Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1743/17.5T8CSC.L1-6
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: ACÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
EX-CÔNJUGES
TRIBUNAL COMPETENTE
JUÍZOS DE FAMÍLIA E MENORES
JUÍZO CÍVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. O juízo de família e menores é materialmente incompetente para tramitar a acção de prestação de contas intentada por um ex-cônjuge contra o outro, sendo competentes os juízos cíveis. 
2. Declarada a incompetência absoluta do tribunal com a consequente absolvição da ré da instância, com efeitos apenas no processo, só mediante recurso para o STJ será possível obter decisão com efeitos fora do processo, que fixe definitivamente qual o tribunal competente.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO.

CJ… intentou contra CC… acção declarativa de prestação de contas, alegando, como questão prévia, que, nos termos do artigo 122º da Lei 62/2013 de 26/8, o Tribunal é materialmente competente para tramitar a presente acção, por ser de jurisdição voluntária respeitante a cônjuges e subsequente ao divórcio que aí correu termos e dissolveu o casamento das partes. Relativamente ao fundamento da acção, alegou, em síntese, que, quando ainda eram casados, o autor e a ré venderam um imóvel comum do casal e, para pagamento do respectivo preço, depois de deduzido o montante necessário à liquidação da hipoteca existente, foi emitido um cheque de 281 457,56 euros à ordem apenas da ré e não também do autor, mas sob condição de o mesmo ser depositado na conta comum do casal, o que a ré não fez, não entregando ao autor a quota parte que lhe cabe no montante de 140 728,78 euros, nem prestando contas da utilização que tem vindo a fazer deste valor, apesar de ter sido interpelada para o efeito.
Concluiu pedindo, ao abrigo dos artigos 941º e 942º do CPC, a citação da ré para, no prazo de 30 dias, apresentar contas em relação ao depósito do cheque que lhe foi confiado no montante de 281 457,46 euros, identificando a conta bancária em que tal cheque foi depositado e titularidade da mesma e discriminando a utilização económica do referido valor.
Citada a ré, veio esta alegar, em síntese, que, desde a separação de facto do casal, o autor nunca mais contribuiu para os alimentos dos menores, nem para o pagamento de encargos como a mensalidade do colégio e o pagamento da prestação do empréstimo relativo à casa de morada de família, tendo sido acordado que estas despesas seriam satisfeitas com o produto de venda do imóvel referido na petição inicial, o que tem sido cumprido pela contestante.
Concluiu pedindo a procedência da contestação quanto aos factos da petição inicial que vão impugnados e para ser admitida a prestação de contas que junta, considerando-se justificada a utilização do valor da venda do imóvel em causa.
Após os articulados, foi proferido despacho que julgou materialmente incompetente o tribunal e absolveu a ré da instância.
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Inconformado, o autor interpôs recurso e alegou, formulando conclusões com os seguintes argumentos:
- Impunha-se que o tribunal recorrido tivesse oficiosamente conhecido da incompetência absoluta antes de ter citado a recorrida e, ao permitir a tramitação do processo para uma fase ulterior, criou nas partes legítima expectativa e convicção de ser este o tribunal material e territorialmente competente.
- Tendo em atenção que na petição inicial o recorrente justificou a competência do tribunal como questão prévia e que foi ordenada a citação da recorrida para contestar e/ou prestar contas, o tribunal recorrido julgou-se tacitamente com competência material.
- O artigo 99º nº2 do CPC prevê que o autor pode aproveitar os articulados desde que, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da decisão que declara o tribunal materialmente incompetente, requeira a remessa dos autos para o tribunal em que a acção deveria ter sido proposta, não oferecendo o réu oposição justificada.
- A decisão recorrida não faz referência ao tribunal competente em razão da matéria e o recorrente não tem como certo que o tribunal materialmente competente seja o Juízo Central Cível de Cascais, porque em acção proposta em 22/09/2016, a que foi atribuído o nº2658/16, a correr termos na comarca de Lisboa Oeste, Cascais, Instância Central, Secção Cível, J5, foi proferida sentença a julgar materialmente incompetente a Instância Central Cível, pelo que o recorrente não tem como usar do direito/faculdade previsto no nº2 do artigo 99º.
- Verifica-se um conflito negativo de competência dos tribunais para apreciar esta acção especial de prestação de contas entre ex-cônjuges, que importa resolver, para que o recorrente possa usar da faculdade do artigo 99º nº2, impondo-se que, nos termos do artigo 111º do CPC, seja suscitada oficiosamente a questão junto do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça ou do Presidente do Tribunal de Resolução de Conflitos.
- O tribunal recorrido é materialmente competente e fez errónea interpretação da lei e da jurisprudência ao declarar-se incompetente.
- O casamento entre o recorrente e a recorrida está dissolvido por sentença de divórcio decretada em 21/12/2015 e transitada em julgado em 02/02/2016 e a coabitação foi declarada cessada com efeitos a Dezembro de 2014.
- A presente acção de prestação de contas foi intentada em 2017, quando é inequívoca a existência da obrigação da prestação de contas do ex-cônjuge administrador ao outro ex-cônjuge, consubstanciando o produto da venda de um bem comum na posse da recorrida um bem comum.
- A determinação da competência material do tribunal é feita em função do peticionado na acção e, sendo o pedido formulado pelo recorrente o da prestação de contas pela recorrida, verifica-se que, após a dissolução do casamento, tendo esta ficado a deter bens comuns, deles retirando os frutos e utilidades, deve prestar contas ao recorrente desde a data da propositura da acção de divórcio, nos termos do nº1 do artigo 1789º do CC ou da data em que foi declarada a coabitação, no caso previsto no nº2 do artigo 1789º do mesmo código.
- Tendo ficado declarado na sentença que decretou o divórcio que a coabitação entre os cônjuges cessou em Dezembro de 2014, é a partir dessa data que nasce a obrigação da recorrida de prestar contas ao recorrente relativamente ao valor recebido pela venda de o bem imóvel comum e que mantém em sua exclusiva posse.
- O Tribunal de Família e Menores é materialmente competente para julgar a acção de prestação de contas instaurada por um ex-cônjuge contra o outro em função da administração de bens comuns do dissolvido casal, como decorre do artigo 122º da LOSJ, que define a competência destes tribunais e não exclui a acção de prestação de contas e de cuja articulação com o artigo 941º do CPC resulta uma competência por conexão, justificada por elementar razoabilidade e economia processual, atentas as especificidades das questões pessoais e patrimoniais envolvidas.
- Não se mostra necessária a existência de processo de inventário para o recorrente poder lançar mão da acção especial de prestação de contas, já que esta obrigação pode ser exigida ao ex-cônjuge após a dissolução do casamento e abrangendo toda a administração que fez, contada desde a data da cessação da coabitação e mesmo estando a correr termos um processo de inventário em Cartório Notarial nos termos da Lei 23/2013 de 5/3, a competência material para apreciação e decisão da acção de prestação de contas entre ex-cônjuges mantém-se atribuída ao Tribunal de Família e Menores e não ao Cartório Notarial.   
- Deverá ser revogada a decisão recorrida nos termos supra expostos. 
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A recorrida contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso e este foi admitido como apelação, com subida nos autos e efeito devolutivo.
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As questões a decidir são:
I)   Momento da apreciação da excepção da incompetência absoluta.
II) Competência do juízo de família e menores para tramitar os presentes autos. 
III) Existência de conflito de competência.
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FACTOS.
Os factos a considerar são os que constam no relatório do presente acórdão e ainda os seguintes:
A) Na sentença de divórcio que consta a fls 15 e seguintes, proferida no processo nº1129/15.6 T8CSC de Lisboa Oeste, Inst. Central, 3ª secção de Família e Menores, J2, em que era autora a ora ré e era réu o ora autor, foram considerados provados os seguintes factos:
1. Autora e réu contraíram casamento civil no dia 21 de Setembro de 1991 sem convenção antenupcial.
2. Desde Julho de 2013 que o réu trabalha e vive no Qatar e a autora e os filhos vivem em Portugal, na morada constante na P.I.
3. No Natal de 2014 o réu veio a Portugal e ficou alojado em casa dos pais. Desde então, quando vem a Portugal, o réu fica alojado em casa dos pais. Desde Dezembro de 2014 que a autora e o réu não voltaram a viver na mesma casa, nem a ter convívios sociais como casal.
4. Nem a autora, nem o réu pretendem reatar a vida em comum.
B) A referida sentença, que decretou o divórcio entre autor e ré, transitou em julgado em 2 de Fevereiro de 2016 (facto que vem consignado n despacho recorrido).
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO.
I) Momento da apreciação da competência absoluta do tribunal.
O apelante alega que a questão da competência material do tribunal foi logo abordada na petição inicial como questão prévia, pelo que deveria ter sido logo apreciada em despacho liminar, concluindo-se que, ao ordenar a citação da ré sem se pronunciar sobre tal questão, o tribunal criou expectativas nas partes de que aceitava a competência, havendo decisão tácita nesse sentido.
Desde logo se dirá que não assiste razão ao recorrente.
As excepções dilatórias são de conhecimento oficioso, dão lugar à absolvição da instância ou à remessa dos autos para o tribunal competente e podem ser conhecidas em despacho liminar (artigos 576º nº2, 577º, 578º e 590º do CPC), podendo também ser conhecidas no despacho saneador (artigo 595º do esmo código).
Sendo a incompetência absoluta uma excepção dilatória que dá lugar à absolvição da instância ou ao indeferimento liminar (artigos 99º nº1, 278º nº1 a) e 577º a) do CPC), deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa e, se for arguida antes do despacho saneador, pode ser conhecida imediatamente, ou reservar-se a apreciação para esse despacho, sendo que, se for arguida posteriormente ao mesmo despacho, deve ser conhecida imediatamente (artigos 97º e 98º do mesmo código).
Deste modo haverá que concluir que, podendo o tribunal ter conhecido liminarmente da excepção dilatória da incompetência absoluta, nada o impedia de relegar a apreciação da questão para depois dos articulados, como efectivamente fez.
Improcedem, pois, as alegações do recorrente nesta parte.
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II) Competência do Juízo de Família e Menores para tramitar a acção de prestação de contas entre ex-cônjuges.
Tendo o autor e a ré contraído casamento em 1991, com regime de bens de comunhão de adquiridos (artigo 1717º do CC), na constância do qual a administração dos bens comuns não dava lugar à prestação de contas (artigo 1681º nº1 do CC), mas encontrando-se já divorciados, por sentença de decretou o divórcio e transitou em julgado em 2016 e cujos efeitos, quanto às relações patrimoniais dos cônjuges, se retroagem à data da propositura da acção – que, nestes autos não está apurada – (artigo 1789º do CC), pretende o autor que a ré preste contas relativamente a uma quantia proveniente da venda de um imóvel comum, que foi recebida pela ré e que tem estado na sua posse, sem a disponibilizar, nem dar informação sobre a respectiva utilização e administração. 
A questão fundamental objecto do presente recurso é então a de saber se o Juízo de Família e Menores tem ou não competência material para tramitar esta acção especial de prestação de contas, prevista nos artigos 941º e seguintes do CPC.
A competência dos juízos de família e menores, relativa ao estado civil das pessoas e família, está contemplada no artigo 122º da LOSJ (Lei da Organização do Sistema Judiciário aprovada pela Lei 62/2013 de 26/8), cuja redacção é a seguinte:
Nº1- Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar:
a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;
b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum;
c) Acções de separação de pessoas e bens e de divórcio;
d) Acções de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil;
e) Acções intentadas com base no artigo 1647º e no nº2 do artigo 1648º do Código Civil, aprovado pelo Decreto n.º47344, de 25 de Novembro de 1966;
f) Acções e execuções por alimentos entre cônjuges e ex-cônjuges;
g) Outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família.
Nº2- Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos
Como resulta da leitura deste artigo, a lei não prevê a competência material dos juízos de família e menores para tramitar a acção de prestação de contas intentada por um ex-cônjuge contra o outro, não podendo integrar a alínea a) do nº1, como defende o apelante, pois a acção de prestação de contas não é uma acção de jurisdição voluntária a que se referem os artigos 986º e seguintes do CPC, mas sim uma acção de processo especial de jurisdição contenciosa, para a qual têm competência material os juízos cíveis.
Inexistindo competência material dos juízos de família e menores para tramitar a acção de prestação de contas, também não existe uma competência por conexão por via do nº2 do artigo 122º da LOSJ e do artigo 947º do CPC, uma vez que, ao contrário do que acontecia no âmbito do artigo 1419º do CPC anterior e da Lei 3/99 de 13/1 (que, no seu artigo 81º previa a competência material do tribunal de família para tramitar os inventários subsequentes às acções de divórcio), actualmente a competência para tramitar os inventários passou a estar atribuída aos cartórios notariais, por força da Lei 23/2013 de 5/3 e não aos juízos de família e menores, sem prejuízo da intervenção pontual destes, prevista no nº2 do artigo 122º da LOSJ (neste sentido acs RL de 5/06/2018 e STJ de 19/12/2018, ambos proferidos no processo 503/14 e os dois em www.dgsi.pt), sendo certo que, nos presentes autos, nem sequer existe inventário intentado.
Improcedem, pois, também nesta parte, as alegações do apelante, sendo materialmente competente para tramitar a presente acção os juízos cíveis e não os de família e menores.   
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III) Existência de conflito de competência.
Alega ainda o apelante que o juízo central cível de Cascais já se considerou materialmente incompetente para tramitar a acção, verificando-se, assim, um conflito negativo de competência, que o tribunal, ao abrigo do artigo 111º do CPC, deverá suscitar junto do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça ou do Tribunal de Conflitos.
A existência de uma acção em que o juízo central cível já se declarou materialmente incompetente nunca havia sido alegada nos autos e também não está documentada, nem confirmada pela ré.
De qualquer forma, mesmo que já tenha corrido uma acção no juízo cível, o indeferimento liminar ou a absolvição da instância que aí possam ter ocorrido não dão lugar a um conflito de competência a ser resolvido pela tramitação dos artigos 111º e seguintes do CPC, aplicável aos conflitos de jurisdição ou de competência cuja resolução caiba aos tribunais comuns referidos no nº4 do artigo 110º.
Como resulta do artigo 110º do CPC, os conflitos de jurisdição são resolvidos, conforme os casos, pelo STJ ou pelo Tribunal de Conflitos (este criado pelo Decreto 19 243 de 16/01/31) e os conflitos de competência são solucionados pelo presidente do tribunal de menor categoria que exerça jurisdição sobre as autoridades em conflito.
Não é o caso dos autos, em que, declarada a incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria, tal declaração, nos termos do artigo 100º do CPC, apenas tem valor no processo e não fora dele e só será possível obter a fixação definitiva do tribunal competente por via do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça previsto no artigo 101º do CPC, cuja decisão terá então força de caso julgado material, fora do processo (cfr. Lebre de Freitas CPC anotado, volume 1º, em anotação ao anterior artigo 107º, correspondente ao actual artigo 101º).           
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DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação e confirmar o despacho recorrido.      
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Custas pelo apelante.
2019-02-28

Maria Teresa Pardal
Carlos Marinho  
Anabela Calafate