocado patrocínio judiciário conferido à ré nas identificadas acções judiciais.
G- O artigo 81 do CIRE ao estatuir que “o AI da assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência” significa que a inibição do insolvente se revela inoperante relativamente às matérias de natureza pessoal em geral, e outrossim, quanto às patrimoniais estranhas à insolvência;
H- A declaração de insolvência implica a inibição do insolvente para administrar e dispor dos seus bens, sendo representado, salvo direitos exclusivamente pessoais ou estranhos à insolvência pelo respectivo administrador;
I- Entende o autor que sendo o processo de insolvência um processo de execução universal, tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (artigo 1 do CIRE);
J- A apontada falta de capacidade judiciária do autor para a acção de honorários não se enquadra na limitação da capacidade patrimonial do insolvente que a Lei consagra no citado artigo 1 do CIRE como efeito necessário da declaração de insolvência;
L- Entende-se que a interposição da acção de honorários por parte do autor, declarado insolvente, não envolve qualquer diminuição do seu património, antes podendo trazer vantagens para os seus credores, os quais, caso a acção proceda, poderão ter mais possibilidades de satisfazer os seus créditos;
M – Não estando agora em causa se o pedido formulado na acção tem fundamento ou não, entende o recorrente que, perante a sua situação de insolvente, não está legalmente inibido de propor a presente acção de honorários, não havendo lugar à representação pelo administrador de insolvência, nem a caducidade do mandato conferido ao mandatário ora subscritor;
N- Não se verificando que os efeitos visados pelo autor ora recorrente nesta acção sejam susceptíveis de comprometer o seu património em detrimento dos interesses gerais da massa insolente, não se mostra aplicável ao caso o disposto no artigo 81 do CIRE, não sendo caso de representação (substituição) do autor por parte do administrador de insolvência e de necessidade de ratificação de quaisquer actos e menos ainda de caducidade do mandato forense conferido a advogado;
O- Dando-se provimento à apelação, deverá ser revogado o despacho de caducidade de mandato nos termos do artigo 112 do CIRE, bem como, de representação/substituição do autor por parte do AI e de necessidade de ratificação de quaisquer actos, mantendo-se o despacho saneador proferido em 16/06/2020.
A 26/11/2020, o AI, nomeado para intervir nos autos à margem indicados, notificado com a ref.ª 400310577 de 06/11/2020, do teor do despacho a fl., veio requerer fosse admitida a junção aos autos para que dos mesmos fique a constar:
- Comprovativo de entrega de requerimento de protecção jurídica (doc.1).
Mais requer que se ordena a suspensão do prazo, até que o aqui signatário seja notificado da decisão da Segurança Social quanto ao pedido de nomeação e pagamento da compensação de patrono.
A 10/12/2020 (fls. 81 a 89 do processo em papel) o autor veio requerer a junção aos autos de uma certidão com um acórdão do TRL e um outro do STJ, proferidos num outro processo 5324/07.3TVLSB-A. O que de essencial decorre destes dois acórdãos, proferidos no processo é a terceira restrição constante do ponto III do sumário do ac. do STJ, sendo a argumentação para lá chegar resumida no mesmo sumário:
I - A declaração de insolvência priva o insolvente dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao AI.
II - Tal privação não consubstancia uma incapacidade judiciária do insolvente pois que a declaração da insolvência não implica uma perda da sua capacidade judiciária, mas uma substituição na sua representação processual (substituição legal automática do insolvente pelo administrador da insolvência) traduzida numa indisponibilidade relativa daquele delimitada: pelos bens que integram a massa insolvente; pela protecção do interesse dos credores.
III - A extensão dessa substituição processual encontra-se confinada à finalidade da realidade que serve: protecção do património do insolvente em função do interesse dos credores por forma a salvaguardar a satisfação dos respectivos créditos. Nessa medida, não é extensível às matérias de natureza pessoal, às patrimoniais estranhas à massa insolvente, bem como às relacionadas com o património insolvente que visem a valorização ou o aumento do mesmo.
A 06/01/2021 foi proferido o seguinte despacho (fl. 90 do pp):
Resulta dos autos que o autor foi declarado insolvente, em data anterior à propositura da presente acção (vd despacho datado de 03/11/2020).
Cumpre esclarecer e clarificar que, pese embora, no despacho datado de 03/11/2020 se tenha feito referência à falta de legitimidade do autor para puder demandar a ré, com tal expressão não se quis fazer alusão à verificação da excepção dilatória que conduz à absolvição da instância, mas que o autor, por si só, já não pode pleitear em juízo, mas apenas através do administrador judiciário, verificando-se assim uma substituição processual, aliás na esteira da notificação ordenada ao AI, no mesmo despacho, e ainda na declaração de caducidade do mandato (patrocínio judiciário) ao mandatário que patrocina o autor.
De facto,
“A finalidade do processo de insolvência (processo de execução universal tendente a liquidar o património do insolvente e a repartir o produto obtido pelos seus credores ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência – cfr. artigo 1.º do CIRE) justifica as medidas legais decorrentes do regime previsto no artigo 81, do CIRE, privando o insolvente de poder administrar e de dispor dos bens que integram a massa insolvente, poderes que passam a competir ao AI (artigo 81/1 do CIRE).
De acordo com o disposto no art. 81/4 do CIRE, o AI assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência, sendo que tal representação não se estende à intervenção do devedor no âmbito do próprio processo de insolvência, seus incidentes e apensos, salvo expressa disposição em contrário (n.º5 do mesmo preceito).
Verifica-se pois que o efeito primordial da declaração de insolvência para o insolvente incide na sua actuação relativamente aos bens compreendidos na massa insolvente [por conseguinte, como salientam Carvalho Fernandes e João Labareda, quanto aos bens patrimoniais não incluídos na massa insolvente o devedor mantém os seus poderes de administração e de disposição - CIRE Anotado, Quid Juris, 3.ª edição, página 412] os quais, de acordo com o artigo 46, do CIRE, abrangem todo o património do devedor à data da declaração da insolvência (que não estejam isentos de penhora), bem como os bens e direitos que adquira na pendência do processo, cabendo ainda ter em conta, atento o que resulta do estatuído no artigo 81/2 em referência, os bens cujo aquisição pelo devedor seja posterior ao encerramento do processo [neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, pág. 412.]
Consequentemente, de acordo com o regime legal da insolvência, o devedor insolvente privado dos poderes de administração e disposição dos bens que integram a massa insolvente, passa a ser representado, nesse âmbito, pelo AI a quem lhe são transferidos tais poderes, pelo que a declaração da insolvência não implica uma perda da sua capacidade judiciária, mas uma substituição na sua representação processual [Miguel Teixeira de Sousa faz referência à denominada substituição representativa (o sujeito que instaura a acção ou contra o qual esta é proposta age em nome próprio e, por isso, é parte processual) alertando para o facto de a mesma não se confundir com a representação judiciária ou com qualquer forma de suprimento da incapacidade judiciária - As Partes, o Objecto (…), pp. 53 e 54.].
Esta ‘substituição’ legal automática do insolvente pelo AI e a natureza de execução universal do processo de insolvência (por forma a nele participarem todos os credores do devedor no resultado da liquidação do património do insolvente) justificam o regime estabelecido no artigo 85/1, do CIRE (serem apensadas ao processo de insolvência todas as acções, intentadas contra o devedor ou mesmo contra terceiros, em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, desde que a decisão que nelas venha a ser proferida possa influenciar o valor da massa insolvente) e n.º 2 (isto é, por efeito da lei, independentemente da apensação de acções e do acordo da parte contrária, o AI substitui o insolvente em todas as acções patrimoniais pendentes em que este seja autor ou réu)”
(cfr. parte da fundamentação do ac. do STJ de 10/12/2019, proc. 5324/07.3TVLSB-A.L1.S1).
Nestes termos, o aqui autor é substituído pelo AI nomeado no processo de insolvência, o qual, depois de notificado do despacho de 03/11/2020 veio requerer a junção aos autos do requerimento de apoio judiciário (fls. 79 v e 80), sendo os actos processuais já praticados aproveitados, caso se verifique a ratificação do processado por parte do AI.
*
Oficie à Segurança Social para que junte aos autos a decisão que recaiu sobre o apoio judiciário requerido pelo AJ, juntando cópia do mail de fl. 80 para melhor esclarecimento.
Notifique.
*
Antes do tribunal se pronunciar sobre o recurso interposto, notifique autor e ré do presente despacho.
Após conclua.
O advogado constituído pelo autor não foi notificado deste despacho. Foi-o o AI.
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
Questão a decidir: apenas e só saber se a decisão proferida na parte final do despacho de 03/11/2020 está correcta, isto é, se, por força da declaração de insolvência do autor, caducou o mandato por ele outorgado a favor do seu procurador no âmbito dos presentes autos.
*
Os factos que interessam à decisão desta questão, são os que decorrem do relatório supra, especialmente que o autor foi declarado insolvente, por sentença transitada em julgado, em 02/08/2013, processo que ainda se encontrava pendente em 20/07/2020 e que estes autos, em que o autor pede a condenação da ré a pagar-lhe os honorários por serviços profissionais prestados antes de 2012, foram intentados em 18/06/2018, pela mão de um patrono nomeado em 07/11/2017.
*
Decidindo:
Antes de mais registe-se que o recurso recai apenas sobre o decidido no despacho de 03/11/2020. Sendo que esse despacho é, no resto e na sua maior parte, um despacho interlocutório, a dar às partes a oportunidade para se pronunciarem sobre o entendimento aí expresso sobre uma questão mais ampla.
Ora, o autor recorreu logo do que ali tinha sido decidido e, depois, a decisão sobre a questão mais ampla que o despacho levantava, decisão que foi proferida a 06/01/2021, não foi sequer notificada ao autor, na pessoa do seu advogado.
Assim, repete-se, a questão a decidir é apenas, expressamente, a da extinção do mandato do procurador forense do autor no âmbito dos presentes autos.
O art. 112/1 do CIRE, invocado pela decisão recorrida, dispõe que:
Salvo nos casos abrangidos pela alínea a) do n.º 2 do artigo 110.º, com a declaração de insolvência do representado caducam as procurações que digam respeito ao património integrante da massa insolvente, ainda que conferidas também no interesse do procurador ou de terceiro.
O que tem paralelo com o disposto no art. 110/1 do CIRE:
Os contratos de mandato, incluindo os de comissão, que não se mostre serem estranhos à massa insolvente, caducam com a declaração de insolvência do mandante, ainda que o mandato tenha sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro, sem que o mandatário tenha direito a indemnização pelo dano sofrido.
No caso, não só o autor não tentou sequer demonstrar que os créditos que são objecto da acção e para cobrança dos quais foi acordado um mandato forense pelo autor, com procuração, sejam estranhos à massa insolvente, e era a ele que lhe competia essa prova, como se pode claramente afirmar o contrário, ou seja, os créditos em causa – a existirem – são bens da massa insolvente: resultam claramente da actividade profissional do autor no período que antecedeu a declaração de insolvência.
Aliás, o autor, embora vá sugerindo que a acção é alheia aos interesses da massa (conclusões G e H do recurso), também diz o contrário, como se vê na conclusão L do recurso (a acção pode trazer vantagens para os seus credores os quais, caso a acção proceda, poderão ter mais possibilidades de satisfazer os seus créditos; relembre-se entretanto que o autor pediu a condenação da ré a pagar-lhe a si).
Por outro lado, o caso não diz respeito a nenhuma das hipóteses do art. 110/2 do CIRE.
Assim sendo, o caso cai directamente no âmbito dos artigos 110/1 e 112/1, ambos do CIRE, pelo que nenhuma dúvida deveria existir de que o mandato e a procuração em causa caducaram com a declaração de insolvência do mandante e representado.
Note-se que as normas em causa não estabelecem restrição alguma, basta que as procurações digam respeito ao património integrante da massa insolvente ou que os contratos não se mostrem serem estranhos à massa insolvente.
Não tem, por isso, o mínimo suporte legal, a aplicação, ao caso, da restrição feita pelos acórdãos do TRL e do STJ, invocados pelo autor, embora tais acórdãos digam directamente respeito a outras normas, isto é, não tem suporte legal pretender, como quer o autor neste recurso, que as normas dos artigos 110 e 112 do CIRE não abrangem o caso em que, com a acção em que estão em causa os poderes forenses conferidos por aquele mandato e procuração, se vise a valorização ou o aumento da massa insolvente.
Pois que, reconhecendo-se que esses créditos dizem respeito ao património integrante da massa insolvente, o que importa, para a lei, é apenas isso, logicamente no pressuposto de que só o AI é que tem legitimidade para intentar acções que visem a valorização ou o aumento da massa insolvente.
A argumentação do ac. do STJ de 2019 tem como pressuposto que uma acção que visa o aumento da massa insolvente não põe em causa o património do insolvente nem os interesses dos credores deste de salvaguardar a satisfação dos respectivos créditos, mas não tem em conta que o resultado possível dessa acção é também a perda do crédito, que pode derivar inclusive de uma desistência do pedido ou de uma transacção feita pelo insolvente.
Isto é, não interessa só o resultado que a acção visa obter, mas o resultado que pode derivar da acção.
Neste sentido, para um caso paralelo, Castro Mendes, DPC II, AAFDL. 1980, pág. 82, diz: “só os dois cônjuges, ou um deles com o consentimento do outro, podem propor acções que ponham em causa este tipo de bens, de modo a poder-se verificar, através de qualquer das duas hipóteses de eventum litis possíveis (ganhar a causa – perdê-la), a saída, da esfera jurídica do cônjuge, de um bem para alienação do qual era necessário o consentimento dos dois.”
E num exemplo: “P põe em dúvida que a mobília seja de B: esta quer pôr uma acção de simples apreciação para estabelecer a sua propriedade. Se perder esta acção, fica – juridicamente – sem a mobília. […]” (autor e obra citados, pág. 83)
É neste contexto que se compreende que no voto de vencido proferido no ac. do TRL invocado pelo autor, se diga: “Na presente acção está em causa o reconhecimento de um crédito do insolvente, que, na medida em que for julgado verificado, vai integrar a massa insolvente, e, na medida em que não fôr verificado, […], pode […] significar a efectiva perda de um direito que, porventura existisse. Afigurando-se não ser rigorosa a afirmação de que o eventual decaimento na acção não prejudica a massa insolvente. […] porque o não reconhecimento, total ou parcial, do direito invocado pode redundar em efectiva perda desse direito. Não podendo assentar-se em que o não reconhecimento judicial do direito invocado equivale à sua inexistência.
Note-se que ao argumentar contra este voto de vencido, o acórdão do STJ transcreve parte destes §§ do voto de vencido mas não transcreve as partes sublinhadas agora, que eram o essencial desse voto, e, por isso, pode-se dizer que o acórdão do STJ não tem argumentos para contrapor ao que se está agora a dizer.
O que antecede está na lógica de outras normas:
Assim, o art. 81/1 do CIRE, dispõe que, sem prejuízo do disposto no título X [que prevê que a sentença declaratória da insolvência possa determinar que a administração seja feita pelo administrador – o que não foi o caso dos autos], a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.
Daqui logo decorreria, sem necessidade de mais, a impossibilidade de o insolvente, poder intentar, por si, uma acção em que estivesse em causa um crédito da massa insolvente, como é o caso dos autos, pois que ele não tem poderes de disposição dos bens integrantes da massa insolvente e um dos resultados possíveis da acção é, logicamente, o insolvente perder a acção, ficando, por isso, juridicamente sem o crédito.
Logo a seguir, o art. 81/2 do CIRE dispõe: “Ao devedor fica interdita a cessão de rendimentos ou a alienação de bens futuros susceptíveis de penhora, qualquer que seja a sua natureza, mesmo tratando-se de rendimentos que obtenha ou de bens que adquira posteriormente ao encerramento do processo.”
Ora, se isto é assim em relação aos bens que ele adquira posteriormente ao encerramento do processo, por maioria de razão tem de dizer respeito aos bens que ele já adquiriu antes do encerramento do processo. Daí que, Carvalho Fernandes e João Labareda, na obra já citada na fundamentação da decisão de 06/01/2021, pág. 412, digam: “quanto aos bens e rendimentos susceptíveis de penhora, adquiridos ou obtidos até o encerramento do processo - para se seguir de perto a terminologia legal, sem curar da sua correcção técnica -, uma vez que eles integram a massa insolvente, segundo o n.º 1 do art. 46, a interdição da sua cessão ou alienação pelo devedor é apenas uma repetição do que imediatamente resulta do n.º1 do artigo em anotação, que o priva do poder de disposição […]”
Note-se que um crédito do autor sobre terceiro, é um bem penhorável, mesmo que seja litigioso, isto é, mesmo que o putativo devedor conteste a sua existência (artigos 735/1 e 773 e seguintes, especialmente 775/2, todos do CPC).
Pelo que, o insolvente não pode/não tem o poder de dispor deles. Ora, se não tem este poder, não pode propor uma acção cujo resultado possível é perder a acção, ficando sem o direito.
Por outro lado, o art. 81/4 do CIRE dispõe que “O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.”
Todos e não só alguns, logicamente, pelo que, todas as acções que interessem à insolvência, por poderem resultar num resultado positivo ou negativo, estão abrangidas. Pelo que, relativamente às acções em que se discutem créditos da massa insolvente, só o administrador é que tem poderes para estar em juízo (neste sentido, com extensa fundamentação, o ac. do TRL invocado na sentença recorrida).
Na lógica disto tudo, vem depois o art. 81/7 do CIRE dizer que “os pagamentos de dívidas à massa efectuados ao insolvente após a declaração de insolvência só serão liberatórios se forem efectuados de boa fé em data anterior à do registo da sentença, ou se se demonstrar que o respectivo montante deu efectiva entrada na massa insolvente.”
E sobre esta norma, dizem Carvalho Fernandes, obra citada, págs. 412-413: “As limitações dos poderes do insolvente contidas nos n.ºs 1 e 2 reportam-se a actos em que ele tem uma posição activa - de sujeito activo, passe a expressão. Mas nos actos relativos à massa insolvente, o devedor pode ter uma posição passiva, como sucede quando lhe é feito o pagamento de créditos seus, e ele o recebe. Os efeitos patrimoniais da insolvência relativos ao devedor não podem deixar de abranger esta última categoria de actos. Assim se explica o n.º7 do art.81. Daqui resulta, por via indirecta, que o pagamento de dívidas à massa, para ter o seu efeito liberatório típico, não deve ser feito ao devedor. […]”
Assim, como diz a ré, se ela fosse condenada não poderia pagar a dívida ao autor mas apenas ao administrador (art. 81/7 do CIRE). Ora, qual é o sentido de o administrador da massa insolvente ser obrigado a receber o montante de uma dívida – que é sua, isto é, da massa insolvente que representa - sem ter podido discutir o montante do respectivo crédito?
Por outro lado e por força daquela norma, como diz aquele voto de vencido “afigura[-se] não ser admissível que, na presente acção, possa ser proferida decisão a condenar no pagamento de qualquer quantia, respeitante a esse crédito, ao próprio insolvente.” Ora, se na acção é parte o insolvente e o AI não o substituiu, como é que na sentença se poderá condenar o devedor a pagar ao AI e não ao autor?
Também por aqui se vê que a acção em que o autor pretende a condenação de um putativo devedor a pagar-lhe um crédito (que pertence à massa insolvente), não pode prosseguir com ele/autor, pois que ele foi declarado insolvente e o crédito é da massa insolvente. E isto, obviamente, quer essa acção tenha sido instaurada antes de credor ser declarado insolvente, quer depois disso.
Ou seja, o art. 85/3 do CIRE vale para todas estas acções, embora só esteja directamente pensado para as intentadas antes, porque a lei, pelo jogo das normas já referidas, não admite que seja o insolvente a intentar acções que digam respeito a créditos pertencentes à massa.
Compreende-se por isso que o voto de vencido naquele acórdão do TRL diga: “Sendo seguro que nos presentes autos está em causa uma acção dc natureza exclusivamente patrimonial intentada pelo insolvente que, se tivesse sido intentada antes da declaração de insolvência, ficava sujeita ao regime estabelecido no já referido art. 85 do CIRE.” […] Entendo, pois, que em relação às acções instauradas após a declaração de insolvência se aplica, por identidade, ou maioria de razão, a regra do art. 85/3 do CIRE, incumbindo ao AI a representação judiciária do insolvente.”
Por outro lado, como diz este voto de vencido “é de presumir que qualquer acção judicial que o insolvente se proponha instaurar visará reconhecer pretensões vantajosas […o] que também se presume em relação às acções já instauradas. O que, a nosso ver, deixa sem justificação a determinação da substituição do insolvente pelo AI nas acções já instauradas”
Ou seja, se a restrição feita pelo ac. do STJ tivesse razão de ser, então essa restrição também se teria de aplicar às acções já instauradas antes de declarada a insolvência e o AI só substituiria o credor nas acções patrimoniais respeitantes à massa insolvente que não visassem a valorização ou o aumento da massa insolvente, restrição essa que a lei, no art. 85 do CIRE, claramente não faz, porque claramente não confia no insolvente para o fazer (excepto nos casos do título X do CIRE que não são os dos autos).
E o acórdão do STJ ainda teria que explicar que acções patrimoniais seriam essas que têm a ver com os bens da massa insolvente mas não visam a valorização ou o aumento da massa insolvente, qual o sentido de impor a substituição do insolvente pelo AI em relação a essas acção e o que é que tornaria legítimo que se instaurassem e prosseguissem essas acções.
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Por tudo o que antecede, compreende-se a decisão proferida a 03/11/2020 de considerar, expressamente, caducado o mandato atribuído ao advogado do autor, e, implicitamente, a procuração existente a favor daquele mandatário, no âmbito destes autos.
Mas há que atentar que a nomeação de advogado – que corresponde a um mandato com procuração, como decorre do poder de substabelecer (artigos 16/1-b, 30/1 e 35/1, todos da Lei 34/2004, de 29/07, na redacção actual, e 17/1 da Portaria 10/2008, de 03/01) – ocorreu não antes mas depois da declaração de insolvência, pelo que não se pode falar em caducidade.
O que se passa é que a nomeação de advogado, na sequência de pedido de patrocínio judiciário, é um acto ineficaz em relação à massa insolvente (art. 81/6 do CIRE), porque praticado em violação do disposto no art. 81, n.ºs 1 e 4 do CIRE: o devedor não podia fazer atribuir poderes a um advogado para o representar judiciariamente em assuntos de carácter patrimonial que interessassem à insolvência.  
Assim, há que corrigir o despacho recorrido, pois que o se verifica não é a caducidade do mandato e da procuração, mas a sua ineficácia nestes autos.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, embora se corrija a decisão recorrida, pois que em vez da caducidade do mandato e da procuração, o que se verifica é a sua ineficácia.
Sem custas visto que o autor – que seria o responsável por elas - beneficia da dispensa das mesmas.

Lisboa, 12/07/2021
Pedro Martins (relator por vencimento)
Inês Moura
Nelson Carneiro (relator vencido pelas razões que constam do seguinte voto de vencido:
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Voto de vencido:
A massa insolvente é o conjunto de bens atuais e futuros do devedor, os quais, a partir da declaração de insolvência, formam um património separado, adstrito à satisfação dos interesses dos credores - MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Manual de Direito da Insolvência, 7ª edição, p. 251.
No entanto, o insolvente não perde o poder de disposição de todo e qualquer bem, pois conserva estas faculdades relativamente aos bens estranhos à massa insolvente: ou seja, os bens que não pertencem à massa insolvente, trate-se dos seus bens, ou de bens de terceiro - MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Manual de Direito da Insolvência, 7ª edição, p. 252.
Nos termos do art. 81º, nº 1, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência - [1] MENEZES LEITÃO, Direito da Insolvência, 7ª edição, p. 167.
Mas é preciso compreender a motivação subjacente à lei. A razão de ser de uma tal privação (ou inibição) funda-se no interesse dos credores, isto é, tem em vista a salvaguarda da satisfação dos créditos - Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 2017-11-07, Relator: JOSÉ RAÍNHO, http://www.dgsi.pt/jstj.
Visa a lei obviar à prática por parte do devedor de atos que de alguma forma possam comprometer o respetivo património em prejuízo dos credores - Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 2017-11-07, Relator: JOSÉ RAÍNHO, http://www.dgsi.pt/jstj.
Deste modo, se a atividade do devedor não é de molde a colocar em causa a salvaguarda do seu património em detrimento dos credores, então inexiste razão para a aplicação do art. 81º do CIRE - Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 2017-11-07, Relator: JOSÉ RAÍNHO, http://www.dgsi.pt/jstj.
Consequentemente, a inibição processual que afeta o insolvente não é extensível às matérias de natureza pessoal, às patrimoniais estranhas à massa insolvente, bem como as que relacionadas com o património insolvente visem a valorização ou o aumento do mesmo - Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 2019-12-10, Relatora: GRAÇA AMARAL, http://www.dgsi.pt/jstj.
Concluindo, não se revelando os efeitos visados pelo apelante na ação em algo suscetível de comprometer o seu património em detrimento dos interesses gerais da massa insolvente, não regula para o caso o art. 81º do CIRE.
Acresce dizer que não há qualquer crédito pertencente à massa insolvente, pois estamos perante uma ação declarativa em que é requerida a tutela do tribunal para declarar a existência de um direito.
Ora, o pedido de declaração da existência desse direito não se pode confundir, desde já, com a existência de um crédito pertencente à massa insolvente, pois o mesmo ainda não se mostra definido.
Quando muito, o que se poderá dizer é que há uma expectativa de crédito com a propositura da ação (o autor julga-se titular de um direito de crédito), mas nunca que se está perante um crédito pertencente à massa insolvente (só com a sentença condenatória se poderá obter um título executivo).
Dúvidas não havia, se houvesse algum crédito pertencesse à massa insolvente, que esse crédito, por integrar a massa falida, o insolvente ficava privado dos poderes de administração, os quais passariam a competir ao administrador de insolvência.
Por outro lado, o acórdão da Relação de Lisboa de 11-05-2017, citado no acórdão supra, refere que “o insolvente fica privado dos poderes de administração e disposição relativamente a bens compreendidos na massa insolvente (cfr. artigo 88.º, n.º 1, do CIRE), cabendo ao administrador da insolvência representá-lo relativamente aos referidos bens”, o que se concorda, mas que não é o caso destes autos, em que não há qualquer crédito pertencente à massa falida.
Para além dos citados acórdãos do Supremo Tribunal de 2017-11-07 e 2019-12-10, cita-se ainda em abono desta tese o acórdão da Relação do Porto de 11-10-2016:
O insolvente não fica privado dos poderes de administração e disposição relativamente a bens não compreendidos na massa insolvente artigo 88.º, n.º 1, a contrario, CIRE). O insolvente dispõe de legitimidade para cobrança de um crédito não apreendido para a massa insolvente e relativamente ao qual o administrador da insolvência manifestou expressamente a falta de interesse. O administrador da insolvência só representa o falido relativamente a bens integrantes da massa insolvente, com a finalidade de proteger os credores concursais (sub. nosso) - Ac. Tribunal da Relação do Porto de 2016-10-11, Relatora: MÁRCIA PORTELA, http://www. dgsi.pt/jtrp.

Nelson Borges Carneiro