Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
414/12.3TVLSB.L1-7
Relator: GOUVEIA BARROS
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
CADUCIDADE
COMUNICABILIDADE
RENDAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I) Tendo-se transmitido o arrendamento para habitação do primitivo arrendatário para o cônjuge sobrevivo e deste para o filho de ambos, a morte deste em 29/3/2002 operou a caducidade do direito, pois nem o RAU nem o NRAU prevêem nova transmissão a favor da nora/genro do primitivo inquilino.
II) A comunicabilidade do direito ao arrendamento prevista no artigo 1068º do CC, na redação introduzida pela Lei nº6/2006, apenas é aplicável aos contratos celebrados após a entrada em vigor da referida lei, atenta a sua matriz inovadora;
III) Tomando a senhoria conhecimento do falecimento do arrendatário, filho do primitivo inquilino e tendo declarado à viúva que podia continuar a residir no locado mediante o pagamento da mesma renda paga anteriormente, é abusiva a invocação de falta de título de ocupação para obter a entrega da fração, depois de ter recebido as rendas ao longo de 10 anos, ainda que sem ter emitido qualquer recibo.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção):
Maria D., com domicílio na Rua … em …, intentou a presente ação declarativa de condenação, com processo ordinário contra A. R. F., viúva, pedindo que, com o reconhecimento do direito de propriedade, se condene a ré a restituir-lhe o rés-do-chão direito do prédio urbano sito na Rua X, em …e se condene a ré a pagar-lhe uma indemnização pela ocupação do mesmo, não inferior a €750,00 mensais a contar da citação e até à restituição efetiva do imóvel.
Alega para tal e em síntese que é dona do referido andar o qual foi dado de arrendamento, em 1940, a M. F., falecido em 1969, tendo-se transmitido o arrendamento à viúva do inquilino, E. F., falecida, por sua vez, em 1983.
Com o decesso da mencionada inquilina o contrato de arrendamento transmitiu-se para o seu filho, A. P. F. que, por sua vez, faleceu em 29/03/2002, no estado de casado com a ora Ré.
Assim, alega a autora, o contrato de arrendamento caducou com o falecimento de A. P. F., carecendo a demandada de título que legitime a ocupação que vem fazendo do identificado rés-do-chão.
Alega ainda que não obstante ter sido interpelada a devolver as chaves do andar, a ré não o fez, o que causa um prejuízo à autora de €750,00 mensais, valor que corresponde ao mínimo de renda que poderia obter se desse de arrendamento o andar em causa.
Contestou a ré para dizer, em síntese, que a presente ação se configura como uma verdadeira ação de despejo e não de reivindicação e, assim sendo, o direito da autora prescreveu em face do disposto no nº1 do artigo 65º do RAU, dado que a autora tomou conhecimento do decesso do anterior inquilino logo quando o mesmo ocorreu, em 29/3/2002.
Por outro lado, alega que a autora, após ter tomado conhecimento de tal falecimento, reconheceu-a como locatária, fazendo-lhe saber que podia continuar a habitar no locado, mediante o pagamento da mesma renda que era paga pelo inquilino falecido.
Replicou a autora para sustentar a propriedade do meio processual empregue e para impugnar o invocado conhecimento da morte do inquilino e o alegado reconhecimento da ré como inquilina, pugnando pela improcedência das exceções e reiterando causa de pedir e pedido.
Por despacho tabelar de fls 120 e seguintes foi conferida a regularidade formal da instância e julgada improcedente a exceção de prescrição, selecionando-se a matéria de facto com interesse para a decisão de mérito.
Discutida a causa, foi a final proferida sentença a julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência, condenou a ré a entregar à autora o andar reivindicado e a pagar à autora “uma indemnização pela ocupação da referida fração, no valor de €400,00 mensais, ao qual deve ser descontado o valor pago pela ré como contraprestação pelo uso da fração, desde 24-02-2012 até à efetiva restituição do imóvel”.
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Após a prolação da sentença foi dada notícia nos autos do falecimento da Autora, ocorrido em 25 de Setembro de 2013, sendo requerida a habilitação pelos seus sucessores, com base na escritura de fls 215/216, vindo a ser proferida sentença a julgar habilitados os sobrinhos da falecida, para em sua substituição prosseguirem os termos da causa.
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Inconformada com a decisão, recorreu a ré para pugnar pela revogação da sentença, louvando-se nas seguintes razões:
1. Com o devido respeito, não apreciou convenientemente a prova a Meritíssima Juíza “a quo” no que respeita ao facto 15 dos factos provados e ao facto 5 dos factos não provados.
2. Com efeito, referiu a primeira testemunha da Autora, AC, que quando se deslocou ao locado não entrou em todas as divisões, sendo certo que quem lhe abriu a porta foi a bisneta C. T.
Mais referiu, quando inquirido pela Mandatária da Ré que não podia afirmar que a Ré não se encontrava em casa, mas apenas que não a havia visto. Igualmente referiu que se deslocou à wc por causa de umas infiltrações e que não entrou, por exemplo, nos quartos.
3. Referiu ainda, que em outra ocasião, se deslocou ao locado tendo sido atendido pela Ré e que esta lhe referiu ter um pouco de pressa porque iria sair.
4. Ora, o facto desta testemunha não haver visto a Ré, não significa que a mesma não esteja no locado!!!
5. E mais, o facto da Ré se ausentar não quer dizer que ali não habite.
6. O cidadão comum viaja, visita familiares, vai a estabelecimentos de saúde, etc, etc, etc., e quando de avançada de idade fá-lo acompanhado de seus familiares.
7. A segunda testemunha da Autora, pessoa também de alguma idade, João Lopes, referiu que ainda há dias que havia visto a Ré no locado.
8. Por fim as testemunhas da Ré NP foram consentâneas e credíveis de que a Ré habita no locado, sendo certo que acompanhada por familiares, principalmente a neta C. T., e sendo certo também, que pela sua avançada idade e estado de saúde (praticamente cega) passa alguns períodos de tempo em casa de sua filha no Alentejo.
9. Dúvidas não podem restar de que a Ré habita o locado, sendo certo que na companhia de sua bisneta C. T., mas isto nada tem de ilícito, como igualmente nada tem de ilícito passar temporadas em casa de sua filha quando se encontra mais debilitada ou quando a sua bisneta não a pode acompanhar em Lisboa.
10. Por essa razão não deveria constar no facto 15º dos factos provados que a Ré habita em ..., mas antes que a Ré habita em Lisboa na companhia de sua bisneta C. T., desaparecendo consequentemente o facto 5º dos factos dados como não provados.
11. O que é aliás compreensível atendendo à sua avançada idade.
12. E nem tal constitui fundamento de despejo.
13. É verdade que a transmissão do arrendamento só opera em um grau, exceto se a primeira transmissão for para o cônjuge, mas não menos verdade será que os mesmos pressupostos que estão na base dessa doutrina são exactamente os mesmos que aplicam ao caso concreto.
14. Isto é, ao dizer-se que a primeira transmissão do primitivo arrendatário para o cônjuge não conta como tal, está subjacente a ideia de que o arrendamento é, no fundo, do casal, e por isso é que qualquer acção de despejo, independentemente de quem figure como titular do contrato, deve ser sempre intentada contra o cônjuge também, sob pena de ilegitimidade e de impossibilidade de execução do despejo.
15. Do mesmo modo, não se poderá pensar de forma distinta, já que A. P. F. era à data da morte de sua Mãe casado com a Apelante (Ré).
16. É pois defensável e de acordo com os princípios gerais de direito e até com o espirito da lei dizer-se que esta transmissão não conta, ou melhor que não é uma verdadeira transmissão, já que a transmissão para A. P. F. foi no fundo feita para o casal, ou seja para a Apelante também.
17. De outra maneira, não existiria qualquer segurança nem qualquer tutela para este tipo de situações, sendo que “os viúvos” teriam que no fim da vida procurar outro lugar para viver distinto daquele onde teriam vivido todo o matrimónio, como é o caso.
18. Temos pois, que, com o devido respeito por opinião diversa, dizer que a Ré é legítima arrendatária do imóvel a que se reportam os autos por haver sucedido no arrendamento de seu marido.
19. E mesmo que assim se não entendesse.
20. Seguindo o ensinamento do Professor Menezes Cordeiro in “Do Abuso do Direito: Estado das Questões e Perspectivas”, que se passará a citar, dir-se-á então o seguinte:
21. Os comportamentos típicos abusivos são: venire contra factum proprium; inalegabilidade; suppressio; tu quoque; desequilíbrio.
22. No caso em apreço interessa abordar o comportamento abusivo típico da inalegabilidade.
23. Segundo o Professor Menezes Cordeiro “(…) a inalegabilidade exige, à partida, os pressupostos (os quatro) da tutela da confiança, tal como vimos a propósito do venire;
24. - além disso, temos de introduzir mais três requisitos:
1.° Devem estar em jogo apenas os interesses das partes envolvidas e não, também, os de terceiros de boa fé;
2.° A situação de confiança deve ser censuravelmente imputável à pessoa a responsabilizar;
3.° O investimento de confiança deve ser sensível, sendo dificilmente assegurado por outra via.(…)”
25. Podemos afirmar que casos típicos deste instituto são os seguintes:
- aqueles em que o senhorio teve um comportamento censurável no sentido de induzir o arrendatário a celebrar o contrato sem observar o formalismo legal, com vista a posteriormente vir invocar a sua invalidade formal;
- aqueles em que o senhorio assegurou ao inquilino que nunca invocaria aquela invalidade, criando neste a confiança de que não seria feita tal invocação e, consequentemente, levando-o a fazer investimentos com base na validade do contrato;
- aqueles em que, atento o tempo de execução especialmente duradouro do contrato, se criou uma situação de confiança tutelável pelo instituto do abuso de direito, ao gerar nas partes, nomeadamente no inquilino, a confiança que não seria invocada a invalidade por falta de forma.
26. Indubitavelmente, estas duas últimas situações são subsumíveis no caso concreto.
27. O comportamento do Autora, ao intentar a presente ação de reivindicação, não reconhecendo agora a qualidade de arrendatária da Ré, é censurável pela consciência social dominante no sentido de se concluir que está a exercer o seu direito em termos clamorosa e intoleravelmente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante e, como tal, não deve ser julgada procedente, paralisando a mesma através do instituto do abuso de direito.
28. Por outro lado, importa ainda salientar que, a A. intentou a presente ação em Fevereiro de 2012, configurando-a como “Ação de Reivindicação de propriedade com processo ordinário, quando na realidade se trata de uma verdadeira Ação de Despejo.
29. E fá-lo porque, de acordo com a teoria que defende e a qual não se aceita e apenas por hipótese académica se concede, sabe estar prescrito o direito para intentar tal ação e isto porquê a A. dispunha de um ano a contar da data do falecimento do anterior arrendatário para o fazer.
30. A A. tomou conhecimento desse facto logo aquando do falecimento daquele, a 29.03.2002, como aliás refere no artigo 6º da sua p.i. e como ficou provado.
31. Ora, a lei aplicável à data era o RAU – Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo Decreto-Lei nº321/90, de 15 de Outubro, e nos termos do disposto no nº2 do artigo 55º do dito RAU, “A acção de despejo é, ainda, o meio processual idóneo para efectivar a cessação do arrendamento quando o arrendatário não aceite ou não execute o despedimento resultante de qualquer outra causa.”
32. E dispõe o nº1 do artigo 65º do mesmo diploma, que o direito para intentar a presente ação prescreve passado um ano.
33. É o caso.
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Em resposta a autora pugna pela confirmação do julgado, dizendo, em síntese de alegação, que “a douta decisão recorrida fez integral e correta aplicação da lei”.
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Factos Provados:

A sentença impugnada assentou nos seguintes factos:
1) A A é proprietária do prédio urbano sito na Rua X, em .., inscrito sob o artº… na matriz predial urbana da freguesia de S… e descrito sob a ficha nº… da freguesia de S…, na Conservatória do Registo Predial de …
2) Por contrato verbal celebrado em 1940, um anterior proprietário do imóvel deu de arrendamento a M. F. o R/C lado direito do mencionado prédio, com destino a habitação.
3) M. F. faleceu em 1969 no estado de casado com E. F. para quem o referido contrato de arrendamento se transmitiu.
4) E. F. faleceu em 1983, no estado de viúva.
5) O contrato de arrendamento transmitiu-se para seu filho A. P. F. que, com ela convivia no locado no ano anterior ao seu falecimento.
6) A. P. F. faleceu no dia 29/03/2002, no estado de casado com a ora Ré.
7) A Ré detém as chaves da fração referida;
8) O valor locativo da fração é de cerca de 400€.
9) A A tomou conhecimento do óbito de A. P. F. logo após o falecimento deste, em 29/03/2002.
10) A A fez saber à Ré que podia continuar na fração;
11) Acordaram que o montante da contrapartida pela habitação da fração seria idêntico ao pago pelo marido da R.
12) Que esse montante seria pago através de transferência bancária;
13) A A. nunca recusou o recebimento de qualquer valor pago pela ré como contrapartida pelo uso da fração, desde então.
14) A A nunca emitiu recibos, nem antes, nem depois do falecimento de A. P. F..
15) A ré reside em Elvas, habitando a fração dos autos a sua bisneta C. T..
16) A ré continua a pagar, mensalmente, cerca de €178,00 à autora, como contrapartida pelo uso da fração.
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Análise do recurso:
Na presente ação a autora invoca o seu direito de propriedade sobre o rés-do-chão direito do nº58 da Rua X, em …, alegando que a ré o ocupa sem qualquer título legítimo (artigo 9º da p.i.).
Ou seja, veio simplesmente atuar o poder de sequela ínsito no conteúdo do direito real que se arroga assistir-lhe sobre o identificado rés-do-chão, ancorada no disposto nos artigos 1305º e 1311º, nº1, ambos do Código Civil.
Na petição não consta o mais leve indício de que a demandada tivesse alguma vez posto em crise a titularidade de tal direito real e, compulsada a contestação apresentada, dela ressalta o reconhecimento pela ré do direito de propriedade da autora (artigo 14º).
Ora, dispõe o nº2 do citado artigo 1311º que “havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”.
Significa o exposto que o pedido principal de reconhecimento do direito de propriedade sobre a coisa (pronuntiatio) não suscita nenhuma controvérsia, centrando-se o dissídio apenas sobre o sequente pedido de restituição da coisa (condemnatio), contra o qual a ré esgrime um facto impeditivo que, a ser demonstrado, legitima a recusa da entrega.
Temos assim que são perfeitamente viciosas quaisquer considerações sobre os pressupostos da ação de reivindicação, ou sobre a sua configuração dogmática, pois a única questão cuja dilucidação importa fazer consiste em saber se à ré assiste título que lhe confira a detenção ou posse sobre o andar reivindicado e, consequentemente, legitime a recusa da entrega do andar e, no plano processual, impeça a restituição peticionada.
Mas idêntica impertinência afeta a abordagem das questões elencadas nas conclusões formuladas pela recorrente sob os números 1 a 12, pois para a existência ou inexistência de título de ocupação é rigorosamente indiferente que a ré habite o andar reivindicado, pois tal situação fáctica não interfere com a tutela reclamada pela autora.
Na verdade e como é intuitivo, concluindo-se pela existência de título legítimo de ocupação, a presente ação não pode deixar de naufragar no tocante à entrega pretendida e à indemnização reclamada, quer a ré habite ou não na casa dos autos (sem prejuízo, como é óbvio, de em ação própria a autora pedir a resolução do arrendamento se para tal tiver fundamento).
Por fim, assinala-se que a recorrente recupera nas conclusões enunciadas sob os pontos 28 a 33 a questão da impropriedade do meio processual utilizado e bem assim a prescrição do direito da autora, ancorada no disposto no nº1 do artigo 65º do RAU, questões que foram afrontadas e decididas no despacho saneador de fls 120 a 122, sem que à ré tal despacho tivesse merecido reparo.
Nesta conformidade, não nos pronunciaremos sobre tais questões, dado que sobre elas se formou caso julgado!
Posto isto, cumpre-nos pronunciar sobre os seguintes temas:
I) Transmissão do arrendamento a favor da ré por efeito da morte do marido;
II) Novo arrendamento a favor da ré na sequência de tal decesso;
III) Abuso de direito da A. em face da factualidade demonstrada.
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I) Sobre a “transmissão” do arrendamento a favor da ré:
Não subsiste qualquer controvérsia doutrinal ou jurisprudencial sobre o entendimento de que “é à luz da lei em vigor ao tempo em que ocorreram os factos fundamentadores da caducidade, isto é, da morte do arrendatário (…) que deve ser apreciada a causa de extinção invocada” (citámos Ac. do STJ de 7/5/2014 - Gregório de Jesus).
É certo que o nº1 do artigo 59º do NRAU dispõe que tal diploma se aplica “às relações contratuais constituídas que subsistam na sua entrada em vigor, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”.
E o nº1 do artigo 26º do mesmo diploma estabelece que “os contratos celebrados na vigência do RAU, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades dos números seguintes”.
Mas o regime do artigo 26º do NRAU foi estendido pelo artigo 28º aos contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU, o que vale por dizer que lhe é aplicável o regime de transmissão por morte estabelecido nos artigos 57º do referido diploma.
Com efeito, no caso vertente, o contrato de arrendamento foi celebrado em 1940, tendo-se transmitido à viúva do primitivo inquilino em 1969 e ao filho de ambos, marido da ré, em 1983, antes portanto da publicação do RAU.
Simplesmente, para além de o artigo 57º do NRAU não prever a transmissão a favor da nora/genro do/a primitivo/a inquilino/a, é também manifesto que a situação sub judicio não cabe na previsão do nº1 do artigo 59º, pois não subsiste a relação contratual a que a norma se reporta.
Como se escreve no acórdão desta Relação do passado dia 23/9/2014 “no que respeita à transmissão por morte do arrendatário, aos contratos de arrendamento para habitação celebrados anteriormente ou na vigência do RAU aplica-se o artigo 57º do NRAU, por via da imposição do artigo 26º, n.º 2 do mesmo diploma, ou seja, não se lhes aplica o disposto no artigo 1106º do Código Civil, na redação dada pelo artigo 3º da Lei n.º 6/2006, que regulou de modo diferente o artigo 85.º do RAU.
Este preceito - artigo 57º do NRAU - porém, só é aplicável às situações em que está em causa a “morte do primitivo arrendatário.”
De todo o modo e como se decidiu no Acórdão desta Relação de 14/2/2014 (Roque Nogueira) “o que o nº4 do citado artº57º manifestamente prevê é a transmissão a favor dos filhos ou enteados do primitivo arrendatário, no caso de morte do cônjuge sobrevivo ou unido de facto ou ascendente, para quem tenha sido transmitido o direito ao arrendamento”, não se prevendo a transmissão a favor da nora ou genro do/a primitivo/a arrendatário/a.
No caso que nos ocupa, o óbito do marido da ré ocorreu em 29/2/2002 e, sendo ele o derradeiro beneficiário da cadeia de transmissões do arrendamento estabelecida pelo artigo 85º do RAU, em vigor na referida data, não faz sentido discorrer sobre qualquer nova transmissão a favor da ré.
Mas, em abono da verdade, a recorrente também não convoca o novo regime para ancorar a sua pretensão, assumindo que “a lei aplicável à data era o RAU”, alegando todavia que “a transmissão para o seu marido foi no fundo feita para o casal, ou seja, para a apelante também”.
Ora, sem embargo do que se disse quanto à exclusão da nora/genro da cadeia de transmissões do arrendamento, a Lei nº6/2006 concedeu-lhes proteção significativa ao introduzir uma nova redação ao artigo 1068º do CC que agora dispõe que “o direito ao arrendamento - de prédios urbanos - (se) comunica ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente”.
Simplesmente, tal lei não é aplicável no caso concreto pois, tendo a transmissão a favor do cônjuge da ré ocorrido em 1983, é-lhe aplicável a regra da incomunicabilidade estabelecida no nº1 do artigo 1110º do CC e depois replicada no artigo 83º do RAU.
Como se escreve no Acórdão desta Relação de 23/9/2014 atrás citado “o princípio da comunicabilidade conjugal do direito do arrendatário, de acordo com o regime de bens vigente a que se reporta o artigo 1068.º do Código Civil, consagra uma norma inovadora, apenas aplicável aos contratos celebrados na vigência da nova lei”.
Improcede, assim a apelação no tocante à questão em título.
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II) Quanto ao novo arrendamento a favor da ré:
Na contestação a ré alegou que a autora teve conhecimento do falecimento do seu marido, A. P. F. “logo em Abril de 2002” e fez-lhe saber que poderia continuar a habitar o locado, tendo convencionado que o montante da renda seria idêntico ao pago pelo seu falecido marido”.
Acrescenta ainda que “foi combinada a forma e local de pagamento - transferência bancária para uma conta indicada pela autora”, assinalando que sempre procedeu ao depósito das rendas nos termos acordados, não obstante nunca terem sido emitidos pela senhoria os pertinentes recibos, prática que já ocorria com seus sogros e marido.
Na réplica, a autora asseverou que “nunca teve conhecimento, a não ser pouco antes da interposição da ação, do falecimento do marido da ré, uma vez que nunca lhe foi comunicado (…) pelo que obviamente nunca a reconheceu como locatária” (é nosso o sublinhado).
Da discussão da causa resultou provado que:
- A autora tomou conhecimento do óbito de A. P. F. logo após o falecimento deste, em 29/03/2002.
- A Autora fez saber à Ré que podia continuar na fração;
- Acordaram que o montante da contrapartida pela habitação da fração seria idêntico ao pago pelo marido da R.
- Que esse montante seria pago através de transferência bancária;
- A Autora nunca recusou o recebimento de qualquer valor pago pela ré como contrapartida pelo uso da fração, desde então.
- A Autora nunca emitiu recibos, nem antes, nem depois do falecimento de A. P. F..
- A ré continua a pagar, mensalmente, cerca de €178,00 à autora, como contrapartida pelo uso da fração.
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Na resposta à alegação da recorrente, a autora não põe em crise a decisão da matéria de facto como lhe consente o nº2 do artigo 636º do CPC, o que tem como corolário duas irrefutáveis conclusões:
- A falecida autora faltou à verdade quando na réplica negou os factos que agora foram dados como provados;
- Entre a falecida Autora e a Ré foi estabelecido um contrato de arrendamento verbal, após o decesso do marido da recorrente.
A primeira conclusão de nada releva, em face do falecimento da autora, nomeadamente para efeito do disposto no artigo 542º do CPC.
Mas, poderá ser considerado o contrato de arrendamento verbal inequivocamente estabelecido entre as partes, quando o nº1 do artigo 7º do RAU estabelecia que “o contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito”?
Faz-se aqui um aparte para assinalar que a autora confessa o recebimento da renda (artigo 12 da réplica), dizendo todavia que tal facto não traduz reconhecimento da ré como inquilina, pois não tinha conhecimento do óbito do marido.
Se assim fosse, seria incontornável a improcedência da exceção invocada pela ré, pois seria absurdo pensar que a Autora tivesse reconhecido a ré como inquilina ou tivesse celebrado com ela novo arrendamento quando, face à informação de que dispunha, o beneficiário da transmissão continuava a ser titular do arrendamento.
Só que tal construção se desmoronou quando o tribunal considerou provado que a Autora “tomou conhecimento do óbito de A. P. F. logo após o falecimento deste, em 29/3/2002”.
Com efeito, não é imaginável que o senhorio, sabendo da morte do inquilino, continue ao longo de dez anos a receber rendas da viúva sem que tal conduta traduza o reconhecimento da sua qualidade de arrendatária, seja por opção consciente, seja por negligência na indagação da razão legal subjacente a tal reconhecimento.
Ora sucede que enquanto a legislação pretérita (DL nº188/76, de 12 de março e DL nº 13/86, de 23 de janeiro) tinha estabelecido que “a falta de contrato escrito presume-se imputável ao locador e a respetiva nulidade só é invocável pelo locatário“, podendo este “provar a existência do contrato por qualquer meio de prova admitido em direito, desde que não haja invocado a nulidade”, o RAU não contém norma similar.
É certo que o artigo 6º do Decreto Preambular que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano estabeleceu que “o disposto nos artigos 7º e 8º do Regime do Arrendamento Urbano não prejudica os precisos efeitos que os artigos 1º do Decreto-lei nº 13/86, de 23 de Janeiro, e 1029º, nº 3, do Código Civil reconheciam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do presente diploma“.
Ou seja, o RAU apenas manteve as “invalidades mistas de pretérito” relativamente aos contratos celebrados antes da sua entrada em vigor, o que afasta a possibilidade da sua invocação no caso concreto, pois o arrendamento a favor da recorrente é posterior a 29/3/2002.
Este diploma afastou aquela solução legal e, inobservada a forma escrita, apenas permite a prova do contrato mediante a exibição do recibo de renda (nº3 do artigo 7º do RAU).
No caso vertente, porém, nem o contrato foi reduzido a escrito, nem a senhoria emitiu qualquer recibo de renda (deu-se por provado que nunca emitira tal documento, nem antes nem depois do falecimento do marido da ré).
Na ausência de tais documentos, poderá concluir-se sem mais que o contrato pura e simplesmente não existe e dar-se provimento à restituição do andar ao senhorio?
Assim se entendeu na sentença que justificou assim o decidido:
“De todo o exposto resulta que não tendo a ré apresentado um contrato escrito ou recibos comprovativos das rendas alegadamente pagas, devidamente assinados pelo senhorio com a indicação do objeto a que se referiam e emitidos em nome da arrogada arrendatária, não logrou a mesma provar a celebração de um novo contrato de arrendamento (cfr. o disposto no art. 7.º do RAU conjugado com o art. 364.º do CC). No fundo, a autora limitou-se a tolerar a presença da ré no arrendado, por ser mulher do falecido arrendatário, aceitando desta uma contrapartida”.
Obviamente, não sufragamos tal entendimento!
Antes de mais não faz sentido falar em rendas alegadamente pagas, pois o tribunal considerou terem sido efetivamente pagas todas as rendas, pagamento que como já se disse foi confessado pela autora (artigo 12º da réplica).
Assinala-se mesmo que o tribunal a quo, não obstante o disposto no artigo 393º do CC, admitiu prova testemunhal para demonstração dos factos recolhidos nos pontos 10, 11 e 12 de “Factos Provados”, situação que não suscitou da Autora qualquer reparo, por certo na consideração da sua inutilidade prática, dado que, se reconheceu ter recebido as rendas durante dez anos e se prova que teve conhecimento da morte do inquilino, que interesse pode ter a averiguação sobre se houve um acordo entre as partes, ainda que desprovido de forma legal, ou se apenas se configura um reconhecimento, tácito mas inequívoco, da qualidade de arrendatária?
Não nos deteremos sobre a caracterização da forma escrita imposta pelo nº1 do artigo 7º do RAU, para uns formalidade ad substantiam e, para outros, mera formalidade ad probationem, pois, admitindo a lei que a existência do contrato se possa provar através do recibo do pagamento da renda, tal lucubração teórica, no nosso entender, não tem razão de ser.
Poderá questionar-se se será compreensível que se interprete a lei de forma a excluir a confissão do elenco dos meios de prova do contrato, quando ela própria confere a um documento com menor força probatória a virtualidade para suprir a inobservância da forma escrita, mas não nos parece que tal virtualidade seja compatível com a caracterização da forma postergada como ad substantiam.
Assentemos pois que os factos dados por provados configuram inequivocamente a existência de um contrato de arrendamento estabelecido entre a primitiva Autora e a Ré, posto que inválido por falta de forma, nada tendo a ver com a tolerância surpreendida pelo tribunal a quo, claramente ao arrepio dos factos que dera por provados.
Não se descarta, naturalmente, a possibilidade de a celebração do contrato de arrendamento ter subjacente considerações de louvável humanidade, pois aquando do falecimento do marido a ré tinha já 85 anos de idade.
Mas tal presunção não legitima que se converta em ato de mera tolerância um consenso onde estão presentes todos os elementos típicos do contrato de arrendamento que não inclui a motivação íntima de qualquer dos contraentes.
Em suma, se a prova da existência do arrendamento se basta com a exibição do recibo de renda, então a redução do contrato a escrito não pode ser tida como formalidade ad substantiam.
Sucede, no entanto, que a ré também não dispõe de qualquer recibo de renda, uma vez que a Autora “nunca emitiu recibos, nem antes, nem depois do falecimento de A. P. F.”.
É aqui que entra a apreciação sobre o abuso de direito convocado pela recorrente em abono da sua posição nas conclusões 20 a 27.
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III) Sobre o abuso de direito:
O tribunal a quo, após discorrer sobre o instituto em título e a sua configuração dogmática, conferiu os factos provados à luz do que acabara de explanar e disse:
“Analisados os já referidos factos 9) a 14) de onde resulta que foi a autora quem acedeu a que a ré permanecesse naquela que era a sua casa de morada de família e que até aceitou o pagamento de uma contraprestação correspondente ao valor da renda pago pelo anterior inquilino. Tudo isto durante 10 anos. Não seria inapropriado concluir que estaria agora a venire contra factum proprium ao dizer que não celebrou contrato de arrendamento conforme às regras formais, ou seja por escrito, pelo que o mesmo inexiste e que a ré teria que devolver a casa.
Porém, há uma circunstância que a autora teria necessariamente que provar para que o abuso de direito funcionasse: era que continuava efetivamente a residir/habitar a morar na fração objeto dos autos. E, na verdade, ficou provado exatamente o contrário: a ré já não reside na fração”.
Com o devido respeito, a conclusão é absolutamente inconsistente, se não mesmo absurda!
Na verdade, após sopesar os factos que acabara de dar por provados, o tribunal conclui que os mesmos preenchem um abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
Mas se assim é, a sanção para o abuso de direito em que incorreu a autora só pode ser o reconhecimento da validade do contrato, paralisando a nulidade decorrente da inobservância da forma legal.
Neste contexto a sentença, de modo implícito, proclama a validade do contrato de arrendamento o que deveria conduzir, incontornavelmente, à improcedência da ação no que tange à entrega do andar.
Todavia, porque a inquilina não habita no andar, ordena a entrega, considerando “resolvido” o contrato de arrendamento, o que vale por dizer que a ação de reivindicação se converteu, ex oficio, em ação de despejo por falta de residência permanente!
Compreender-se-ia que o tribunal a quo, depois de considerar que “a autora se limitou a tolerar a presença da ré no arrendado, por ser mulher do falecido arrendatário, aceitando desta uma contrapartida”, não valorasse a não redução a escrito do contrato de arrendamento como abuso de direito, pois, na sua ótica, a utilização do andar pela ré se inscrevia num ato de mera liberalidade ou, talvez melhor, de contida generosidade.
Proclamar que “não logrou a ré provar a celebração de um novo contrato de arrendamento” para de imediato afirmar que “não seria inapropriado concluir que a A. estaria agora a venire contra factum proprium, ao dizer que não celebrou contrato de arrendamento conforme às regras formais” é incorrer em irrefragável contradição!
Na verdade, tendo a Autora ancorado a sua pretensão na falta de título de ocupação do rés-do-chão, decorrente da caducidade do arrendamento titulado pelo falecido A. F., seria impertinente - e porventura imprudente - a chamada à colação da falta de residência, situação que aparece subliminarmente ligada à violação de um contrato de arrendamento, no caso supostamente inexistente.
Coerentemente, a base instrutória não contém qualquer facto atinente à residência da ré, nem foi proferida qualquer decisão a aditar qualquer novo facto, seja por impulso das partes seja por iniciativa do juiz.
Todavia, dos 12 factos submetidos a demonstração o tribunal deu por provados 10 e não provados 5!!!
Tal ampliação não tem, reitera-se, a cobertura de qualquer despacho prévio, nem a pronúncia das partes no âmbito do exercício do contraditório que a lei lhes confere, limitando-se a sentença a justificar (?) o aditamento, dizendo (fls 144) que “foram considerados nos termos do artº5º e 607º, nº4 do novo CPC”, norma esta que condensou regras antes dispersas pelos artºs 653º, nº2, 655º, 658º e 659º cujo alcance estava há muito consolidado, mas que o toque de modernidade agora introduzido dá potencial bastante para ser fonte de sistemáticas anulações do processado.
Na verdade, surge em absoluto desrespeito das mais elementares regras processuais a afirmação vertida no ponto 15 de “Factos Provados” de que “a ré reside em …, habitando a fração dos autos a sua bisneta C.”, ao mesmo tempo que era dado como não provado que “a ré reside na Rua X, 58, R/C, direito, acompanhada da sua bisneta C.”.
Como já se disse no início desta análise, estando a controvérsia entre as partes centrada exclusivamente na existência de título legítimo de ocupação, é rigorosamente indiferente saber se a ré reside em .., em … ou noutro qualquer lugar.
Posto isto, cabe-nos então aferir se a factualidade apurada pode ser valorada como abuso de direito.
Pela sua pertinência, invoca-se o que sobre o tema se escreveu no acórdão do STJ de 29/9/2009 (Salazar Casanova) reproduzindo decisão anterior do mesmo relator proferida no proc. nº81/04.8TBIDN:
“O abuso do direito tem sido reconhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça em casos de nulidade do contrato por inobservância de forma legal (artigo 220º do Código Civil).
A orientação deste Tribunal tem sido a de que o reconhecimento do abuso do direito de modo a afastar as consequências da nulidade apenas deve ser declarado em casos de clamorosa injustiça.
Já a propósito do anteprojecto do artigo 2.º do Código Civil quanto à forma dos negócios jurídicos que dizia “ uma declaração negocial que carece de forma legalmente prescrita é nula, desde que da lei outra
coisa não resulte”, Rui de Alarcão comentava o seguinte:

‘No tocante às consequências da inobservância da forma legalmente prescrita, importa ainda acentuar que, em virtude das regras sobre a culpa in contrahendo e dos princípios gerais da boa fé ou do abuso do direito, poderá em certos casos ter-se por excluída a possibilidade de invocação da nulidade por vício de forma ou, de todo o modo, reconhecer-se lugar a uma indemnização, ao menos pelo chamado interesse ou dano negativo ou da confiança […]
Mas deve salientar-se que a ideia de excluir a invocação da nulidade por vício de forma, por ser essa invocação contrária às regras da boa fé ou do abuso do direito, tem sido combatida por alguns autores, a pretexto de que as normas que exigem o formalismo negocial são, dada a razão de certeza que as inspira, absolutamente infrangíveis.
Ora parece-me que semelhante ponto de vista é absolutamente criticável, pois se é certo que, em determinadas hipóteses, as razões de exigência de forma poderão realmente reclamar que se não afaste a possibilidade de invocação de nulidade, embora seja de reconhecer uma pretensão de indemnização, outras vezes não acontecerá assim. E, a ser deste modo, afigura-se de toda a conveniência, para evitar dúvidas, que as aludidas regras sejam bem explícitas em proscrever a solução criticada” (“Forma dos Negócios Jurídicos”, B.M.J, n.º 86, Maio de 1959, pág. 185/1286).
Não se vê que as regras prescritas no Código Civil tenham excluído a possibilidade de invocação bem sucedida do abuso do direito em caso de nulidade por vício de forma, mas isso não significa que a jurisprudência enverede por um casuísmo que, de algum modo, converta a excepcionalidade (que é a inalegabilidade) em situação normal e corrente, por mera violação de regras de boa fé.
Ora, a nosso ver, e procurando acompanhar-se o sentido actual da doutrina - Menezes Cordeiro em casos bem vincados “admite hoje que as próprias normas formais cedam perante o sistema de tal modo que as nulidades derivadas da sua inobservância se tornem verdadeiramente inalegáveis” (Tratado de Direito Civil Português, I Volume, Parte Geral, Tomo IV, pág. 311 - reconhece-se que não basta afirmação de clamorosa ofensa à justiça; é que o afastamento da nulidade há-de justificar-se por via de uma análise cuidada dos factos procurando encontrar neles a censurabilidade da pessoa a responsabilizar pela situação de confiança originada, a dificuldade de assegurar por outra via o investimento de confiança e ainda a verificação de que terceiros de boa fé, não serão afectados nos seus interesses”.
Já acima assinalámos a ostensiva má-fé da autora ao alegar só ter tido conhecimento do óbito do inquilino pouco tempo antes da proposição desta ação, pois se provou que teve logo conhecimento desse inditoso evento.
“A inércia, omissão ou não exercício do direito por um período prolongado (…) se contender com os limites impostos pela boa-fé, constitui uma expressão ou modalidade especial do “venire contra factum proprium”, conhecida por “supressio” (ou verwirkung, no alemão original)”, ensina o Ac. do STJ de 11/12/2013 (Fernandes da Silva).
Numa visão rigorista e se estivesse apenas em causa a inércia da senhoria em reclamar a entrega do andar após a caducidade do arrendamento, seria plausível a chamada à colação de tal modalidade de abuso do direito, pois, volvidos dez anos, teria gerado no espírito da ré a justificada confiança de que não iria atuar tal direito contra quem sempre vivera no andar e tinha agora 95 anos.
Não é essa todavia a vertente mais impressiva da conduta da autora!
Com efeito o que torna o deferimento da tutela reclamada pela autora clamorosamente injusta radica no facto de ela alegar a inexistência de título de ocupação, quando ela própria “fez saber à ré que podia continuar na fração e acordou com ela o montante e modo de pagamento da renda, recebendo sempre a renda ajustada”.
E como se não bastasse, não reduziu a escrito tal acordo, nem emitiu qualquer recibo das quantias pagas ao longo destes dez anos (infração que já cometia na vigência do contrato com o anterior inquilino), vedando à ré, com tal ilícito, a possibilidade de ela lançar mão da prova taxada na lei para a demonstração do contrato de arrendamento.
Objetar-se-á que traduzindo-se a inalegabilidade na inadmissibilidade da invocação do vício de forma, a mera alegação de que à ré não assiste título legítimo de ocupação não conflitua com tal limitação, pois a autora não se prevalece do vício de forma do contrato, uma vez que impugna a celebração de qualquer contrato.
Porém, como refere Coutinho de Abreu (Do Abuso de Direito; pág. 59) “a doutrina moderna, sobretudo a alemã, tem elaborado uma série de “hipóteses típicas” ou “figuras sintomáticas” concretizadoras da cláusula geral de boa fé, onde cabe a proibição de “venire contra factum proprium”, o abuso da nulidade por vícios formais, a proibição de recusa da prestação apta a satisfazer o interesse do credor, ainda que desconforme com as estipulações contratuais e a interdição da invocação da exceção de não cumprimento, quando a falta do inadimplente não tenha gravidade que o justifique.
Trata-se, como é óbvio, de uma enumeração não exaustiva, recolhida da jurisprudência dos tribunais, onde cada dia surgem novas situações a reclamar idêntico tratamento.
É intuitivo que, sendo o abuso de direito de conhecimento oficioso, a proclamação da nulidade de um contrato por inobservância da forma legal imputável ao beneficiário de tal declaração, representa, sem qualquer dúvida, uma “clamorosa ofensa do sentimento jurídico-socialmente dominante”, quer ele a invoque, quer seja mero corolário da aplicação silogística da norma onde tal requisito tem assento.
Como refere o autor mencionado (obra citada, pág. 76) “o abuso de direito é uma forma de antijuridicidade ou ilicitude. Logo, as consequências do comportamento abusivo têm de ser as mesmas de qualquer actuação sem direito, de todo o acto (ou omissão) ilícito”.
Assim, “para além da responsabilidade civil ou até a ela cumulada, poderá descobrir-se toda uma infinda gama de sanções que, essas sim, impedirão que o titular do direito abusivamente exercido obtenha ou conserve as vantagens que obteve com a prática do acto abusivo e o farão reentrar, em última análise, no exercício legítimo do direito: desde a nulidade, a anulabilidade, a inoponibilidade ou a rescindibilidade do acto ou negócio jurídico quando seja na sua prática que o acto abusivo se verifique, até ao restabelecimento da verdade ou da realidade dos actos com ele conexionados, aceitando, por exemplo, a sua validade não obstante a falta de forma exigida” (citámos Fernando Cunha de Sá, Abuso do Direito, pág. 64).
Tendo em conta o caso concreto, é intuitivo que a sanção que ao abuso cabe é precisamente a validade do contrato de arrendamento, não obstante a falta de forma estabelecida na lei vigente à data da celebração do acordo a que se reportam os factos enunciados nos pontos 10, 11 e 12 de “Factos Provados”.
Donde resulta necessariamente a improcedência da ação no que concerne à restituição do andar, mantendo-se a decisão apenas relativamente ao reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), sem embargo de tal pronunciamento não ter qualquer incidência tributária, dado que a ré não deu causa à ação e não contestou o direito de propriedade [artigo 535º, nºs1 e 2 a) do CPC].
Em suma, a apelação merece integral provimento.
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Decisão:
Nos termos expostos, julga-se procedente a apelação e revoga-se a sentença na parte em que condenou a ré a entregar à autora o andar reivindicado e a pagar-lhe indemnização pela ocupação da fração, mantendo-se quanto ao reconhecimento do direito de propriedade a favor da Autora, sobre o qual não existiu qualquer litígio.
As custas em ambas as instâncias ficam a cargo dos Autores.
Lisboa, 9 de dezembro de 2014
(Gouveia Barros)
(Conceição Saavedra)
Cristina Coelho)