Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
953/15.4PBPDL.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
INTERESSE PROTEGIDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: - Para que o lesado tenha direito a indemnização, em situações de violação de lei que protege interesses alheios, necessário se torna “que a tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma violada e que o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar.
-  Se dos factos que provados não consta que o demandante fosse proprietário do motociclo, à data do acidente de que resultaram os danos patrimoniais cuja reparação impetra, como também dos mesmos não se pode concluir pela existência de qualquer relação contratual entre o demandante e esse proprietário - mormente de comodato, em que quem circularia com a viatura seria o demandante (concessão gratuita do gozo da coisa pelo proprietário ao accipiens, ora demandante, com a obrigação de a restituir) - não se pode aceitar o direito de exigir da demandada seguradora a indemnização pelos danos patrimoniais em causa, o que apenas seria reconhecido se demonstrado o interesse directo na reparação do motociclo de que teria o respectivo gozo o que lhe conferiria tutela judiciária para este gozo, podendo inclusivamente fazê-lo valer em juízo,.
Decisão Texto Parcial:Proc. nº 953/15.4PBPDL, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores – Juízo de Competência Genérica de Vila Franca do Campo

Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO

1. Nos presentes autos com o NUIPC 953/15.4PBPDL, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores – Juízo de Competência Genérica de Vila Franca do Campo, em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular, foi a demandada “SU, S.A.”, condenada, por sentença de 22/03/2018, nos seguintes termos:

A pagar ao demandante Hospital do Divino Espírito Santo de Ponta Delgada, E.P.E., a quantia de 124,36 euros, acrescida dos juros, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido até efectivo e integral pagamento.

A pagar ao demandante NM, a título de danos não patrimoniais sofridos por este, a quantia de € 1.500,00, acrescida dos juros, contabilizados à taxa legal desde a data da notificação da presente decisão até efectivo e integral pagamento.

A pagar ao demandante NM, a quantia de € 3.938,01, a título de danos materiais ocasionados no motociclo de matrícula 9I-JG-53, acrescida dos juros, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido até efectivo e integral pagamento;

A pagar ao demandante NM, as quantias indemnizatórias concernentes aos demais danos patrimoniais sofridos pelo mesmo (estragos verificados no vestuário, calçado e capacete, que trajava ou envergava no momento do acidente), que se vierem a apurar em sede de execução de sentença.

2. A demandada “SU, S.A.” não se conformou com a decisão e dela interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

1- Dos depoimentos testemunhais mais concretamente do depoimento ou declarações do próprio lesado resulta que o velocípede à data do acidente não era sua propriedade do mesmo (NM) a este proposto vejamos as declarações do próprio que assim o afirma:
[depoimento gravado, disponível em aplicação informática, consignando-se o seu início às 10:36:13 horas e o seu termo às 11:27:25 horas]
Mg - Diga-me outra coisa a mota não era sua?
Dem - Não, era do NM.( sublinhado nosso)
Mr      - Continuou a circular normalmente como estava? Ou ele reparou a mota?
Dem    - Não, a mota está... está toda partida.
MR      - Está normal! Aquilo são uns esfolões.
Dem    - Está partida mesmo.
MR      - Hã?
Dem    - Está partida mesmo.
MR      - Então? Ele não anda com a mota?
Dem    - Não, "
2-         E continua mais adiante:
MR     - O senhor pagou alguma coisa a ele?
Dem   - Como assim paguei alguma coisa?
MR- Se lhe deu algum dinheiro por causa disso, por causa da reparação da mota?
Dem   - Não.
Mr      - Não deu.
Dem   - Não senhora..."
J      - Faça favor.
MR - Então vamos lá ver, aquela mota, o senhor já conduzia a mota há quanto tempo?
Dem     - Há quatro ou cinco anos.
MR - Antes do acidente? Até pensei que não tinha percebido bem! Antes do acidente o senhor já conduzia a mota há quatro ou cinco anos?
DEM    - Sim senhora.
MR     - E a mota não era sua??
Dem     - Não, era do NM.
MR      - Era do NM.
Dem   - Estava no nome do NM, só que o NM, nós éramos vizinhos...
3- Decorre das próprias declarações do demandante que para além de não ser o proprietário do velocípede não procedeu a qualquer reparação do mesmo ou até mesmo qualquer orçamentação do prejuízo.
4- Não juntou aos autos qualquer factura ou apresentou qualquer outro recibo de despesa, para além de um orçamento provisório feito pela própria demandada.
5- É manifesto que face às declarações do demandante, o motociclo não foi reparado e não pertencia aquele e que apesar de o deter ou conduzir no momento do acidente não indemnizou o seu proprietário.
6- Assim, e quanto a esta matéria em nosso entendimento deverá ficar assente apenas o seguinte:
17. O veículo conduzido por NM nas circunstâncias referidas em 1) era um motociclo de marca Kawasaki, com a matrícula …53,
E ainda quanto ao quesito seguinte.
18. O mesmo sofreu danos decorrentes do embate cujo valor da reparação não foi possível apurar.
7- Pelo que, deve a demandada ser absolvida do pedido quanto aos danos patrimoniais sofridos em consequência do dano provocado no velocípede.
Mesmo que assim não fosse:
8- Sempre se dirá que nunca a Demandada ora recorrente poderia ser condenada no pedido de indemnização civil deduzido nos presentes autos porquanto o arguido não vem acusado de um crime de danos:
9- Nos termos do disposto no art.º 129 do CP e do artigo 71º e seguintes do CPP é possível deduzir pedido civil enxertado no processo penal por danos ocorridos em consequência do crime que o arguido vem acusado e não de outros.
10- Nos autos "sub judice" o arguido vem acusado de um crime de ofensas corporais negligentes. (Art.º 143 n.º 1 do Código Penal)
11- No entanto, a demandada foi condenada a liquidar uma indemnização decorrente, entre outros, de danos sofridos no velocípede, decorrentes de um crime de dano do qual o lesado não efetuou qualquer queixa, nem tão pouco o arguido vinha acusado.
12- Com um crime de ofensa à integridade física o legislador visa proteger a integridade física de cada individuo e no crime de dano a propriedade.
13- Estes tipos de ilícito criminais não estão relacionados não dependem um do outro pelo que a demandada só poderá ser condenada nos danos decorrentes das lesões corporais sofridas pelo lesado.
14- Os fundamentos do pedido civil têm de revelar uma unidade material e de facto com os pressupostos de crime que o arguido vem acusado.
15- O que não acontece no caso dos presentes autos quando a sentença condena a demandada/ora recorrente no pagamento de 3.938,01 euros, pelos danos ocorridos no velocípede.
16- A sentença ao condenar a recorrente na importância de 3.938,01 euros referentes aos danos patrimoniais sofridos pelo demandante viola o disposto no art.º 129 do CP e art.º 71 e seguintes do CP. P.

3. Respondeu o demandante NM à motivação de recurso, pugnando pela sua improcedência.

4. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto apôs o seu “Visto”.

5. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.


II - FUNDAMENTAÇÃO

1.   Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento.
Não verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar.

2.   A Decisão Recorrida

O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição):

1. No dia 28.06.2015, pelas 00hl5, no cruzamento formado pela Estrada Regional … e pela Rua da I. , Vila Franca do Campo, o arguido, que se fazia transportar no veículo de matrícula …95, seguindo na direcção Rua da Lombinha - Rua da Igreja, não efectuou a paragem obrigatória imposta pelo sinal vertical STOP existente no local, fazendo com que NM, que se deslocava no motociclo de matrícula 91 -JG-53, para evitar o embate frontal com a viatura conduzida pelo arguido, se tenha desviado para o lado esquerdo, vindo a embater com a manete do travão do lado direito do motociclo na traseira da viatura conduzida pelo arguido, caindo no chão;
2. Como consequência directa e necessária da colisão entre os veículos mencionados em 1), provocada pelo arguido, sofreu NM lesões (na pele do terço médio da face anterior da perna esquerda, ficou com uma área hipopigmentada com 2x1. de maior eixo longitudinal), que lhe determinaram 3 dias para a consolidação médico-legal, com dois dias de afectação da capacidade de trabalho geral e para a capacidade de trabalho profissional;
3. O arguido, se conduzisse com o respeito pelas regras de condução e tivesse imobilizado o veículo em obediência ao sinal de paragem STOP e conduzido com o cuidado que lhe era exigível, teria evitado o embate referido em 1);
4. O arguido, ao actuar da forma descrita, agiu de forma livre e consciente, com violação e desrespeito pelas regras de circulação rodoviária, que conhecia e devia respeitar, e em total desrespeito às restrições impostas para o exercício da condução na via pública, conduzindo, assim, de forma imprudente;
5. O embate e as suas consequências ficaram a dever-se à circunstância de o arguido, na ocasião, conduzir com manifesta falta de cuidado e de atenção, em desrespeito por regras elementares de circulação rodoviária, as quais podia e devia ter adoptado, de modo a evitar um resultado que não previu mas poderia e deveria prever, e em violação das restrições que lhe eram impostas, bem sabendo que a sua conduta era prevista e punida por lei;
DO PEDIDO DF. INDEMNIZAÇÃO CIVIL FORMULADO PELO HOSPITAL OO DIVINO ESPÍRITO SANTO PE PONTA DELGADA. EPE
6. Em consequência da conduta do arguido, NM sofreu as lesões referidas em 2), havendo dado entrada no Serviço de Urgência do Hospital do Divino Espírito Santo de Ponta Delgada, onde lhe foi prestada assistência, havendo sido ministrados os devidos cuidados de saúde;
7. Ao ministrar os cuidados de saúde referidos em 6), o Hospital do Divino Espírito Santo de Ponta Delgada incorreu em despesas no montante de 6 124,36 (cento e vinte c quatro euros e trinta e seis cêntimos);
8. O arguido, na qualidade de proprietário do veículo com a matrícula 47-HF-95, havia transferido a responsabilidade civil por danos causados a terceiros à SU SA;
DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL FORMULADO POR NM
9. O arguido, enquanto condutor do veículo com a matrícula 47-..-.., havia transferido a responsabilidade civil emergente de danos resultantes de acidentes de viação por aquele causados para a AS, SA, actualmente denominada SU, SA;
10. Como consequência imediata do embate referido em 1) e subsequente queda no solo, NM sofreu dores muito intensas nas partes do corpo atingidas;
11. Depois, no momento do embate e imediatamente após o mesmo, NM sofreu um profundo choque emocional, tendo ficado seriamente assustado e perturbado, em razão do embate e das suas consequências, nomeadamente a projecção e queda no solo;
12. NM teve que se deslocar ao Hospital do Divino Espírito Santo de Ponta Delgada, onde, após ter sido sujeito a observação clínica e tratamentos, teve alta hospitalar;
13. NM sofreu dores persistentes, embora de menor intensidade, durante todo o período de convalescença, que se prolongou por cerca de um mês, com todos os incómodos pessoais e de alteração das rotinas diárias decorrentes da sua situação clínica;
14. NM sofreu o incómodo de muitas noites mal dormidas, em resultado das feridas e das lesões que sofreu por força do acidente;
15. Embora curado clinicamente, NM ficou com sequelas, nomeadamente, cicatrizes, o que lhe causa desgosto;
16. NM ficou com a roupa (casaco, luvas, calças e sapatilhas) e o capacete que usava no momento do embate referido em 1) danificados, tudo por causa do mencionado embate;
17. O veículo conduzido por NM nas circunstâncias referidas em 1) era um motociclo de marca Kawasaki, com a matrícula 53, actualmente sua propriedade, tendo o mesmo ficado danificado;
18. A reposição do motociclo referido em 17) ao seu estado anterior ao embate descrito em 1), por via da sua reparação total, ascende ao custo total de € 3.938.01 (três mil, novecentos e trinta e oito euros c um cêntimo), sendo € 3.485,05 o valor das peças de substituição, €68,75 o dos trabalhos de pintura, € 132,00 o da mão-de-obra necessária e € 600,71 o valor do IVA legalmente devido;
19. NM não recebeu, a qualquer título, da SU, SA ou de quem quer que seja, qualquer quantia para reparação ou indemnização;
Da contestação oferecida pela SU SA aos pedidos de indemnização civil
20. Após o embate referido em 1), o arguido não parou para socorrer o outro interveniente;
21. O embate referido em 1) ocorreu quando o veículo conduzido pelo arguido terminava a passagem no entroncamento;
22. NM seguia numa recta de boa visibilidade, atendendo ao seu sentido de marcha;
DA CONTESTAÇÃO OFERECIDA PELO ARGUIDO. NA QUALIDADE DE INTERVENIENTE ACESSÓRIA DA DEMANDADA. AOS PEDIDOS DE. INDEMNIZAÇÃO CIV1L.
23. O arguido, nas circunstâncias referidas em 1), não percepcionou o descontrolo do motociclo conduzido por NM;
Das Condições Sócio Económicas e Antecedentes Criminais do Arguido em Especial
24. O arguido nasceu no dia 17.12.1969 e está casado;
25. Encontra-se actualmente desempregado, auferindo rendimento social de inserção no montante de cerca de € 500,00 mensais;
26. Reside com a sua esposa, doméstica, e com os dois filhos menores de ambos;
27. O agregado reside em casa própria, pela qual pagam prestação bancária no montante de € 200,00 mensais;
28. Recebem abono referente aos filhos;
29. Como habilitações literárias, o arguido tem o 7.º ano de escolaridade;
30. O arguido não regista antecedentes criminais averbados no seu certificado de registo criminal.

Quanto aos factos não provados, considerou como tal (transcrição):

DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL FORMULADO POR NM filipe SOUSA SlLVA moniz
a) O susto, perturbação e choque emocional sofridos por NM e mencionados em 11) se tivessem devido à violência do embate;
b) NM, após o embate referido em 1), se tivesse ficado a contorcer no chão, com dores fortíssimas, até ser socorrido por terceiros;
c) A roupa e o capacete mencionados em 16) tivessem ficado inutilizáveis;
d) A roupa e o capacete mencionados em 16) tivessem o valor conjunto de € 800,00 (oitocentos euros);
e) O motociclo referido em 17) tivesse ficado quase totalmente destruído;
f) O motociclo referido em 17) fosse, à data mencionada em 1), propriedade de NM;
g) O montante mencionado em 18) não contemple já o valor devido a título de IVA à taxa legal;
da contestação oferecida pelo arguido, na qualidade de interveniente acessória da demandada, aos pedidos de indemnização civil
h) O arguido, nas circunstâncias referidas em 1), não se tivesse apercebido de nada.

Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
(…)
Apreciemos.

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento

Critica a recorrente (demandada) a matéria de facto dada como assente pela 1ª instância nos pontos 17 e 18, dos fundamentos de facto da decisão recorrida, chamando a terreiro segmentos das declarações prestadas em audiência de julgamento pelo demandante NM.

Quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto nesta modalidade, as conclusões do recurso, por força do estabelecido no artigo 412º, nº 3, do CPP, têm de descriminar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

Segundo o nº 4 da mesma disposição legal, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa - nº 6.

Para dar cumprimento a estas exigências legais tem o recorrente nas suas conclusões de especificar quais os pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, quais as provas (específicas) que impõem decisão diversa da recorrida, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as (se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados) ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos (quando na acta da audiência de julgamento se faz essa referência, o que é o caso, o que não obsta a que, também nesta situação, o recorrente, querendo, proceda à transcrição dessas passagens).

Analisando a peça processual recursória, constata-se que cumpridas se mostram as exigências legais.

Assim se entendendo, importa analisar então a prova produzida com o objectivo de determinarmos se consente a convicção formada pelo tribunal recorrido, norteados pela ideia – força de que o tribunal de recurso não procura uma nova convicção, mas apurar se a convicção expressa pela 1ª instância tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e demais elementos probatórios podem exibir perante si (partindo das provas indicadas pela recorrente que, na sua tese, impõem decisão diversa, mas não estando por estas limitado) sendo certo que apenas poderá censurar a decisão revidenda, alicerçada na livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se for manifesto que a solução por que optou, de entre as várias possíveis e plausíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum - artigo 127º, do CPP.

E, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção”, pois “doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”.

Cumpre ter em atenção também que os diversos elementos de prova não devem ser analisados separadamente, antes ser apreciados em correlação uns com os outros, de forma a discernir aqueles que se confortam e aqueles que se contradizem, possibilitando ou a remoção das dúvidas ou a constatação de que o peso destas é tal que não permite uma convicção segura acerca do modo como os factos se passaram.

Analisemos então a factualidade que provada foi considerada, que a recorrente critica, sob a óptica da censura que lhe faz e se tem ou não suporte na prova produzida.


Os factos em causa são os seguintes:

O veículo conduzido por NM nas circunstâncias referidas em 1) era um motociclo de marca Kawasaki, com a matrícula 53, actualmente sua propriedade, tendo o mesmo ficado danificado – ponto 17.

A reposição do motociclo referido em 17) ao seu estado anterior ao embate descrito em 1), por via da sua reparação total, ascende ao custo total de € 3.938.01 (três mil, novecentos e trinta e oito euros c um cêntimo), sendo € 3.485,05 o valor das peças de substituição, € 68,75 o dos trabalhos de pintura, € 132,00 o da mão-de-obra necessária e € 600,71 o valor do IVA legalmente devido – ponto 18.

Argumenta a recorrente que em audiência de julgamento o demandante NM afirmou não ser o proprietário do veículo mencionado e não ter procedido a qualquer reparação do mesmo ou até a orçamentação do prejuízo sofrido, de onde, conclui, ser “manifesto que face às declarações do demandante, o motociclo não foi reparado e não pertencia aquele e que apesar de o deter ou conduzir no momento do acidente não indemnizou o seu proprietário.”

Ora, antes de mais, cumpre se diga, dos factos transcritos (e que a recorrente critica) não consta que à data do acidente o veículo de 53 era propriedade de NM, pois o que foi dado como assente é que o mesmo é actualmente sua propriedade. Ou seja, à data da sentença.

Por outro lado, também no ponto 18 dos factos provados não se verteu como factualidade assente que o demandante procedeu à reparação do veículo, que tenha pago ao seu proprietário à data do acidente o valor correspondente à reparação dos danos causados no veículo ou que exista qualquer orçamento relativo à sua reparação.

Daí que a censura quanto aos mesmos, nestes termos em que é feita, não tem cabimento.

Mas, resulta também o inconformismo da recorrente quanto aos montantes (parcelares e global) que o tribunal a quo deu como provados para a reposição do motociclo ao estado anterior ao acidente em que foi interveniente, pugnando por não terem sido apurados os danos patrimoniais sofridos.

Ora, tendo-se procedido à audição das declarações de NM em audiência de julgamento, na gravação disponibilizada pelo tribunal, resulta o seguinte:

Pergunta: Chegou a reparar a mota? Fizeram uma avaliação à mota?

Resposta: Não chegámos a reparar a mota porque o seguro não assumiu…mas fizemos avaliação à mota.

Pergunta: fizeram avaliação. Recorda-se do valor?

Resposta: tinha um valor de quatro mil e tal, acho eu.

Pergunta: a rondar os quatro mil, não tem a certeza do valor?

Resposta: foi quatro mil e tal euros, sim senhor, que era o conserto da mota.

E, mostra-se junto aos autos documento com o timbre da demandada “Açoreana Seguros” (actualmente com a denominação “SU, S.A.”) elaborado por João Baptista, que o assina na qualidade de perito que prestava serviços para a demandada e testemunha nos mesmos, onde se registam os danos existentes no veículo pelo demandante tripulado e resultantes do acidente.

Assim, da análise conjugada dos aludidos elementos probatórios e da demonstração efectuada pelo tribunal recorrido quanto ao percurso da formação da sua convicção no que tange a estes factos, resulta que a prova produzida foi apreciada com razoabilidade, sendo os componentes apontados na sentença como relevantes para a decisão de facto coerentemente explanados e valorados de acordo com um raciocínio lógico, racional e convincente, que não fere as regras da experiência comum.

Como decorre do que já ficou explicitado – concretamente da alínea b), do nº 3, do artigo 412º, do CPP, no segmento “as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida” - para que ocorra uma alteração da matéria de facto pelo tribunal ad quem não basta que o recorrente articule argumentos que permitam concluir pela possibilidade de uma outra convicção, exige-se que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal a quo é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, se mostra violadora de regras da experiência comum ou se fez uma manifestamente errada utilização de presunções naturais. Ou seja, imperativamente tem de demonstrar que as provas que traz à colação apontam inequivocamente no sentido propugnado.

Tal exercício não fez a recorrente, sendo certo que as conclusões fácticas a que chegou o tribunal recorrido se apresentam, reafirma-se, conformes com as regras da experiência comum, pelo que se não impõe a alteração da matéria de facto no sentido almejado, improcedendo o recurso nesta parte.


Não verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar

Critica a demandada a sua condenação no pagamento a NM da quantia de 3.938,01 euros, a título de indemnização por danos patrimoniais provocados no motociclo de matrícula …53 em consequência do acidente em que o arguido F. e aquele foram intervenientes, alegando, em síntese, que se não mostram verificados os pressupostos da obrigação de indemnizar.

Nos termos do artigo 129º, do Código Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.

O princípio geral em matéria de responsabilidade civil extracontratual é o consignado no artigo 483º, do Código Civil, segundo o qual:

“Aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

Resulta do aludido preceito que constituem, em regra, pressupostos da responsabilidade civil extracontratual:

-O facto ilícito;
-O dano;

-O nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano;

- A culpa.

O facto ilícito é o facto voluntário – a acção ou omissão – que viola o direito de outrem ou deveres impostos por lei que vise a defesa dos interesses particulares, sem contudo conferir, correspectivamente, quaisquer direitos subjectivos.

O dano consiste na ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica e pode ter natureza patrimonial e não patrimonial.

O nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano representa a imputação objectiva dos resultados danosos ao comportamento do agente, de maneira a determinar-se quais os danos verdadeiramente causados por este e nessa medida indemnizáveis - artigo 563º, do Código Civil.

Finalmente, a culpa representa a imputação subjectiva do facto ao agente e traduz uma determinada posição ou situação censurável deste perante o facto ilícito, podendo assumir a forma de negligência ou de dolo.

Ponderando a factualidade que se encontra provada, considerou-se na decisão revidenda estar verificado o preenchimento de todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e, em consequência, a obrigação de indemnizar nos precisos termos expostos, decorrendo a responsabilidade da demandada de o arguido, enquanto condutor do veículo com a matrícula 47-HF-95, ter transferido para ela a responsabilidade civil emergente de danos resultantes de acidentes de viação por aquele causados.

O dever de indemnizar engloba o prejuízo causado e bem assim os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão, podendo o tribunal na fixação da indemnização atender aos danos futuros, desde que previsíveis – artigo 564º, do Código Civil.

De acordo com o nosso ordenamento jurídico e em princípio, no que concerne concretamente ao ressarcimento dos danos patrimoniais, o montante da indemnização a arbitrar deve corresponder ao prejuízo da situação patrimonial do lesado e, em princípio ter por medida a diferença entre a situação real (actual) em que o lesado se encontra e a situação hipotética em que ele se encontraria (correspondente ao mesmo momento) se não tivesse ocorrido o facto gerador do dano (cfr. artigos 562º e 566º, nº 2, do Código Civil e Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 3ª edição, Almedina, pág. 778), sendo que se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados – nº 3, do referido artigo 566º.

Os danos patrimoniais compreendem não só os danos emergentes ou perda patrimonial (que abrangem o prejuízo directamente causado nos bens ou nos direitos já existentes na titularidade do lesado à data da lesão, os danos reflexos e as próprias despesas frustradas), como também os lucros cessantes, ou seja, a não obtenção de um certo ganho em consequência dos factos geradores da responsabilidade, sendo que o lucro cessante pressupõe que o lesado tinha, no momento da lesão, um direito ao ganho que se frustrou, ou melhor, a titularidade de uma situação jurídica que, mantendo-se, lhe daria direito a esse ganho, como se realça no Ac. do STJ de 18/12/2007, Proc. nº 07B3715, consultável em www.dgsi.pt.

Pois bem, analisados os factos que provados se encontram, deles não consta que fosse o demandante proprietário do motociclo de matrícula 53 à data do acidente de que resultaram os danos patrimoniais cuja reparação impetra, como também dos mesmos não se pode concluir pela existência de qualquer relação contratual entre NM e esse proprietário (que resulta da motivação da convicção do julgador da 1ª instância inserida na sentença ser então NM ), mormente de comodato, em que quem circularia com a viatura seria o demandante (concessão gratuita do gozo da coisa pelo proprietário ao accipiens, ora demandante, com a obrigação de a restituir) o que lhe conferiria tutela judiciária para este gozo, podendo inclusivamente fazê-lo valer em juízo, aceitando-se então o direito de, demonstrado o interesse directo na reparação do motociclo de que teria o respectivo gozo, exigir da “SU, S.A.” a indemnização pelos danos patrimoniais em causa, pois, desde logo, “na falta de convenção, incumbe ao comodatário a obrigação de restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as aludidas deteriorações, sendo até de presumir que a coisa lhe foi entregue em bom estado de manutenção, quando não exista documento bastante onde as partes tenham descrito o estado dela no momento da entrega.” – cfr. Ac. R. de Lisboa de 06/11/2013, Proc. nº 21853/11.1T2SNT.L1-8, consultável em www.dgsi.pt.

E, como resulta do citado artigo 483º, do Código Civil e sustenta Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 5ª Edição, Vol. I, pág. 492 e segs., para que o lesado tenha direito a indemnização, em situações de violação de lei que protege interesses alheios, necessário se torna “que a tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma violada e que o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar”, o que, como vimos, não ocorre no caso em apreço.

Termos em que, cumpre conceder provimento ao recurso nesta parte e absolver a demandada.

III - DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pela demandada “SU, S.A.” e revogar a decisão revidenda na parte em que a condena a pagar ao demandante NM, a quantia de 3.938,01 euros, a título de danos materiais no motociclo de matrícula …53, acrescida dos juros, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido e até efectivo e integral pagamento, dessa parte do pedido a absolvendo.

Custas do pedido de indemnização civil a suportar por demandante e demandada na proporção do respectivo decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário ao primeiro concedido – artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigo 523º, do CPP e artigo 377º, nº 4, do CPP.

Custas do recurso a suportar pelo demandante, fixando-se a taxa de justiça pelo mínimo, sem prejuízo do apoio judiciário.

Lisboa, 18 de Setembro de 2018

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94º, nº 2, do CPP)

Artur Vargues

Jorge Gonçalves
Decisão Texto Integral: