Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2253/14.8TBFUN-B.L1-6
Relator: GABRIELA DE FÁTIMA MARQUES
Descritores: TORNAS
EXECUÇÃO ESPECIAL
COMPRADORES
HERDEIROS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/03/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I.– A execução especial que incide sobre os bens adjudicados ao devedor de tornas que não cumpriu com o seu pagamento é o modo que é conferido ao credor das tornas de fazer valer o seu direito às mesmas, em substituição da execução comum.

II.– A decisão recorrida ao admitir os herdeiros a possibilidade de, perante as propostas apresentadas por terceiros compradores, licitarem nos termos do artº 820º nº 5 do CPC, assumiu que os herdeiros possuem o estatuto de exequentes nos autos, pois são estes os credores que se apresentam no âmbito da execução especial que decorre do artº 1378º nº 3 do CPC/95.

III.– Face a tal estatuto a dispensa do depósito do preço, à semelhança da licitação dos credores sem que assumam a qualidade de proponentes, resulta das normas adjectivas aplicáveis à venda judicial por força do artº 815º do CPC.


(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–RELATÓRIO:


Nos autos de processo especial de inventário, a que se procedeu por óbito de SLF..., por sentença datada de 9/02/2017, foi homologada a partilha constante do mapa de fls 1215 a 1216, adjudicando aos interessados os quinhões dele constantes.

Na sequência da elaboração e notificação do mapa informativo R..., E... e J..., vieram reclamar o pagamento das tornas devidas pelo interessado M..., que discriminaram da seguinte forma:
A - 490.539,83€, para a interessada R...;
B - 981.578,47C, para o interessado E..., e;
C - 981.578,47€, para a interessada J....
Na sequência foi ordenado o cumprimento do artº 1378º do CPC/95, ou seja, a notificação do interessado para proceder ao depósito das tornas devidas.
Após vicissitudes processuais, o requerido não procedeu ao depósito das tornas devidas, pelo que os requerentes vieram requerer a venda dos bens adjudicados ao interessado M....

Assim, por despacho proferido a 12/12/2016, decidiu-se que: «Notificado o interessado M... para proceder ao depósito do valor devido a título de tornas, este não efectuou qualquer depósito. Ora, prevê o artigo 1378º, nº2 que, quando as tornas não sejam depositadas, podem os requerentes pedir a adjudicação das verbas para preenchimento das respectivas quotas desde que depositem imediatamente a importância devida a título de tornas. Nenhum dos interessados nos autos recorreu a este mecanismo legal.
Ao invés, os demais interessados vieram requerer a venda dos bens adjudicados, o que é legalmente admissível, nos termos do artigo 1378º, nº3 do C.P.C. após trânsito em julgado da sentença homologatória.
Significa isto que, no caso concreto, importa, que se elabore mapa definitivo e não havendo reclamação, seja proferida sentença e após trânsito em julgado desta, se procederá à venda dos bens adjudicados nos termos requeridos. Assim sendo, determino que se elabore mapa definitivo.». Na sequência do mapa definitivo foi homologada a partilha, nos termos sobreditos.

O requerido recorreu da sentença homologatória tendo tal apelação sido julgada improcedente por Acórdão desta Relação datado de 19/10/2017.

Por decisão de 8/2/2018, ficou decidido que: «Transitada em julgado a sentença homologatória de partilha e em face ao requerido pelos credores de tornas, seguirão os autos com vista à venda dos bens adjudicados ao credor de tornas que não as pagou, ou seja, o interessado M..., até onde for necessário para pagamento das tornas devidas, à luz do artigo 1378.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
Notifique os interessados a fim de se pronunciarem quanto à modalidade de venda e a fim de juntarem aos autos certidão actualizada de teor das descrições e inscrições em vigor relativamente aos bens imóveis que foram licitados pelo interessado M....».

A 6/03/2018 foi proferido o seguinte despacho: «Atentos os requerimentos antecedentes, a venda dos bens adjudicados ao interessado M… será efectuada mediante propostas por carta fechada, a anunciar nos jornais regionais da Madeira, venda que terá lugar pelos motivos já expostos no despacho de 08.02.2018 (apenas se corrige lapso que ficou a constar do mesmo despacho, devendo ler-se “(…) devedor de tornas (…)” onde ficou a constar “(…) credor de tornas (…)”.».

Decidida que ficou a venda por proposta em carta fechada vieram os requerentes pedir a adjudicação dos bens licitados, o que foi indeferido com os seguintes fundamentos: «Seguirão os autos nos termos já determinados nos autos para venda por propostas por carta fechada. Os interessados R…, E… e J… vieram pedir a adjudicação dos bens para pagamento parcial do seu crédito de tornas, no requerimento junto aos autos a folhas 1286 e seguintes. Contudo, inexiste fundamento legal para que os autos deixem de seguir termos nos moldes já definidos no despacho de 08.02.2018, já transitado em julgado, com vista à venda dos bens adjudicados ao devedor de tornas que não as pagou (M...). Tal despacho foi proferido na sequência do requerimento dos interessados R..., E... e J... a solicitar que os autos seguissem nesses termos (requerimento junto a folhas 1259 e seguintes a solicitar a venda dos bens adjudicados ao interessado M... até onde seja necessário para o pagamento das tornas). Optaram, pois, os referidos interessados pelo procedimento previsto no artigo 1378.º, n.º 3, do CPC (e não do n.º 2 desse artigo), tendo sido decidido que os autos seguiriam nesses termos.
Assim, o bem será vendido a quem oferecer proposta superior, sem prejuízo de eventual solicitação de dispensa de pagamento total ou parcial de preço por parte do proponente que vier a apresentar maior proposta, caso se mostrem reunidos os pressupostos legais para o efeito.». Foi assim, designada data para a abertura de propostas por carta fechada.

Ocorridas vicissitudes quanto aos bens a vender, nomeadamente a consideração da oneração de um dos imóveis por eventual redução de doação sujeita a colação, decidindo-se que o bem seria transmitido com essa oneração, bem como a rectificação da identificação do bem descrito sob a verba nº 2, procedeu-se à abertura de propostas a 29/06/2021. Nesse acto, tal como consta da acta, ficou decidido, além do mais, que:
«Relativamente à verba nº 1 a proposta mais elevada foi apresentada por Consult N –Consultoria e Investimentos, Lda., no valor de €210.000,00 (duzentos e dez mil euros).
De seguida a Mmª Juiz indagou acerca da possibilidade de os preferentes pretenderem adquirir, não tendo a legal representante da preferente manifestado, enquanto tal, interesse nesse sentido.
De seguida pelo ilustre mandatário dos credores de tornas, Dr. D…, foi solicitada a palavra e no uso da mesma requereu (em súmula: Os três exequentes presentes pretendem adquirir os bens e requerem licitação entre os propoentes de maiores preços, à luz do artigo 820.º, n.º 5, do CPC).
De seguida, explicou a Mm. ª Juiz que, nos termos já aludidos no despacho proferido na presente diligência, o tribunal entendia que os credores de tornas não poderiam beneficiar de compensação, não podendo ser dispensados do pagamento do preço, pelo que, caso licitassem, teriam de efetuar tal pagamento, para adquirirem os bens.
De seguida, cientes desse facto, os credores de tornas, através do Dr. D…, declararam que pretendiam licitar (à luz do artigo 820.º, n.º 5, do CPC).
De seguida, determinou a Mm. ª Juíza que se abrisse licitação entre os proponentes de maior valor em relação a cada bem, e os credores de tornas, à luz do artigo 820.º, n.º 5, do CPC), o que se fez de seguida, com o seguinte resultado:

LICITAÇÕES

Verba nº1
Abriu-se licitações entre o proponente de maior valor, e os credores de tornas, sendo a base de licitação o valor da proposta do dito proponente- a C… – , Lda., a saber, o valor de €210.000,00 (duzentos e dez mil euros), tendo o bem sido licitado pelo credor de tornas E…, pelo valor de 385.000,00€ (trezentos e oitenta e cinco mil euros).

Verba nº2
Relativamente à verba nº 2, verificou-se que a proposta mais elevada foi apresentada por S…, Lda. no valor de €351.000,00 (trezentos e cinquenta e um mil euros) iniciou-se as licitações entre esta proponente e os credores de tornas, sendo a base de licitação o valor da referida proposta, de €351.000,00 (trezentos e cinquenta e um mil euros), tendo o bem sido licitado pela credora de tornas J… no valor de €400.000,00 (quatrocentos mil euros).

Dos Bens Móveis
Relativamente à verba nº 3, a credora de tornas J… .
manifestou vontade de adquirir os bens móveis pelos valores constantes da sua proposta efetuada, coincidentes com os valores anunciados(…)
Neste momento pela Mmª Juiz foram indagados os interessados se estariam de acordo que à interessada J… ficassem adjudicados bens móveis, pelo valor já descrito, tendo os demais interessados credores de tornas respondido afirmativamente, sem que qualquer dos demais presentes tenham manifestado vontade de adquirir tais bens.

Após pela Mmª Juiz foi proferido o seguinte:

DESPACHO
“A proposta efetuada pela interessada J… relativamente aos bens móveis, não foi aceite, pelos motivos que o tribunal já indicou.
Todavia, findas as licitações dos bens imóveis, esta interessada manifestou vontade de a adquiri tais bens móveis, pelos valores constantes da sua proposta.
Em prol da adequação processual, a luz do artº 6 do CPC, e em face à não oposição - não tendo sido deduzida qualquer oposição ao requerido, tendo os demais interessados credores de tornas manifestado concordância com a aquisição (pela interessada J...) de tais bens móveis pelos valores indicados na dita proposta e tendo os mesmo sido colocados à venda para satisfação do crédito de tornas dos interessados, e em face a concordância dos mesmos, conforme o já referido, ficam os bens móveis adjudicados à interessada J... por esses valores.”

De seguida pelo ilustre mandatário das partes foi solicitada a palavra e no uso da mesma, apresentou o seguinte:

REQUERIMENTO
“R… e M… e J… são únicos exequentes e únicos credores no presente processo, pelo que, invocando compensação, requerem ao tribunal que os dispense do pagamento do preço, uma vez que estão entendidos nesse sentido. Pede deferimento.
Pede deferimento.”
De seguida pelo proponente S…, Lda, foi solicitada a palavra e no uso da mesma requereu (em súmula: a sociedade não concorda com o requerido, relativamente à dispensa de depósito do preço, o que não está enquadrado no capítulo para a venda mediante em carta fechada, nos termos do artº 824º do CPC e o que possibilitaria a realização e conluios dos exequentes, em prejuízo dos demais proponentes).
Determinou a Mm. ª Juiz a transcrição do requerimento, o que se faz, nos seguintes termos: “A sociedade SI não concorda que os exequentes sejam dispensados do depósito do preço. Essa possibilidade não está enquadrada no âmbito do capítulo da venda mediante propostas por carta fechada, e no limite, se todos acordassem em licitar até a um valor excêntrico, para cobrir todas as propostas, podem em conluio acertar “a gente acerta para ficar um determinado valor” e os demais proponentes ficavam inibidos de apresentar e validar as suas propostas. Estamos aqui perante proponentes, nesta fase, que não depositaram caução, e sobre esse tema o Tribunal já muito bem se decidiu e agora querem vir cobrir o valor das propostas dos aqui proponentes, no caso, a sociedade representada SI, sem pagar um único euro ao tribunal.”
Questionada pela Mm. ª Juiz qual o interesse da sociedade nesta questão, a mesma prosseguiu, referindo o seguinte:
“O interesse é licitar e ficar com o imóvel pelo valor que propôs. É que se os senhores não depositarem o preço nos termos do artigo 824, a venda fica sem efeito e prossegue pela venda pela proposta imediatamente inferior. É esse o interesse da sociedade.”».

Determinou-se decidir posteriormente a questão suscitada, e por despacho de 8/07/2021, decidiu-se o seguinte:
«No que concerne ao requerido pelos credores de tornas, no final da diligência de abertura de propostas por carta fechada, no sentido de ser autorizada a dispensa do pagamento do preço, há que indeferir o requerido. Nessa mesma diligência e pelas razões expostas em despacho nela proferido, as propostas que não tinham sido acompanhadas de caução, não foram aceites, tendo o tribunal entendido que os proponentes credores de tornas não poderiam beneficiarem da compensação.
Após abertas todas as propostas, vieram os interessados credores de tornas manifestar o desejo de adquirir os bens, solicitando que fossem abertas licitações entre eles e os proponentes que haviam apresentado as propostas de maior valor, nos termos do artigo 820.º, n.º 5, do CPC. Nessa sequência, o tribunal salientou, na senda do decidido acerca da não aceitação das propostas que não tinham sido acompanhadas de caução, que entendia que os credores de tornas não poderiam beneficiar de compensação, não podendo ser dispensados do pagamento do preço, pelo que, caso licitassem, teriam de efetuar tal pagamento, para adquirirem os bens. Cientes dessa circunstância, reiteraram os credores de tornas o desejo de licitar, nos termos do artigo 820.º, n.º 5, do CPC, e foram abertas as licitações, a essa luz, quanto aos bens imóveis, com o resultado constante na ata, ou seja:
- A verba 1 foi licitada pelo credor de tornas E…, pelo valor de 385.000,00€ (trezentos e oitenta e cinco mil euros), e
- A verba 2 foi licitada pela credora de tornas J…, pelo valor de €400.000,00 (quatrocentos mil euros).
Depois de obtido tal resultado, vieram R… M… e J… salientar que são únicos exequentes e únicos credores no presente processo, e, invocando a compensação, requereram que o tribunal os dispensasse do pagamento do preço, uma vez que estão entendidos nesse sentido.
Há que indeferir o requerido, nos termos já anunciados.
Embora os credores de tornas não sejam os únicos interessado dos presentes autos de inventário, não tendo o interessado M... estado presente da diligência de abertura de propostas por carta fechada, ainda que o mesmo viesse a manifestar concordância com o requerido, não poderia ser alvo de deferimento. Qualquer interessado em adquirir os bens colocados à venda mediante propostas por carta fechada, terá de se submeter às mesmas regras legais existentes, e para adquirir os bens, terá, naturalmente, de pagar o respetivo valor. A partir do momento em que os bens são colocados à venda naquela modalidade, qualquer interessado poderá apresentar propostas, em cumprimento das regras legais estabelecidas e terá a possibilidade de adquirir os bens, consoante as propostas que forem aceites e consoante o resultado das licitações que ocorram (que, no caso concreto, foram abertas à luz do artigo 820.º, n.º 5, do CPC). Há que evitar que os interessados do processo de inventário, mediante acordo entre si, possam afastar qualquer hipótese de outros interessado poderem adquirir os bens, como tão bem explicou a propoente S…, Lda., na parte final da diligência realizada a 29.06.2021. E esta mesma proponente justificou plenamente o interesse na posição que manifestou, já que, conforme decorre do requerimento que apresentou, mantém interesse na aquisição, e esperança que tal possa vir a acontecer, perante a eventualidade de não ser pago o preço na sequência da notificação para o efeito (a que se reporta o artigo 824.º, n.º 2, do CPC), de a venda ficar sem efeito e de o bem ser adquirido pelo proponente que tiver apresentado a proposta de valor imediatamente inferior (possibilidade prevista no artigo 825.º, n.º 1, al. a) do CPC). Importa, assim, garantir o cumprimento das regras legais, independentemente de quem pretenda adquirir os bens em causa (de ser ou não credor de tornas, nos presentes autos de inventário), havendo que assegurar, em qualquer caso, o pagamento do preço, conforme impõe o artigo 824.º, n.º 2, do CPC. Destarte, indefere-se o requerido por R…, M… e J…, não podendo os mesmos beneficiar de compensação nos autos (que redundaria em prejuízo da posição dos demais proponentes, sendo inadmissível à luz 853 nº 2 Código Civil), pelo que, em qualquer caso, para que possam adquirir os bens colocados à venda, sempre terá o respetivo preço de ser pago, nos termos previstos no artigo 824.º, n.º 2, do CPC, sob pena de vir a aplicar o disposto no artigo 825.º do CPC.
Posto isto, notifique-se M… e J…, para virem depositar, no prazo de 15 dias, o preço dos bens que pretendem adquirir, nos termos do artigo 824.º, n.º 2, do CPC, sob pena de se aplicar o artigo 825.º do CPC.».

Inconformados vieram os interessados recorrer, pedindo a revogação do despacho e a substituição por outro que dispense os recorrentes do depósito dos preços de aquisição dos bens adquiridos pela execução, formulando as seguintes conclusões:
«1.–O interessado M... licitou todos os bens da herança deixada por óbito do Pai, S…, falecido em 16/05/2000, e tornou-se, assim, devedor de tornas de elevado valor, aos restantes interessados, R…, M… e J…, que nunca pagou tal como comprovadamente resulta dos autos.
2.–Os recorrentes M... e J..., para satisfação do seu crédito de tornas, no valor global de 1.963.156,84 € (981.578,42+981.578,42 €), requereram a presente execução.
3.–O exequente M... pela presente execução licitou e adquiriu o bem da verba nº 1, pelo preço de 385.000,00 €, manifestamente inferior às tornas a que tem direito, no valor de 981.578,47 €.
4.–E a exequente J... pela execução licitou e adquiriu o bem constante da verba nº 2, pelo preço de 400.000,00 €, manifestamente inferior às tornas a que tem direito, no valor de 981.578,47 €.
5.–Os exequentes M... e J... com base em compensação requereram ao tribunal a dispensa do depósito dos preços pelos quais adquiriram os mencionados bens pela execução, o que foi indeferido pelo douto despacho recorrido (referência 50277921).
6.E a lei civil confere às pessoas reciprocamente credoras e devedoras o direito a qualquer delas livrar-se da obrigação, através de compensação, como é o caso, uma vez que estão em causa dividas judicialmente exigíveis, que têm por objecto coisas fungíveis (artº 847º, nº 1 e 2 do CC).
7.–E a lei processual dispensa os exequentes de depósito dos preços, pelos quais adquiriram bens pela execução, desde que a soma de tais preços seja inferior à quantia exequenda, e não existam nos autos credores graduados, tal como é o caso (artº 815º, nº 1 do CPC).
8.–O tribunal devia reconhecer aos exequentes, e não reconheceu, o direito à quantia do preço, que a lei os dispensa de depositar, pelo que o despacho recorrido violou a disposição legal do artº 815º, nº 2 do CPC.
9.–Da compensação em causa, não resulta prejuízo de direitos de terceiro, aliás, não invocados nos autos, e os únicos credores e exequentes manifestaram-se no sentido da compensação e da dispensa do depósito do preço.
10.–Os exequentes arguem a nulidade do douto despacho recorrido para todos os efeitos legais, com fundamento em violação frontal de disposições legais de carácter imperativo, uma vez que não podem ser afastadas por vontade das partes (artº 815º nº1 do CPC; artº 847º, nº 1, 2 e 3 e artº 294 do CC).
11.–E, a entender-se de modo diferente, então, há erro de julgamento, por violação de lei substantiva (artº 847º do CC/Compensação) ou por má interpretação ou errada aplicação de lei processual (artº 815º nº1 do CPC), que dá lugar à revogação do douto despacho recorrido.».

Inexistiram contra alegações.

O recurso foi admitido neste tribunal.

Colhidos os vistos, cumpre dicidir.   

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Questão a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º .ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim, saber se face à venda dos bens adjudicados aos interessados, na sequência da ausência de pagamento de tornas devidas aos demais herdeiros se podem estes, admitidos a comprar, ficar dispensados do pagamento do valor da compra por compensação dos seus créditos que advêm das tornas devidas.
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II.–FUNDAMENTAÇÃO:

Os elementos fácticos relevantes para a decisão são os referidos no relatório que antecede, devendo ainda considerar-se que:
-No âmbito da conferencia de interessados, realizada no dia 6 de maio de 2015, após a fixação do valor de 100.000€ pelos interessados a cada uma das verbas nºs 1 e 2 e dada a ausência de acordo procedeu-se à licitação, nesta e no que concerne as verbas em causa verificou-se que: A Verba um (imóvel), foi licitada para o interessado M..., pelo valor de 1.750.000 €(um milhão, setecentos e cinquenta mil euros); a Verba dois (imóvel), foi licitada para o interessado M..., pelo valor de 1.200.000 €(um milhão e duzentos mil euros).
-No âmbito da abertura de propostas os interessados J... e M... apresentaram propostas de compra da verba nº 2 e nº 1, respectivamente, as quais não foram admitidas, dado ter sido considerado que não foram acompanhadas do pagamento de caução nos termos previsto no artº 824º do CPC.
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III.–O Direito:

Antes de abordarmos o objecto do recurso em concreto importa ter presente que os presentes autos de inventário foram intentados a 1 de junho de 2000, pelo que quanto aos tramites processuais aplicáveis no âmbito do processo especial de inventário haverá que considerar o regime do Código de Porcesso Civil de 1961 (aprovado pelo Decreto-Lei nº 44129, de 28 de dezembro de 1961), na versão subsequente à Reforma de 1995 (operada pelo Decreto-Lei nº 329/95, de 12 de dezembro). Com efeito, e não obstante a posterior revogação dos arts. 1326º a 1392º, 1395º e 1396º, todos do CPC (disposições pertinentes ao processo especial de inventário) pelo art. 6º, nº 2, da Lei nº 29/2009, de 29 de junho (ela própria posteriormente revogada pela Lei nº 23/2013, de 05 de Março, em vigor desde 02 de Setembro de 2013, que aprovou o Regime Jurídico do Processo de Inventário), o art. 7º do mesmo diploma ressalvou a aplicação do novo regime aos processos de inventário que, à data da sua entrada em vigor, se encontravam pendentes. Acresce que actualmente a Lei nº 117/2019, de 13.9, que entrou em vigor em 1.1.2020, veio, além do mais, revogar o regime jurídico do processo de inventário instituído pela Lei nº 23/2013, de 5.3, aprovando um novo regime do inventário notarial e reintroduzindo no Código de Processo Civil (arts. 1082º a 1135º) o inventário judicial.
Logo, quanto à parte adjectiva que se prende com o processo de inventário todas as normas mencionadas são relativas ao CPC/95, aplicável aos presentes autos.
A questão a decidir tem na sua génese a licitação pelo interessado M... em bens que excedem a sua quota e, logo, a obrigação constituída de pagamentos de tornas aos demais interessados/herdeiros.
Desde já se adianta, no que respeita ao pagamento das tornas, que o anterior regime jurídico do processo de inventário que constava da Lei 123/2013 de 5 de Março não instituia qualquer inovação relativamente ao anteriormente previsto sobre esta matéria. Designadamente, por referência ao art.º 1378.º do anterior C.P.C. que tinha por epígrafe “pagamento ou depósito das tornas”, constatamos que o art.º 62.º daquele diploma, com a mesma epígrafe, é decalcado daquela norma, apenas variando a numeração dos artigos para os quais remete. Actualmente rege o artº 1116º do actual CPC (na redacção dada pela Lei nº117/2019, conforme aludimos supra) que se algum dos interessados licitar numa pluralidade de verbas ou lotes cujo valor, no seu conjunto, ultrapasse o necessário para o preenchimento da sua quota, pode qualquer dos outros interessados opor-se ao excesso, requerendo que as verbas em excesso ou algumas delas lhe sejam adjudicadas pelo valor resultante da licitação, até ao limite do seu quinhão. Mais dispondo o nº 2 do mesmo preceito que cabe ao licitante escolher, de entre todas as verbas ou lotes em que licitou, as suficientes para o preenchimento da quota que lhe cabe no património hereditário.
Em anotação a tal preceito referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa que tal norma «permite um maior equilíbrio no preenchimento dos quinhões na medida em que dá prevalência na sua composição em substância, o que previne o apossamento do acervo hereditário por parte de interessado ou interessados que, atenta a sua maior capacidade económica, se apresentarem a licitar em diversos bens. Assim, se algum licitar numa pluralidade de verbas ou lotes cujo valor, no seu conjunto, ultrapasse o valor necessário para preencher o respectivo quinhão, qualquer dos demais interessado pode deduzir oposição, requerendo que as verbas em excesso, ou algumas delas, lhe sejam adjudicadas, até ao limite do seu quinhão» (in Código de Processo Civil Anotado, vol II, pág. 599).
Com efeito, por força deste preceito a figura da oposição ao excesso de licitação foi deslocada e antecipada para a conferência de interessados, pelo que no regime actual tal pretensão deve ser deduzida, com efeitos preclusivos, na própria conferência de interessados.
Vigorando in casu o CPC/95 é no âmbito deste que haverá que aferir a forma como se processam os autos quando ocorre excesso de bens licitados. Assim, em primeiro lugar é a secretaria que, organizando o mapa da partilha, vai informar no processo a circunstância de que os bens licitados excedem a quota do respectivo interessado, conforme decorre dos art.º 1375.º e 1376.º do C.P.C.
Os interessados a quem haja de caber tornas são então notificados para requererem a composição dos seus quinhões ou reclamar o pagamento das tornas, concedendo-lhes assim o art.º 1377.º n.º 1 do C.P.C. o direito de optar por uma das duas situações como forma de preencherem o seu quinhão: receber tornas ou a adjudicação das verbas licitadas em excesso pelo devedor de tornas.
Se a opção for pelo pagamento das tornas, seguem-se os procedimentos previstos no art.º 1378.º do C.P.C.
Logo, dispõe o art. 1377º, nº 1, do CPC, na versão aqui considerada, que os «interessados a quem hajam de caber tornas são notificados para requerer a composição dos seus quinhões ou reclamar o pagamento das tornas».
Mais se lê, no nº 2 e nº 3 do citado preceito, que, «[s]e algum interessado tiver licitado em mais verbas do que as necessárias para preencher a sua quota, a qualquer dos notificados [interessados a quem hajam de caber tornas] é permitido requerer que as verbas em excesso ou algumas que lhe sejam adjudicados pelo valor resultante da licitação, até ao limite do seu quinhão», e podendo o licitante «escolher, de entre as verbas em que licitou as necessárias para preencher a sua quota».
Tal como nos diz Lopes Cardoso, in. Partilhas Judiciais, Vol. II, pág. 413: “… tornas haverá sempre que alguém licite em mais bens do que tem direito, ou quando, por virtude da composição dos lotes haja excesso da aludida quota.”
Deste regime resulta que o devedor de tornas, a pedido do credor das tornas que opta por as receber, é notificado pelo tribunal para as pagar ou depositar, na medida em que o valor dos bens que licitou excedem a sua quota hereditária.
Não procedendo o devedor das tornas ao seu pagamento ou depósito, tem ainda assim o credor das tornas novamente duas opções ao seu dispor, podendo requerer: (i) a adjudicação dos bens adjudicados em excesso ao devedor para preenchimento da sua quota, procedendo logo ao depósito das tornas que excedem o seu valor; (ii) a venda dos bens adjudicados ao devedor no processo de inventário, para que as tornas sejam pagas a partir do produto da venda de tais bens.
Com efeito, prescreve o nº 1 do art. 1378º que «[r]eclamado o pagamento das tornas, é notificado o interessado que já de as pagar, para as depositar», acrescentando o nº 2 do mesmo artigo que «[n]ão sendo efetuado o depósito, podem os requerentes pedir que das verbas destinadas ao devedor lhes sejam adjudicadas, pelo valor constante da informação prevista no artigo 1376.º, as que escolherem e sejam necessárias para preenchimento das suas quotas, contante que depositem imediatamente a importância das tornas que, por virtude da adjudicação, tenham de pagar. (…)».
E, nos termos do nº 3 do citado artigo 1378º, «[p]odem também os requerentes pedir que, transitada em julgado a sentença, se proceda no mesmo processo à venda dos bens adjudicados ao devedor até onde seja necessário para o pagamento das tornas».
No caso vertente foi este último o caminho seguido pelos recorrentes, que após terem sido notificados do mapa informativo, onde consta o excesso de licitação e o pagamento de tornas pelo recorrido, solicitam a notificação deste para proceder ao depósito dos valores devidos a cada um dos herdeiros a título de tornas. Face ao incumprimento por parte do licitante e devedor solicitaram os interessados a venda dos bens licitados em excesso.
Escreve a este propósito Lopes Cardoso (in ob cit. págs. 452-453): «Está aqui a criação de um novo, privativo e prático, processo executivo, embora especial.
Regra geral, o direito definido executa-se com base em título idóneo a esse fim (…), mediante formalismo próprio.
No caso considerado tudo é diferente, pois o credor das tornas limita-se a pedir, em simples requerimento, o que no nº 3 do art. 1378.º se lhe consente. Então, formulado tal pedido e transitada que seja a sentença homologatórias das partilhas, procede-se à venda, no próprio processo de inventário dos bens adjudicados ao devedor até onde seja necessário para pagamento do seu débito ao requerente, isto sem haver necessidade de lhe instaurar qualquer processo executivo, de o citar para o efeito de nomear bens à penhora.».

O legislador veio consagrar uma forma de execução especial mais expedita e fácil, que apenas incide sobre os bens adjudicados em excesso ao devedor de tornas, a ter lugar no âmbito do processo de inventário, facilitando ao interessado com direito às tornas a satisfação do seu crédito e evitando o recurso ao processo executivo comum.

Tem sido entendido que esta execução especial que incide sobre os bens adjudicados ao devedor de tornas que não cumpriu com o seu pagamento é o modo que é conferido ao credor das tornas de fazer valer o seu direito às mesmas, em substituição da execução comum, estando-lhe por isso vedado o recurso à mesma, designadamente para que se faça pagar da dívida de tornas por outros bens que não aqueles que foram partilhados no âmbito do processo de inventário.

Neste sentido, se pronunciou  o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/04/2007 no proc. 53-D/1998.C1 in. www.dgsi.pt ao referir: “Em suma, a cobrança coerciva, não só das tornas mas também dos juros devidos pela demora no pagamento das tornas reclamadas, deve ser efectivada nos termos do n.º3 do art. 1378º do CPC, só podendo a venda incidir sobre bens adjudicados ao devedor de tornas e realizar-se no processo de inventário. Sempre vedado, pois, ao credor de tornas e juros instaurar uma execução por apenso ao inventário e penhorar outros bens do devedor que advieram a este por título diverso da adjudicação em inventário.”
Também foi esta a orientação seguida pelo Acórdão da Relação do Porto proferida a 9/05/2019 no proc. Nº 798.18.0T8PNF.P1, ao referir que:« Não podemos esquecer que o processo de inventário se destina a pôr termo à comunhão hereditária, pelo que surgindo o crédito de tornas no âmbito da partilha do património da herança, a sua cobrança encontra-se limitada pelos bens ou direitos que compõem a herança. O crédito de tornas dos AA. resulta da composição deficitária do seu quinhão hereditário e a dívida de tornas da R. também é a que resulta do seu quinhão preenchido em excesso, pelo que só os bens que lhe foram adjudicados no processo de inventário é que podem responder pela dívida de tornas.

Tal interpretação é não só a que melhor vai ao encontro do previsto do art.º 1378.º do C.P.C. que não constitui apenas uma norma de direito processual como considerou a sentença recorrida, mas antes estabelece o regime a que está sujeito o cumprimento da dívida de tornas, mas também a que se coaduna com a circunstância da herança constituir um património autónomo.

Como é pacífico, a herança indivisa tem a natureza jurídica de património autónomo sendo constituída por uma universalidade de bens, sendo que cada um dos chamados à sucessão é titular de uma quota que incide sobre essa mesma universalidade e não sobre quaisquer bens específicos – só com a realização da partilha e repartição dos bens se concretiza tal direito.

Conforme resulta dos art.º 2068.º e 2097.º do C.Civil, pelas dívidas da herança apenas responde o património que a integra e já não o património de cada herdeiro.

No art.º 2071.º do C.Civil vem contemplada a regra da responsabilidade limitada do herdeiro pelos encargos da herança, na sequência da consideração da mesma como um património autónomo, na consagração do princípio de que só os bens da herança respondem pelos encargos hereditários.

Mesmo após a realização da partilha, cada um dos herdeiros só responde pelos encargos que sejam devidos na proporção da quota que lhe caiba na herança, como estabelece o art.º 2098.º n.º 1 do C.Civil, a menos que os próprios herdeiros deliberem outra coisa. A regra é a limitação da responsabilidade do herdeiro aos bens que recebe da herança. (…) [a] dívida de tornas constitui-se no âmbito e por causa da partilha do património hereditário, considerando-se que a razão de ser que leva o legislador a confinar aos bens da herança a garantia pelas dívidas ou encargos dela, tem neste âmbito igual pertinência, fundamentando o entendimento de que a dívida de tornas está limitada na sua garantia patrimonial ao património da herança recebido pelo devedor de tornas, o que também encontra acolhimento no regime previsto no art.º 1378.º n.º 3 do C.P.C.»

Porém, a propósito desta temática e perante tal decisão do Acórdão da Relação do Porto, decidiu-se no Acórdão do STJ, proferido no mesmo proc. nº 798.18.0T8PNF.P1.S1, datado de 23/01/2020 (ECLI in https://jurisprudencia.csm.org.pt) que:«(…) afigura-se que a orientação assumida pela Relação parte do pressuposto erróneo de considerar que, porque a dívida de tornas se constitui “no âmbito e por causa da partilha do património hereditário”, lhe é extensível, sem mais, o princípio da limitação da garantia patrimonial vigente para as dívidas e os encargos da herança.».

Prosseguindo «O crédito de tornas é um crédito que resulta de uma actividade (a licitação) exercida, com finalidades aquisitivas, pelo herdeiro que arrematou os bens pelo valor que considerou adequado. A esse crédito corresponde, do lado passivo, uma dívida própria do herdeiro licitante, contraída mediante a intervenção da sua vontade no acto de licitação, dívida à qual se aplicam as regras gerais da responsabilidade obrigacional, designadamente em matéria de prescrição (cfr. Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. II, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 1980, pág. 431) e de responsabilidade patrimonial do devedor.».

Ora, também aqui se discute a questão de os recorrentes, perante a ausência de pagamento de tornas por parte do recorrido, terem feito uso do procedimento executivo, incidental e simplificado, que se encontrava previsto no nº 3 do art.1378º do antigo CPC (procedimento que actualmente se encontra previsto no nº 2 do art. 1122º do CPC, na redacção da Lei nº 117/2019, de 13 de Setembro), em nada altera a natureza do crédito de tornas e da correspondente dívida.

Como bem se frisa no Acórdão do STJ a que vimos fazendo referência «(a) função desse procedimento circunscreve-se ao processo de inventário, sem afectar nem o conteúdo nem o objecto do direito de crédito dos aqui AA., pelo que, na parte em que o mesmo não foi satisfeito respondem todos os bens do devedor(…)». Prosseguindo ainda que «[e]sta orientação é aquela que se entende ser compatível com o facto de o crédito de tornas resultar do reconhecimento pela sentença homologatória da partilha, sendo o procedimento executivo do referido nº 3 do art. 1376º do antigo CPC um procedimento incidental e simplificado que não preclude a possibilidade de lançar mão da execução comum nem dos meios de conservação da garantia patrimonial(…). Por outras palavras, o facto de os bens terem sido licitados por um determinado valor e de os credores da herança não terem pedido a sua adjudicação, assim como o facto de os bens terem sido vendidos por valor inferior ao da licitação, são vicissitudes que não afectam o reconhecimento de, com a homologação da partilha, se ter constituído a favor dos herdeiros um crédito que segue as regras gerais do direito substantivo.».

Tal solução, transportada para a questão que ora nos ocupa, significa que o crédito dos recorrentes sobre o recorrido obedece às regras gerais de direito, pelo que tendo o interessado M... licitados todos os bens da herança deixada por óbito do Pai, S…, falecido em 16/05/2000, deve nomeadamente aos demais filhos ( bem como à interessada viúva) o valor das respectivas tornas, neste caso dos herdeiros M... e J... o valor global de 1.963.156,84 € (981.578,42+981.578,42 €).

Foi com base nesta dívida que os ora interessados requereram a venda dos bens e foi na qualidade de herdeiros e admitidos como exequentes, nos termos do artº 820º nº5 do CPC, que os mesmos manifestaram vontade de adquirir o bem e admitidos nesses termos licitaram as verbas nº 1 e 2, respectivamente. Tendo, o recorrente M..., nessa execução licitado o bem da verba nº 1, pelo preço de 385.000,00 €, inferior às tornas a que tem direito, no valor de 981.578,47 €. E a exequente J... licitado o bem constante da verba nº 2, pelo preço de 400.000,00 €, também inferior às tornas a que tem direito, no valor de 981.578,47 €.

Entendem os recorrentes que não lhes está vedado invocar a compensação por forma a isentá-los do depósito dos preços pelos quais adquiriram os mencionados bens pela execução. A questão, porém, não se prende apenas com uma eventual compensação, mas sim a forma como deve ser encarada quer a dívida, quer a forma como é executada e a solução do litígio passar por esta questão essencial.

O Tribunal recorrido sustenta o indeferimento da dispensa de pagamento do depósito do preço no seguinte: «Embora os credores de tornas não sejam os únicos interessado dos presentes autos de inventário, não tendo o interessado M... estado presente da diligência de abertura de propostas por carta fechada, ainda que o mesmo viesse a manifestar concordância com o requerido, não poderia ser alvo de deferimento. Qualquer interessado em adquirir os bens colocados à venda mediante propostas por carta fechada, terá de se submeter às mesmas regras legais existentes, e para adquirir os bens, terá, naturalmente, de pagar o respetivo valor. A partir do momento em que os bens são colocados à venda naquela modalidade, qualquer interessado poderá apresentar propostas, em cumprimento das regras legais estabelecidas e terá a possibilidade de adquirir os bens, consoante as propostas que forem aceites e consoante o resultado das licitações que ocorram (que, no caso concreto, foram abertas à luz do artigo 820.º, n.º 5, do CPC).
Há que evitar que os interessados do processo de inventário, mediante acordo entre si, possam afastar qualquer hipótese de outros interessado poderem adquirir os bens, como tão bem explicou a propoente S…, Lda., na parte final da diligência realizada a 29.06.2021. E esta mesma proponente justificou plenamente o interesse na posição que manifestou, já que, conforme decorre do requerimento que apresentou, mantém interesse na aquisição, e esperança que tal possa vir a acontecer, perante a eventualidade de não ser pago o preço na sequência da notificação para o efeito (a que se reporta o artigo 824.º, n.º 2, do CPC), de a venda ficar sem efeito e de o bem ser adquirido pelo proponente que tiver apresentado a proposta de valor imediatamente inferior (possibilidade prevista no artigo 825.º, n.º 1, al. a) do CPC).
Importa, assim, garantir o cumprimento das regras legais, independentemente de quem pretenda adquirir os bens em causa (de ser ou não credor de tornas, nos presentes autos de inventário), havendo que assegurar, em qualquer caso, o pagamento do preço, conforme impõe o artigo 824.º, n.º 2, do CPC. Destarte, indefere-se o requerido por R…, M...  e J..., não podendo os mesmos beneficiar de compensação nos autos (que redundaria em prejuízo da posição dos demais proponentes, sendo inadmissível à luz 853 nº 2 Código Civil), pelo que, em qualquer caso, para que possam adquirir os bens colocados à venda, sempre terá o respetivo preço de ser pago, nos termos previstos no artigo 824.º, n.º 2, do CPC, sob pena de vir a aplicar o disposto no artigo 825.º do CPC.».

A decisão recorrida labora em erro na sua apreciação quando alude que está em causa a defesa de todos os interessados na venda, pois ao admitir os herdeiros a possibilidade de, perante as propostas apresentadas por terceiros compradores, licitarem nos termos do artº 820º nº 5 do CPC, assumiu que os herdeiros possuem o estatuto de exequentes nos autos, pois são estes os credores que se apresentam no âmbito da execução especial que decorre do artº 1378º nº 3 do CPC/95.

Não vislumbramos que aos herdeiros tenha sido permitido licitar, nos termos em que foi admitido aquando da abertura de propostas, mas se entenda que os mesmos não podem beneficiar do demais regime aplicável aos exequentes, em nome de um princípio de impossibilidade de frustração dos interesses dos demais compradores, princípio esse que não está a coberto do previsto no âmbito do artº 853º nº 2 do CC, relativo à exclusão da compensação. Pois é certo que não é admitida a compensação, se houver prejuízo de direitos de terceiro, constituídos antes de os créditos se tornarem compensáveis, ou se o devedor a ela tiver renunciado. In casu, efectuada uma venda judicial ao abrigo de um procedimento executivo, a natureza ou génese de tal procedimento não afasta as normas que presidem a tal venda, mormente a qualidade e estatuto de exequentes, figurando estes como os herdeiros a quem são devidas tornas pelo herdeiro devedor, assumindo este a posição de executado.

Logo, não está tanto em causa a eventual compensação em termos gerais e previstos na lei substantiva, ainda que em termos dogmáticos a situação se reconduza a tal figura, o que ocorre é que a dispensa do depósito do preço, à semelhança da licitação dos credores sem que assumam a qualidade de proponentes, resulta das normas adjectivas aplicáveis à venda judicial.

Assim, como bem frisam os recorrentes, tal prerrogativa assiste aos exequentes/herdeiros por força do artº 815º do CPC. Pois, nos termos de tal preceito o exequente que adquira bens pela execução é dispensado de depositar a parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância que tem direito a receber; igual dispensa é concedida ao credor com garantia sobre os bens que adquirir.

Importa referir que tal decisão em nada prejudica o herdeiro devedor que face ao valor acrescido que decorre da licitação dos herdeiros credores vê a sua dívida diminuída, não assistindo ao proponente, terceiro em relação aos herdeiros do inventário, qualquer direito constituído, assim, como esse direito não existe ou se sobrepõe no caso de venda judicial ocorrida em qualquer processo executivo, em que ao exequente assiste o direito de licitar nos bens levados à venda judicial e por conseguinte, ficar dispensando do depósito do preço pelo qual exerce tal direito.

Do exposto, conclui-se pela procedência da pretensão recursória, declarando-se que os recorrentes ficam dispensados do pagamento dos bens pelos quais licitaram, nos termos do artº 815º nº 1 do CPC, revogando-se, assim, o despacho recorrido.
***

IV.–Decisão:

Por todo o exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso de apelação interposto pelos recorrentes e, consequentemente, revoga-se o despacho que não admitiu a dispensa do pagamento do preço dos bens objecto de licitação pelos herdeiros/credores, substituindo-o por outro que admita tal dispensa nos termos do artº 815º do CPC. 
Custas pelo apelado.
Registe e notifique.



Lisboa, 3 de Fevereiro de 2022



Gabriela de Fátima Marques
Adeodato Brotas
Vera Antunes