Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
370/14.3PCOER.L1-9
Relator: CALHEIROS DA GAMA
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
REGIME DE PROVA
JOGO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/27/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: É adequada a medida pedagógica e reeducativa de suspensão da execução da pena de 3 anos de prisão aplicada ao arguido, pela prática de um crime de furto qualificado, que confessou e face ao qual mostrou arrependimento, cometido por força da sua problemática de vício ao jogo, ao ser acompanhada de um "apertado regime de prova", assente num plano de reinserção social, a executar com vigilância e apoio, durante os 3 anos de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social, compreendendo o tratamento da ludopatia de que padece e a que o condenado aceita sujeitar-se, enquanto jogador abusivo e patológico, manifestando vontade em se integrar na sociedade. A existência de antecedentes criminais não invalida necessariamente a formação do juízo de prognose favorável, a que alude o art. 50.° do Cód. Penal, baseada num risco prudencial, nem colide com as exigências de prevenção que in casu se fazem sentir.
(sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1. No processo sumário nº 370/14.3PCOER, o arguido FJ, solteiro, nascido em 1986, (…) com domicílio (…) em Almada, foi submetido a julgamento, no Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras, vindo a ser condenado, por sentença proferida e depositada em 29 de Maio de 2014, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 203º, n.º 1 e 204º, nº 1 alínea a), todos do Cód. Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova, nos termos do disposto no art. 53.º, nºs 1, 2 e 3, do Cód. Penal, a elaborar pela D.G.R.S. que o acompanhará e fiscalizará, devendo o mesmo incidir sobre o tratamento da problemática do jogo, vício que o arguido referiu ser causa da prática dos ilícitos.

2. O Ministério Público, inconformado com a mencionada decisão, interpôs recurso extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos autos acima identificados, de processo sumário, com intervenção de tribunal singular, que condenou o arguido FJ, pela prática, em autoria material, de um crime de furto qualificado, p.p. pelos arts. 203.º, n.º1 e 204.º, n.º 1, al. a) do Código Penal.
2. O presente recurso versa sobre a matéria de direito e debruça-se sobre a pena, de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução, mediante sujeição a regime de prova, aplicada ao arguido.

3. No que diz respeito à medida da pena, tendo em atenção a pena abstracta aplicável e as circunstâncias do caso concreto, entendemos que a medida fixada pelo Tribunal a quo é excessiva face às finalidades da punição e à culpa do arguido.

Na verdade,

4. Tendo em consideração que: Os bens subtraídos, no valor total de € 7 288,00, foram recuperados pelo ofendido após a detenção do arguido; A ilicitude dos factos é elevada, atento o valor dos bens subtraídos e as circunstâncias dos factos, designadamente, a premeditação e planeamento dos factos (o arguido deslocou-se de Almada, onde reside, a Linda-a-Velha para os praticar) e os motivos invocados para a sua prática (satisfação do vício do jogo); O arguido mostrou-se arrependido, tendo confessado integralmente os factos; A culpa do arguido é elevada, porque surge moldada sobre o dolo directo; e que, o arguido vive sozinho, não tinha qualquer actividade profissional e é viciado no jogo.

E ainda,

5. Que o arguido já sofreu três condenações anteriores, duas das quais pela prática de crimes contra o património – roubo e apropriação de coisa achada – tendo sido, no âmbito do processo n.º 159/12.4JBLSB, do 1.º Juízo Criminal de Almada, condenado por decisão proferida em 10.09.2013 e transitada em julgado em 10.10.2013, pela prática, em 2012 e em concurso efectivo, de 6 crimes de roubo na forma consumada e 1 crime de roubo na forma tentada, na pena única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução, sujeita regime de prova e condicionada ao pagamento aos demandantes das quantias fixadas no acórdão.

6. Parece-nos que a condenação numa pena de prisão fixada em medida próxima, mas ainda inferior, a metade da pena abstracta, a saber de 2 anos, seria a única adequada e suficiente à culpa do arguido e às exigências de prevenção que no caso se fazem sentir.

7. Relativamente à suspensão da execução da pena de prisão, face às condenações sofridas pelo arguido – designadamente, a sofrida no âmbito do processo n.º 159/12.4JBLSB, do 1.º Juízo Criminal de Almada, já mencionada, cuja decisão transitou em julgado no passado mês de Outubro de 2013 –, e a situação social e profissional do mesmo, não vislumbramos como pode o Tribunal efectuar um juízo de prognose favorável ao arguido.

8. Na verdade, o arguido assumiu ter praticado os factos pelos quais foi condenado para satisfazer o seu impulso do jogo, e fê-lo assim que ficou sem emprego, e mesmo sabendo que se encontrava no período de suspensão da pena de 5 anos de prisão que lhe foi aplicada naqueles autos, cuja decisão transitou em julgado há menos de um ano.

9. Não resta qualquer dúvida de que as condenações sofridas pelo arguido – em especial aquela que vimos mencionando – não serviram de suficiente advertência para o inibir de praticar novos crimes, e que não se encontram preenchidos os pressupostos para a suspensão de execução da pena.

10.  No caso em apreciação e face ao que já referimos, as exigências de prevenção especial são elevadas, devendo ser levadas na direcção da prevenção da reincidência, de modo a obter, na melhor medida possível, um reencontro do agente com os valores comunitários afectados, e a orientação da sua vida no futuro de acordo com tais valores.

11. Tendo em atenção tais exigências de prevenção e ainda as elevadas exigências de prevenção geral, associadas ao crime praticado pelo arguido, apenas com a aplicação de uma pena efectiva se evita uma perda da confiança posta no sistema repressivo penal pela comunidade.

12. Desta forma, a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, até porque tal faculdade já foi concedida ao arguido, sem que tenha surtido qualquer efeito, tendo o arguido voltado a cometer crimes contra os mesmos bens jurídicos.

13. Razão pela qual, deve determinar-se o cumprimento efectivo da pena de prisão que lhe for aplicada.

Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Ex.as doutamente suprirão, deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que condene o arguido na pena supra indicada,

Com o que Vossas Excelências farão a costumada Justiça!" (fim de transcrição).

3. Respondeu o arguido extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:

"1 - O Tribunal "a quo" fez uma correta aplicação e interpretação do artº 71°, nº 1 e nº 2. e Artº 50° ambos do C. Penal.

2 - O Tribunal "a quo" tomou em consideração todas as circunstâncias atenuativas relevantes para efeito da determinação da medida concreta da pena.

3 - O arguido colaborou com a justiça, não sendo obrigado a declarar os seus antecedentes criminais, Art° 359° do C. Penal, informou o Tribunal "a quo" que no seu CRC de fls. 32 a 35 faltava o Proc. nº 159/12.4JBLSB que correu termos no Tribunal Comarca e de Família e Menores de Almada, que foi posteriormente junto aos autos cfr. Fls. 118 e 128 e novo CRC de Fls. 119 a 123 dos autos;

4 - O arguido mostrou em audiência de julgamento, arrependimento sincero, afirmando que o crime foi praticado sem uso da força ou ameaça, para satisfazer o seu impulso do jogo na data em que se encontrava sem emprego e que os bens subtraídos foram recuperados pelo ofendido

5 - O arguido está a cumprir com as medidas de coação impostas.

6 - E aguarda o plano regime de prova para promover a sua ressocialização e reintegração na sociedade.

7 - O arguido encontra-se a trabalhar com contrato efetivo Cfr. Declaração a Fls. 169 dos autos.

8 - O Tribunal "a quo" valorou corretamente as circunstâncias que determinaram a medida da pena de prisão suspensa na sua execução, mediante as medidas de coação impostas e a sujeição a regime de prova em que condenou o arguido.

9 - Ponderando as circunstâncias atenuativas relevantes, ao Tribunal "a quo" foi possível formular um juízo de prognose social favorável ao comportamento futuro do arguido, e no espírito do julgador não se instalou qualquer dúvida insanável quanto à atuação do arguido que não levasse à aplicação do princípio in dúbio pro reo, na suspensão da pena de prisão, pois encontram-se preenchidos os pressupostos para a suspensão de execução da pena, nos termos do Art° 50° do C. Penal.

10 - O Tribunal "a quo" considerou para a determinação da medida da pena, que a pena de prisão suspensa na sua execução, mediante as medidas de coação impostas e a sujeição a regime de prova se mostra ajustada e equilibrada, para as finalidades das penas e as exigências de prevenção geral.

11 - A sentença recorrida fez, uma correta apreciação da prova e subsunção dos fatos ao direito e contem a explanação do processo que conduziu ao juízo da prova.

12 - O Tribunal apreciou a prova à luz da livre apreciação e as inferências que retirou não violam qualquer regra da experiência comum, pelo que deve manter-se a douta sentença recorrida nos exatos termos em que foi exarada a suspensão da pena de prisão, pelo que se pugna pela confirmação do decidido.

Nestes termos, nos mais de direito e com o douto suprimento de V. Exas, se requer seja negado provimento ao recurso interposto e, consequentemente, mantida a douta Sentença recorrida, nos exatos termos em que foi exarada a suspensão da pena de prisão o que se mostra da mais elementar JUSTIÇA" (fim de transcrição).

4. Foi proferido despacho judicial admitindo o recurso, como se alcança de fls. 196.

5. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação apôs o seu visto e emitiu o seu parecer, pronunciando-se "no sentido da procedência do recurso" interposto (cfr. fls. 215 e segs.).

6. Foi cumprido o preceituado no art. 417.º n.º 2 do C.P.P., não tendo havido resposta.

7. Efetuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso.

8. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1. Questão prévia

A sentença recorrida, logo no seu início, refere-se ao processo como tendo o n.º 284/08.6SELSB, o que não é exato, pois o seu NUIPC é o 370/14.3PCOER.

Afigura-se-nos que se tratou de manifesto lapsus calami, pois ressalta inequivocamente do contexto que foi ali cometido mero erro material de escrita, facilmente inteligível e não essencial para a compreensão da sentença na sua globalidade, podendo ser corrigido pelo Tribunal de recurso, nos termos do art. 380.°, n.° 1, al. b) e n.° 2 do Código de Processo Penal.

Dispõe o art. 380.º do CPP no seu n.º 1 que “O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correção da sentença quando: “a) Fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º; b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial” e no seu n.º 2 “Se já tiver subido recurso da sentença, a correção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso”.

Nestes termos, este Tribunal da Relação entende dever corrigir oficiosamente, visto o disposto no art. 380.º, nºs 1 al. b) e 2 do CPP, e em conformidade com o expendido supra, o erro acima indicado – número do processo –, atenta a circunstância de tal correção não importar modificação essencial ao ali decidido e não consubstanciar uma limitação das garantias de defesa, conforme foi decidido pelo Tribunal Constitucional no Processo n.º 535/2006 da 2ª Secção.

Assim, onde se lê "284/08.6SELSB" deve passar a ler-se "370/14.3PCOER".

2. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respetivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na Col (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403° e 412°, n° 1, do CPP).

Mediante o presente recurso o recorrente submete à apreciação deste Tribunal Superior em síntese as seguintes questões:

- É excessiva a medida da pena de prisão que deverá ser reduzida a 2 anos;

- Face aos antecedentes criminais do arguido e à situação social e profissional do mesmo não se vê como seja possível um juízo de prognose favorável à suspensão da execução da pena de prisão, que, por isso, deverá ser efetiva.

 

 3. Passemos, pois, ao conhecimento das questões alegadas. Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida, no que concerne a matéria de facto:

   

a) O Tribunal a quo declarou provados os seguintes factos (transcrição):

1. No dia 8 de Maio de 2014, cerca das 18,00 horas e 30,00 minutos, o arguido dirigiu-se à ourivesaria (…), sita (…) em Algés, com o propósito de se apoderar de peças em ouro que aí se encontram para venda;

2. Ali chegado, o arguido pediu para ver alianças em ouro;

3. A pessoa que se encontrava na ourivesaria e que o atendeu, colocou em cima do balcão um mostruário com 12 alianças em ouro, tendo o arguido solicitado que lhe fossem mostradas outras mais finas;

4. Quando a funcionária se deslocou para ir buscar outras peças, o arguido agarrou no mostruário que continha os 12 anéis em ouro e saiu do estabelecimento;

5. O arguido apoderou-se desses 12 anéis em ouro que, com o valor total de 7.288,00 €, fez seus, sem pagar, pelos mesmos, qualquer quantia;

6. O dono do estabelecimento que, também, ali se encontrava, saiu em perseguição do arguido, não tendo, contudo, conseguido apanhá-lo;

7. O arguido, apanhado, mais adiante, essas peças de ouro foram encontradas na sua posse e devolvidas ao seu dono;

8. Ao proceder da forma descrita, o arguido agiu com o propósito de se apropriar dos anéis em ouro acima referidos, com intenção de os fazer seus, o que conseguiu, bem sabendo que os mesmos não lhes pertenciam e que actuava contra a vontade do respectivo proprietário;

9. O arguido estava bem ciente o arguido que tal conduta é proibida e punida por lei;

10. Do seu C.R.C. consta:

a. Que, no Processo Abreviado nº 105/07.7PTALM, do 2º Juízo Criminal de Almada, pela prática, em 2.3.2007, dum crime de condução perigosa de veículo automóvel, o arguido foi julgado e condenado, por decisão de 23.4.2008, numa pena de 100 dias de multa;

b. No Processo Comum Colectivo nº 159/12.4JBLSB, do 1º Juízo Criminal de Almada, pela prática, em concurso efectivo e em 2012, de 6 crime de roubo, na forma consumada e dum crime de roubo, na forma tentada, o arguido foi julgado e condenado, por decisão de 10.9.2013, numa pena única de 5 anos de prisão, suspensa, na sua execução, por 5 anos;

c. No Processo Sumaríssimo nº 456/10.3PAALM, do 1º Juízo Criminal de Almada, pela prática, em 16.4.2010, dum crime de apropriação ilegítima de coisa achada, o arguido foi condenado, por decisão de 8.1.2014, na pena de 70 dias de multa;

Apurou-se, ainda, que o arguido:

11. É solteiro;

12. Não tem actividade laboral;

13. Vive sozinho num quarto alugado, pelo qual paga 175,00 € por mês;

14. Tem o 9º ano de escolaridade

15. O arguido sofre de perturbações com o vício do jogo." (fim de transcrição).


b) Factos declarados não provados:

"Não há" (fim de transcrição).

c)  Em sede de motivação da decisão de facto, escreveu-se na sentença recorrida:

"A convicção do tribunal, no que respeita aos factos dados como provados respeita, assentou, essencialmente, na conjugação das declarações do arguido que confessou os factos tal como constam da acusação.

O arguido referiu, ainda, ao tribunal que tem um problema de saúde mental e que se prende com o vício do jogo que tem estado em tratamento, mas que há algum tempo, quando deixou de trabalhar deixou de ter tratamento.

Disse ao tribunal que tinha estado preso preventivamente, à ordem dum processo de Almada, cuja identificação está nos factos provados, sob o nº 10 alínea b) e que se prendeu com um conjunto de assaltos a bancos. Referiu que, quando saiu da prisão, arranjou trabalho e que durante esse período conseguiu controlar-se.

Disse, ainda, ao tribunal que, embora tenha actuado sozinho na ourivesaria, estava um indivíduo, cujo nome ele conhece por “(…)” que o aguardava algures, na companhia duma mulher, com vista a estabelecer contactos com um receptador a quem iam vender as alianças. Sabe, também, que o referido receptador actua na zona do Laranjeiro. Disse, também, ao tribunal que, há cerca duma semana, foi detido, na zona de Alverca, por factos idênticos a estes. Fez, ainda, uma descrição sobre outros furtos que efectuou e a forma como gastou o dinheiro a jogar.

Foram, ainda, ouvidos o proprietário da ourivesaria e a pessoa que o atendeu, confirmando aquele o valor que se deu como provado e que tinha perseguido o arguido, mas sem êxito e aquela o modo de actuar do arguido.

No que respeita à sua vida e situação económica e à sua doença, nas suas declarações.

No que respeita aos antecedentes criminais foram obtidos através dos C.R.C. junto aos autos na última sessão de julgamento." (fim de transcrição).

d) Finalmente, quanto ao enquadramento jurídico-penal dos factos e à escolha e medida da pena, expendeu-se na decisão revidenda:

"Vem o arguido acusado da prática, em autoria material, de um crime, na forma consumado, de “Furto qualificado”, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 203º, nº 1 e 204º, nº 1 alínea a), ambos do C. Penal.

Refere a primeira daquelas normas que “quem com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

São elementos típicos deste crime: que alguém subtraia uma coisa; que essa coisa seja móvel e alheia e que essa coisa seja obtida contra a vontade alheia; quanto ao elemento subjectivo que queira fazer essa coisa sua, ou seja, o tipo tem um elemento subjectivo especial que é a fraude ou intenção de apropriação, em querer a coisa para si.

Este último elemento típico dá a este tipo uma característica específica que é a de ser um crime de resultado truncado, ou seja, basta dar-se a consumação da subtracção.

Este, porém, vem acusado da prática deste crime, qualificado.

Há, assim, face à matéria de facto dada como provada que verificar se o arguido praticou o crime qualificado, sendo-lhe imputada a qualificativa: do artº 204º, nº 1 alínea a), no que respeita à apropriação que se deu como provada.

Vejamos, então, se estamos perante a qualificação a que refere a acusação.      

A alínea a), do nº 1, do art.º 204º, refere-se a coisas móveis de valor elevado, nos termos do artº 202º alínea a), do C. Penal que refere que valor elevado é aquele que ultrapasse as 50 UCs e que, actualmente, é de cerca de 5.000,00 €.

No caso dos autos, o arguido, apoderou-se de 12 anéis que foram avaliados em 7.288,00 € pelo que entendemos que preencheu o tipo e a agravação.

Verifica-se, pois, que preencheu o tipo de crime de furto, na forma qualificada, como consta da acusação.

Como acima se refere, a moldura penal, abstractamente considerada para este crime é de prisão até 5 anos, ou multa até 600 dias, sendo os mínimo de 1 mês e 10 dias, respectivamente, para a prisão e para a multa.

Da escolha e da determinação da medida concreta da pena

Ora, da matéria dada como provada, sem dúvida que o arguido praticou o crime por que vem acusado, pelo que há que encontrar a medida concreta da pena, no quadro da medida abstracta que é a que acima se referiu.

Para se determinar a escolha e a medida concreta da pena, há que fazê-lo por apelo aos critérios previstos nas disposições conjugadas dos artºs 70º e 71º, do C. Penal.

O primeiro daqueles preceitos, a opção de escolha, oferece-nos um critério de opção entre uma pena privativa e outra não privativa da liberdade, dever-se-á optar pela segunda, quando a norma incriminadora prevê essa possibilidade, desde que esta pena sirva as finalidades da punição.

No caso dos autos a escolha deverá incidir por pena de prisão, o que apreciaremos adiante.   

No que à segunda diz respeito, a que estabelece os critérios para a determinação da medida da pena, estabelece um elenco de circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, dever-se-ão ter em conta para tal determinação, a da medida concreta da pena a aplicar, estabelecendo como limite máximo, dentro dos limites definidos na lei, a medida da culpa do agente, sendo o limite mínimo definido pelas necessidades de prevenção.

Nas circunstâncias a atender e elencadas nas diversas alíneas, há que considerar, entre outras: a intensidade do ilícito e do dolo, as consequências do crime, as condições económicas, pessoais e sociais do agente, a conduta anterior e posterior ao facto e a falta de preparação para manter uma conduta lícita.

No que respeita ao ilícito, é de intensidade elevada, uma vez que premeditou o ilícito, o montante era já elevado e a razão da sua actuação não deixa de ser muito censurável, sendo certo que o ouro foi entregue ao seu dono.

No que respeita ao dolo é directo e intenso.

Já respondeu por este tipo de crime, tendo estado preso preventivamente, não intuído o facto de lhe ter sido suspensa a execução da pena num conjunto de crimes que reputamos de muito graves.

Entendemos, pois, que dever-se-á, como já se referiu, por uma pena privativa da liberdade.

Já respondeu três vezes, sendo um como já se disse pela prática de 7 crimes de roubo, um deles na forma tentada.

É de modesta condição social e económica, não tendo trabalho, nem qualquer apoio, uma vez que o irmão, com quem vivia e segundo disse ao tribunal, por causa da reiteração neste tipo de ilícitos não o quer em casa.

Em conclusão, o ilícito é de intensidade elevada e o dolo é de intensidade elevada, tendo, também, que se ter em conta as razões de prevenção geral que deverão estar com forte presença em casos como este, devendo tal circunstância ser tida, também, em conta para a medida concreta da pena a aplicar ao arguido.

Vai, assim, o arguido condenado numa pena de 3 anos de prisão.

Da suspensão da execução da pena

O arguido, como acima se referiu, está condenado num processo de Almada, com uma pena de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução. Já esteve preso, porém, em prisão preventiva, tendo entendido o tribunal suspender-lhe a execução da pena.

Face ao exposto, julga este tribunal que, ainda, poderá beneficiar duma suspensão desta pena de prisão, porém, sujeita a um apertado regime de prova que contemple o acompanhamento médico do vício do jogo.

Estamos convictos que a suspensão da execução da pena de prisão será suficiente para o afastar de voltar a delinquir, pelo que, atento o disposto no artº 50º, nºs 1 e 5, do C. Penal, dever-lhe-á ser suspensa por um período de 3 anos.

Tal suspensão deverá, nos termos do disposto no artº 53º, nºs 1 e 2, do C. Penal, sujeito a um regime de prova que deverá ser elaborado, acompanhado e fiscalizado pela D. G. R. S.

O arguido aceitou sujeitar-se, durante o período da suspensão, a tratamento do seu problema de vício de jogo.

Assim, o programa a elaborar deverá contemplar tal tratamento." (fim de transcrição).

4. Vejamos se assiste razão ao recorrente.

4.1. Defende o Ministério Público que é excessiva a medida da pena de prisão aplicada ao arguido que, em seu entender, deverá ser reduzida a 2 anos.

Segundo o n.º 1 do art. 71.º do Cód. Penal, «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». Por sua vez, dispõem os nºs 1 e 2 do art. 40.º do Cód. Penal que «a aplicação de penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade; em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» - já que o processo de determinação da pena é (e só pode ser) um puro derivado da posição tomada pelo ordenamento jurídico-penal em matéria de sentido, limites e finalidades da aplicação das penas. Na determinação da medida da pena, o requisito legal de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção satisfaz a necessidade comunitária de punir o crime e, consequentemente, de realizar as finalidades da pena; o requisito legal de que seja considerada a culpa do agente satisfaz a exigência de que a vertente pessoal do crime, decorrente do respeito pela dignidade da pessoa do agente da prática do crime, limite as exigências de prevenção.

Os fins das penas têm sido equacionados a partir de um objetivo essencial: a redução ou prevenção da criminalidade. Na concretização deste objetivo identificamos a prevenção geral e a prevenção especial. A primeira na perspetiva da intimidação coletiva, a segunda na perspetiva da intimidação individual, isto é, de prevenção da reincidência.

Com a determinação que sejam tomadas em consideração as exigências de prevenção geral procura dar-se satisfação à necessidade comunitária de punição do caso concreto, tendo-se em conta, de igual modo, a premência da tutela dos respetivos bens jurídicos. E com o recurso à vertente da prevenção especial almeja-se satisfazer as exigências da socialização do agente, com vista à sua reintegração na comunidade (Ac. do S.T.J. de 4-7-1996, Col. de Jur.- Acs. do S.T.J., ano IV, tomo 2, pág. 225).

A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência coletiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstrata, entre o mínimo em concreto imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente: entre esses limites, satisfazem-se, quanto possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (Ac. do S.T.J. de 15-10-1997, Proc.º n.º 589/97, 3ª secção). É também esta, em síntese, a lição do Prof. Figueiredo Dias (“O Código Penal Português de 1982 e a sua reforma”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Fasc. 2-4, Dezembro de 1993, págs. 186-187).

"A pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto...alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada... É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma «moldura» de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica" (Anabela Miranda Rodrigues, in "A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade", Coimbra Editora, pág. 570-571)

Modernamente, da prevenção especial decorre ainda aquilo que se pode designar de reforma e que consiste na ressocialização do delinquente.

Este fim de ressocialização do delinquente vai para além da prevenção da reincidência, tal como esta tem sido classicamente entendida. Pretende-se que o delinquente não reincida não por recear sofrer numa reação criminal, mas porque não tem necessidade de cometer o crime, uma vez que pode levar uma vida ética e socialmente não reprovável. E é deste quid que emerge o conceito de reinserção social (Relatório do Provedor de Justiça apresentado à Assembleia da República, 2007, pp.20).

Com efeito, tendo em vista o assinalável desajustamento que se verificava entre as finalidades político-criminais subjacentes ao Código Penal de 1982 e a experiência resultante da sua aplicação prática, o legislador, com a revisão operada em 1995 quis afirmar, expressamente, no artigo 40º, então introduzido, como proposições basilares do programa político-criminal: que o direito penal é um direito vinculado à tutela de bens jurídicos; que a culpa é tão-só limite da pena; que a intervenção penal tem como finalidade a "proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade".

Foi reafirmado, igualmente, o princípio da ultima ratio da pena de prisão, valorizando-se o papel da multa como pena principal e alargando-se o âmbito de aplicação das penas de substituição.

Na exposição de motivos da proposta de Lei 98/X (que está na origem da revisão de 2007) podemos ler que a revisão procura "fortalecer a defesa dos bens jurídicos, sem nunca esquecer que o direito penal constitui a ultima ratio da política criminal do Estado", indicando-se, entre as principais orientações da revisão, "a diversificação das sanções não privativas da liberdade, para adequar as penas aos crimes, promover a reintegração social dos condenados e evitar a reincidência".

Dentro dos limites estabelecidos no tipo legal, a determinação da medida da pena faz-se em função da culpa do arguido e as exigências de prevenção (art. 71.º, n.º 1, e 40.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CP), havendo que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o arguido considerando, nomeadamente, os fatores de determinação da pena a que se referem as várias alíneas do n.º 2 do art. 71.º do Código Penal.

A determinação da medida concreta da pena há-de efectuar-se em função da culpa do agente (relevando o ilícito típico, através desta) e das exigências de prevenção, quer a prevenção geral positiva ou de integração (proteção de bens jurídicos), quer a prevenção especial (reintegração do agente na sociedade) - art. 40.º, n.º 1, do CP -, funcionando a culpa como limite máximo que aquela pena não pode ultrapassar (n.º 2 deste art. 40.º). As circunstâncias referidas no n.º 2 do art. 71.º do CP constituem os itens a que deve atender-se para a fixação concreta da pena e atuam dentro dos limites da moldura penal abstrata, sem se partir de qualquer ponto determinado dessa moldura. São essas circunstâncias e outras que tenham igual relevância do ponto de vista da culpa e da prevenção, porque a enumeração legal é exemplificativa, que vão determinar a medida concreta da pena, a qual há-de satisfazer as necessidades de tutela jurídica do bem jurídico violado e as exigências de reinserção social do agente. A medida da tutela dos bens jurídicos, correspondente à finalidade de prevenção geral positiva ou de integração, é referenciada por um ponto ótimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime, entre esses limites se devendo satisfazer, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, às quais cabe, em última análise, a função de determinação da medida da pena dentro dos limites assinalados - cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, p. 227 e ss.

Passando ao caso concreto, tendo presente os mencionados ensinamentos e que a moldura penal, abstratamente considerada para o crime perpetrado pelo arguido FJ, é de prisão de 1 mês a 5 anos, ou multa de 10 a 600 dias, afigura-se-nos que apesar dos bens furtados terem sido recuperados e do arguido ter confessado e mostrado arrependimento, tendo em especial atenção a elevada censurabilidade da sua atuação e da intensidade da ilicitude, o dolo que foi direto e intenso, o valor dos bens subtraídos (7.288,00€), os seus antecedentes criminais, designadamente por crimes contra o património (apropriação de coisa achada e sete crimes de roubo, sendo seis na forma consumada, praticados em 2012) e a sua situação pessoal (de baixa escolaridade, vive sozinho, não tem atividade laboral, sendo viciado no jogo, para cuja satisfação furtou os doze anéis em ouro), bem como as elevadas razões de prevenção geral, entendemos que a pena adequada à culpa do arguido e que se mostra suficiente à realização das finalidades da punição, é aquela que foi fixada pelo tribunal a quo, ou seja a de 3 (três) anos de prisão.

Pelo exposto, improcede o recurso nesta parte.

4.2. Mais pugna o Ministério Público que, face aos antecedentes criminais do arguido e à situação social e profissional do mesmo, não se vê como seja possível um juízo de prognose favorável à suspensão da execução da pena de prisão, que, por isso, deverá ser efetiva.
Dispõe o art. 50.° do Cód. Penal que "O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.".

Como ensina Jescheck “Na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose favorável ao agente, baseada num risco prudencial. A suspensão da pena funciona como um instituto em que se une o juízo de desvalor ético-social contido na sentença com o apelo, fortalecido pela ameaça de executar no futuro a pena, à vontade do condenado em se integrar na sociedade. O tribunal deve estar disposto a assumir um risco prudente, mas se existirem sérias dúvidas sobre a capacidade do condenado para compreender a oportunidade de ressocialização que se oferece, a prognose deve ser negativa.”

Enquadrando jurisprudencialmente o instituto da suspensão de execução da pena dir-se-á que sendo a suspensão da execução da pena uma medida pedagógica e reeducativa, sempre que se verificarem os pressupostos formais estipulados no art. 50.° do Cód. Penal deve ser decretada, se se mostrar adequada para afastar o delinquente da criminalidade, ainda que ele, anteriormente, já tenha sido condenado em penas de prisão (ac. STJ de 30 de Setembro de 1999, proc. 578/99-5; SASTI, n.° 33, 95).
Não são considerações de culpa que interferem na decisão sobre a execução da pena, mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto da suspensão, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas. (ac. STJ de 10 de Novembro de 1999, proc. 82.3/99-3ª; SASTJ, 35, 74 que tem 3 declarações de voto e voto de desempate do Conselheiro Sá Nogueira).

Sendo certo que o arguido FJ já sofreu três condenações anteriores, duas  delas foram pela prática de ilícitos de menor relevância (um crime de condução perigosa de veículo automóvel, em que, por decisão de 23 de Abril de 2008, foi condenado na pena de 100 dias de multa, e na pena de 70 dias de multa pela prática, em 16 de Abril de 2010, dum crime de apropriação ilegítima de coisa achada). Releva o facto de no Processo Comum Coletivo nº 159/12.4JBLSB, do 1º Juízo Criminal de Almada, pela prática, em 2012, de 6 crimes de roubo, na forma consumada e dum crime de roubo, na forma tentada, ter sido condenado, por decisão de 10 de Setembro de 2013, numa pena única de 5 anos de prisão, suspensa, na sua execução, por 5 anos. Ou seja, ao cometer em 8 de Maio de 2014 os factos dos presentes autos fê-lo no período de suspensão da execução da pena aplicada naqueles outros autos.

Contudo, tal não é impeditivo de voltar a beneficiar de nova suspensão da execução da pena, desde que, como se nos afigura ser o caso, ainda possa ser feito um juízo de prognose favorável, tanto mais que a suspensão será acompanhada de regime de prova.

Para além do que é expendido a este propósito na decisão recorrida o arguido na sua resposta ao recurso acrescenta ainda que está a cumprir com as medidas de coação impostas, que aguarda o plano do regime de prova para promover a sua ressocialização e reintegração na sociedade e que está a trabalhar com contrato efetivo, nada nos levando a duvidar dos seus sérios propósitos de se passar a conformar com o direito e a sã vida em comunidade.
Cremos, pois, que ainda é possível formular em relação ao arguido o tal juízo de prognose favorável no sentido de que a simples censura do facto e da ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, já que a suspensão será acompanhada de "um apertado regime de prova que contemple o acompanhamento médico do vício do jogo", por forma a facilitar a reintegração social do arguido. Ficam, deste modo, devidamente salvaguardadas as finalidades preventivas da punição, quer as de prevenção geral, pois não são goradas as expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas, quer as de prevenção especial de socialização do condenado, que se espera não voltar a delinquir. Lembre-se que confessou integralmente os factos por si praticados, mostrou arrependimento e está disponível para aderir ao plano do regime de prova que lhe será oportunamente estabelecido bem como a submeter-se a tratamento para o seu problema de vício de jogo.

A pena de 3 anos de prisão imposta pela 1.ª instância ser-lhe-á, pois, suspensa na sua execução por igual período de tempo, mediante regime de prova, nos termos e condições ali impostas com que se concorda, em particular com a circunstância do plano de reinserção social, a executar com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social, compreender o tratamento da problemática do jogo, vício que terá sido causa da prática do crime.

Como é comummente reconhecido, os jogos de fortuna ou azar e os jogos a dinheiro, pela sua própria natureza, só permitem ganhar a um número muito reduzido de jogadores, pois, de outra forma, seriam deficitários e não poderiam perdurar. Assim, na grande maioria dos casos, os jogadores perdem mais do que ganham.

No entanto, a excitação do jogo e a promessa de ganhos, por vezes muito elevados, podem levar os jogadores a gastar nos jogos mais do que a parcela dos seus orçamentos reservada ao lazer.

Este comportamento, irrazoável e irresponsável, assumido por alguns  jogadores, leva-os, por um lado, a despenderem quantias elevadas (grandes fortunas foram deste modo derretidas em curtos espaços de tempo), acabando, a dado momento, por não conseguirem fazer face às suas obrigações económico-financeiras, sociais e familiares, e, por outro lado, também a uma verdadeira situação de dependência dos jogos de fortuna ou azar e dos jogos a dinheiro, semelhante à dependência provocada pela droga ou pelo álcool. Ou seja, comprometem a sua situação económica e familiar e simultaneamente a sua própria saúde. Pois como se sabe, saúde, na definição da OMS (ainda que o seu conceito seja hoje muito criticado e tenha surgido num contexto histórico já algo ultrapassado), não é apenas a ausência de doenças mas um estado de completo bem-estar físico, mental e social.

A continuidade e a perseverança deste tipo de comportamento, coexistindo com outros fatores neurobiológicos, psicológicos, genéticos e ambientais, poderá evoluir para o ciclo de adição (jogo patológico).

Lembremos que os “processos de adição” são comportamentos com características impulsivas-compulsivas em relação a diferentes atividades ou condutas, como por exemplo: jogo, internet, relações sexuais, compras, abuso de bebidas alcoólicas e consumo de estupefacientes, envolvendo também um potencial de prazer.

O tratamento e acompanhamento de problemas relacionados com jogo, vulgarmente denominado vício de jogo,  ludopatia ou mais recentemente jogo compulsivo ou patológico obedece a critérios específicos e diferentes das outras adições ou dependências. É necessário um conhecimento e formação especializada sobre o perfil, comportamento e fase em que o jogador abusivo ou patológico se encontra, assim como da sua família.

Daí que, no Plano Estratégico do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) 2013-2015 e nos seus Planos anuais de Atividades desde 2013, considera-se de especial relevância "melhorar os conhecimentos e competências dos profissionais relativamente ao fenómeno do jogo."

Assinale-se que o SICAD tem por missão não apenas promover a redução do consumo de substâncias psicoativas e a prevenção dos comportamentos aditivos mas também a diminuição das dependências, figurando entre estas, face às novas atribuições do SICAD em matéria de comportamentos aditivos sem substância, a da dependência ao jogo, seja ele praticado presencialmente em casinos, bingos, máquinas de jogos ou noutras categorias de jogos de fortuna ou azar e de jogos a dinheiro, incluindo as apostas, seja em modalidades virtuais (online via internet).

Por seu turno, em 2013, a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, ARSLVT, I.P., sucedeu, de acordo com o estabelecido no DL 22/2012, de 30 Janeiro, em algumas das atribuições do Instituto da Droga e Toxicodependência, I.P., nomeadamente, na componente operacional da intervenção no domínio dos problemas dos comportamentos aditivos e dependências, no âmbito da sua área geográfica de intervenção. Neste sentido, 2013 foi um ano de integração na Missão da ARSLVT, IP, procurando garantir-se o acesso à prestação de cuidados de saúde de qualidade, adequando os recursos disponíveis às necessidades, em convergência com as orientações do Plano Nacional de Saúde, e do Plano Nacional para a Redução dos Comportamentos Aditivos e das Dependências 2013-2020 e respetivo Plano de Ação para a Redução dos Comportamentos Aditivos e das Dependências 2013-2016 (estes dois últimos foram aprovados em Conselho de Ministros, após procedimento de consulta pública, e foram elaborados num processo com ampla participação, entre outros, dos competentes órgãos executivos e consultivos e dos parceiros das áreas do jogo).

A DICAD – Divisão de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências é um serviço central da ARSLVT, IP [alínea g) do n.º 2 do Artigo 1.º, da Portaria n.º 161/2012, de 22 de Maio, alterados pela Portaria n.º 211/2013 de 27 de Junho], tem por missão promover a redução do consumo de substâncias psicoativas, a prevenção dos comportamentos aditivos e a diminuição das dependências, na área de abrangência da ARSLVT, IP.
Esta Divisão desenvolve as suas competências cabendo-lhe garantir, a par da continuidade na prestação de cuidados de saúde nos comportamentos aditivos e dependências, o desenvolvimento e acompanhamento de projetos/programas que promovam intervenções ao nível do Tratamento, da Prevenção, da Redução de Riscos e Minimização de Danos (RRMD) e Reinserção Social, quer através das estruturas próprias da ARSLVT, designadamente as Unidades de Intervenção Local (UIL), quer através de Entidades privadas financiadas (Portaria n.º 27/2013, de 24 de Janeiro).

São já, portanto, diversas as entidades públicas (caso do SICAD a da DICAD da ARSLVT) e privadas (caso do Instituto de Apoio ao Jogador e dos grupos de interajuda dos Jogadores Anónimos) que desenvolvem e coordenam esforços em todas as áreas que dizem respeito ao jogadores abusivos e patológicos, aqui cabendo não só as da formação e investigação mas, em especial, no domínio do tratamento.

Há, assim, que confiar na eficaz intervenção destas diversas entidades na efetiva recuperação dos jogadores compulsivos - como é o caso do arguido FJ -, pois estes doentes afetados pelo jogo patológico não perdem apenas o seu tempo e dinheiro mas, e sobretudo, a sua saúde, dignidade e integração social.

Destarte, repete-se, bem andou o tribunal a quo ao submeter a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao FJ "a um apertado regime de prova que contemple o acompanhamento médico do vício do jogo" alicerçado num "programa", a ser "elaborado, acompanhado e fiscalizado pela D.G.R.S.", que "deverá contemplar" o "tratamento do seu problema de vício de jogo", tratamento a que "o arguido aceitou sujeitar-se, durante o período da suspensão".

Assim, improcede o recurso neste seu outro segmento.

III – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se integralmente a decisão recorrida, apenas com a correção do assinalado erro de escrita, pelo que onde no início desta se lê "284/08.6SELSB" passar-se-á a ler "370/14.3PCOER".

Sem tributação.

Notifique nos termos legais.

(o presente acórdão, integrado por dezoito páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal)

Lisboa, 27 de Novembro de 2014

Calheiros da Gama

Antero Luís