Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1512/15.7PBCSC-A.L1-9
Relator: ALMEIDA CABRAL
Descritores: RAI
REQUISITOS FORMAIS
ALTERAÇÃO DOS FACTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I.Tendo sido decidido no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.° 1/2015, de 20 de Novembro de 2014, publicado no D. R. n.° 18 — I Série — de 27 de Janeiro, que "A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art.° 358. ° do Código de Processo Penal", aplicável “in casu”, bem como do mesmo modo, visando-se a necessária estabilização jurisprudencial, se entendeu no Acórdão n.° 7/2005 do S.T.J., publicado no DR n.° 212, I-A, de 4 de Novembro, que o juiz não deve convidar o assistente a colmatar o seu requerimento de instrução sempre que o mesmo enferme de deficiente narração factual e de direito, pois que, a permitir-se tal correcção, estar-se-ia a atentar contra a natureza peremptória do prazo para a abertura da instrução, o RAI apresentado pelo assistente nunca poderia ser admitido;
II- De facto quando o assistente não refere no seu RAI factos concretos praticados pelo arguido que sejam susceptíveis de integrar, designadamente, a tipicidade subjectiva do crime que lhe imputa e pelo qual pretende a sua pronúncia, e  remete sómente para os factos imputados ao arguido, mas, apenas, na dimensão objectiva do tipo de ilícito, sendo que  se olvida de imputar os factos subjectivos, mormente o dolo, este deverá ser rejeitado;
III- Sem a descrição de factos concretos que consubstanciem uma conduta penalmente punível, a identificação do seu agente e a indicação do ilícito pelo qual se pretende ver aquele pronunciado, a instrução não tem objecto, ou seja não pode haver instrução. E, sem instrução, o debate e a decisão instrutória constituem uma impossibilidade jurídica e os actos instrutórios actos inúteis, sendo que, ainda que fossem apurados factos concretos, se tal viesse a constar da decisão instrutória esta seria nula, por violação do disposto no atrás citado art.° 309.°. Isto é, estar-se-ia, nesse caso, perante uma alteração substancial dos factos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 9.a Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1 — No Juízo de Instrução Criminal de Cascais — Juiz 2, Processo n.° 1512/15.7PBCSC, onde é recorrente/assistente AA….., havendo o Ministério Público, findo o inquérito, ordenado o arquivamento dos autos, não conformado com o respectivo despacho, requereu o mesmo assistente a abertura da instrução, pretendendo, por esta via, ver pronunciado o arguido.
O requerimento de abertura da instrução, todavia, veio a ser rejeitado pela Mm.a Juiz "a quo", com o fundamento de inadmissibilidade legal da mesma instrução, por falta de objecto, nos termos do art.° 287.°, n.° 3 do C.P.P..
Inconformado, com o referido despacho, dele interpôs o assistente o presente recurso, onde concluiu no sentido de a rejeição do RAI se encontrar ferida de ilegalidade, devendo, por isso, ser o mesmo recebido e ordenada a abertura da instrução.
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O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito não suspensivo.
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Notificado o Ministério Público da interposição do recurso, apresentou o mesmo a respectiva "resposta", onde, a final, concluiu no sentido da confirmação da decisão recorrida, devendo, por isso, ser aquele julgado improcedente.
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Neste Tribunal a Exm.a Sr.a Procuradora-Geral Adjunta emitiu "parecer" no sentido de o recurso não merecer provimento.
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Mantêm-se verificados e válidos todos os pressupostos processuais conducentes ao conhecimento do recurso, o qual, por isso, deve ser admitido, havendo-lhe, também, sido correctamente fixados o efeito e o regime de subida.
2 - Cumpre apreciar e decidir:
No presente recurso o assistente/recorrente insurge-se contra a decisão proferida pelo tribunal "a quo", que rejeitou o requerimento para abertura da instrução por inobservância dos requisitos de forma/falta de objecto.
Porém, a pretensão do recorrente, pese embora toda a argumentação invocada, não pode merecer acolhimento, como se passa a demonstrar.
O tribunal "a quo", como atrás se referiu, não admitiu a instrução por o respectivo requerimento não satisfazer, designadamente, os requisitos formais exigidos pelos artºs  283.º, n.° 3, als. a) e b), ex vi, art.° 287.°, n.° 2, ambos do C.P.P. - diploma onde se integram as disposições legais a seguir citadas sem menção de origem.
Efectivamente, dispõe o art.° 286.°, n.° 1, que "a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento".
Assim, estando aqui em causa a não acusação do visado por parte do M.° P.°, a quem o assistente imputa a prática de um crime, a tentativa de comprovação judicial da factualidade indiciadora do mesmo crime é promovida pelo referido assistente, através de "requerimento" para abertura da instrução, conforme art.° 287.°, n.° 1, al. b).
Porém, como diz o Prof. Germano Marques da Silva in "Curso de Processo Penal", III, pág. 125, "este requerimento consubstancia uma acusação que, nos mesmos termos da acusação formal, condiciona e limita a actividade de investigação do juiz e a decisão instrutória".
Por outro lado, dispõe o art.° 287.°, n.° 2, que "o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação (...), sendo, ainda, aplicável ao  requerimento do assistente o disposto no art.° 283.°, n.° 3, als. b) e c)" (sublinhado nosso), isto é, "a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada (al. b); a indicação das disposições legais aplicáveis (al. c)".
Prevendo, ainda, as formalidades da acusação, diz o mesmo Prof. Germano Marques da Silva, ob. cit., págs. 114 e 115, que "é elemento essencial da acusação a indicação dos factos que fundamentam a aplicação da sanção. É que são estes que constituem o objecto do processo daí em diante e são eles que serão objecto de julgamento".
Depois, também refere o citado Professor, a págs. 134 e 135, que "o juiz investigará o caso se considerar procedentes as razões aduzidas pelo assistente e nada mais obstar ao recebimento da sua acusação pronunciará o arguido pelos factos descritos no requerimento. Não há lugar a uma nova acusação; o requerimento do assistente actuou como acusação e assim se respeita, formal e materialmente, a acusatoriedade do processo".
Marques Ferreira, por sua vez, diz que "o nosso processo penal tem estrutura basicamente acusatória, integrada por um princípio de investigação da verdade material. É, pois, pela acusação ou pela pronúncia que se delimita o objecto do processo. O princípio da investigação da verdade material tem de ser exercido nos limites traçados pela acusação ou pela pronúncia, nisto vindo a residir a conciliação do princípio da máxima acusatoriedade com o da investigação oficial".
Temos, assim, que, à luz do citado art.° 287.°, n.° 2, para além de o assistente dever apresentar as razões de facto e de direito da discordância do despacho de não acusação do Ministério Público, é-lhe imposto, ainda, nos crimes semi-públicos ou públicos, em que o procedimento criminal não depende de acusação particular, fazer a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação de uma qualquer pena ou medida de segurança.
E compreende-se que assim seja: Se o Ministério Público, ao formular a acusação, por razões que são óbvias, tem que fazer a descrição dos factos e subsumi-los juridicamente, sob pena de nulidade, como bem resulta do citado art.° 283.°, n.° 3, porque razão não há-de, também, ser imposto ao assistente fazê-lo, com igual rigor, quando requer a abertura da instrução por factos relativamente aos quais o mesmo Ministério Público não deduziu acusação e por crimes em que a legitimidade para a promoção da acção penal até lhe está primeiramente cometida!? Falamos aqui, como se disse, de crimes semi-públicos e públicos, em que a acusação dominante é a formulada pelo Ministério Público, pois que, relativamente àqueles em que o procedimento depende de acusação particular sempre o assistente o poderá fazer por si. Porém, neste caso, importa referi-lo, também ele haverá de dar cumprimento ao disposto no mesmo art.° 283.°, n.° 3, como lho impõe o art.° 285.°, n.° 3.
Assim, se não há acusação particular, se não há acusação do Ministério Púbico, pode o assistente requer a abertura da instrução. Porém, o seu requerimento haverá de assemelhar-se, em tudo, ao de uma verdadeira acusação ("acusação alternativa" lhe chama Maia Gonçalves), de tal modo que, no âmbito da instrução, seja possível discutirem-se, de forma ampla e exaustiva, quer os factos, quer o direito. Delimita-se, assim, o objecto do processo e respeita-se o intangível P.° do acusatório, assegurando-se ao arguido os fundamentais direitos de defesa. E de tal modo isto assim é que a própria lei (art.° 309.°) considera ferida de, nulidade a decisão instrutória que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público, do assistente, ou no requerimento para a abertura da instrução.
É, pois, inquestionável e pacificamente reconhecido que o requerimento do assistente haverá de conter uma descrição dos factos, ainda que sintética e a indicação das disposições legais aplicáveis, nos termos referidos no citado art.° 283.°, n.° 3, als. b) e c).
Reportados, agora, ao caso dos autos, é manifesto que o requerimento para a abertura da instrução não satisfaz, nos termos exigidos, os requisitos de forma e de substância atrás enunciados.
Efectivamente, como se salienta no despacho recorrido, o assistente não refere factos concretos praticados pelo arguido que sejam susceptíveis de integrar, designadamente, a tipicidade subjectiva do crime que lhe imputa e pelo qual pretende a sua pronúncia, ou, também, como diz o Ministério Público na sua "resposta", "o requerimento faz uma discussão crítica do Inquérito e da actuação do Ministério Público, remete para os factos imputados ao arguido, mas, apenas, na dimensão objectiva do tipo de ilícito, sendo que olvida de imputar os factos subjectivos, mormente o dolo". Efectivamente, importa salientá-lo, o requerimento de abertura da instrução, na sequência do despacho de arquivamento do Ministério Público, não é mais do que uma forma de impugnação do mesmo despacho, para o qual existe a possibilidade de reclamação hierárquica.
Assim, sem a descrição de factos concretos que consubstanciem uma conduta penalmente punível, a identificação do seu agente e a indicação do ilícito pelo qual se pretende ver aquele pronunciado, a instrução não tem objecto, ou seja não pode haver instrução. E, sem instrução, o debate e a decisão instrutória constituem uma impossibilidade jurídica e os actos instrutórios actos inúteis, sendo que, ainda que fossem apurados factos concretos, se tal viesse a constar da decisão instrutória esta seria nula, por violação do disposto no atrás citado art.° 309.°. Isto é, estar-se-ia, nesse caso, perante uma alteração substancial dos factos.
Por outro lado, foi decidido no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.° 1/2015, de 20 de Novembro de 2014, publicado no D. R. n.° 18 — I Série — de 27 de Janeiro, que "A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art.° 358. ° do Código de Processo Penal".
Do mesmo modo, visando-se a necessária estabilização jurisprudencial, também se entendeu no Acórdão n.° 7/2005 do S.T.J., publicado no D.° R.a n.° 212, I-A, de 4 de Novembro, que o juiz não deve convidar o assistente a colmatar o seu requerimento de instrução sempre que o mesmo enferme de deficiente narração factual e de direito, pois que, a permitir-se tal correcção, estar-se-ia a atentar contra a natureza peremptória do prazo para a abertura da instrução.
Deste modo, verificando-se uma inadmissibilidade legal da instrução, por insuficiência de objecto, bem decidiu a Mm.a Juiz recorrida ao rejeitar o requerimento de abertura da instrução.
No demais, em sede de fundamentação da decisão que aqui importa proferir, invoca-se o disposto no art.° 425.°, n.° 5, segundo o qual "os acórdãos absolutórios enunciados no art.° 400.°, n.° 1, al. d), que confirmem decisão de primeira instância sem qualquer declaração de voto, podem limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada".

Ora, uma decisão de não pronúncia é, inquestionavelmente, equiparada a uma decisão absolutória. Por isso, compreende-se a presente decisão, também, na previsão do cit. art.° 400.°, n.° 1, al. d).
3 - Nestes termos e com os expostos fundamentos, à luz, também, do disposto no art.° 425.°, n.° 5, acordam os mesmos Juízes, em conferência, em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs.
Notifique.

Lisboa, 21/03/2019
Almeida Cabral
Fernando Estrela