Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1498/2006-7
Relator: ROQUE NOGUEIRA
Descritores: PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
CONFISSÃO JUDICIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/06/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- Os créditos prestados no exercício de profissão liberal prescrevem no prazo de dois anos nos termos dos artigos 312.º e 317.º, alínea c) do Código Civil.
II- A prescrição é presuntiva o que significa que não basta ao devedor invocar a presunção, impondo-se-lhe ainda de alegar expressamente o pagamento para beneficiar da presunção.
III- Ainda que se defenda que a invocação da presunção traz implícita a alegação de pagamento, a partir do momento em que o A., na petição, alega expressamente que o réu reconheceu a dívida tendo sido instado a pagá-la, mas não o tendo feito, não impugnada esta efectiva alegação, o facto em causa não pode deixar de se considerar admitido por acordo (artigo 490.º,n.º2 do Código de Processo Civil), traduzindo confissão que é precisamente o meio que a lei reconhece idoneidade para afastar a prescrição presuntiva (artigos 313.º e 314.º do Código Civil)

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – Relatório.

[…] António […] propôs, em 20/1/05, acção declarativa, com processo ordinário, contra Associação Desportiva […], alegando que exerce a profissão de advogado e que, no exercício dessa actividade, prestou à ré, entre o ano de 1996 e o mês de Abril do ano de 2003, serviços de consulta e orientação jurídica relativos a assuntos de natureza judicial e extrajudicial, constantes dos actos descritos na conta de despesas e honorários que lhe remeteu em 3/1/04 e 2/9/04.

Mais alega que os honorários, despesas e IVA incluídos, relativos à prestação daqueles serviços foram fixados pelo autor no valor líquido de € 52.151,90, mas que, não obstante a ré reconhecer dever-lhe essa importância e ter sido interpelada para a pagar, ainda não o fez.

Conclui, assim, que deve a ré ser condenada a pagar-lhe a importância de € 52.151,90, acrescida de juros de mora que, entretanto, à taxa legal, se vencerem até integral pagamento da dívida.

A ré contestou, alegando que goza da presunção do cumprimento, pelo que, de acordo com o disposto no art.317º, al.c), do C.Civil, os créditos peticionados pelo autor se encontram prescritos, uma vez que foi citada para a presente acção no dia 25/1/05, ou seja, em data muito posterior à ocorrência da prescrição presuntiva de todos os créditos alegados pelo autor.

Conclui, deste modo, pela sua absolvição do pedido.

O autor respondeu, alegando que, tratando-se de prescrição meramente presuntiva, funda-se no cumprimento da obrigação, sendo que, a ré nunca alegou esse cumprimento e não impugnou nenhum dos factos vertidos na petição, o que traduz admissão desses factos e consubstancia uma confissão expressa da ré, em juízo, da dívida reclamada pelo autor.

Conclui, assim, pela improcedência da excepção de prescrição.

Seguidamente, foi proferido saneador – sentença, tendo a acção sido julgada totalmente procedente e tendo a ré sido condenada a pagar ao autor a quantia de € 52.151,90, acrescida de juros de mora, contados desde a data a citação, até integral pagamento.

Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação daquela sentença.

Produzidas as alegações e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2 – Fundamentos.

2.1. No que respeita à matéria de facto, remete-se para os termos da decisão da 1ª instância que decidiu aquela matéria, ao abrigo do disposto no art.713º, nº6, do C.P.C., uma vez que não foi impugnada, nem há lugar a qualquer alteração da mesma.

2.2. A recorrente remata as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida pelas Varas de Competência Mista do Funchal que julgou procedente a acção intentada pelo ora Recorrido, condenando a ora Recorrente a pagar aquele a quantia de € 52.151,90(cinquenta e dois mil, cento e cinquenta e um euros e noventa cêntimos), acrescida de juros de mora, contados desde a data da citação até integral pagamento.

2. Considerou a douta decisão recorrida que a prescrição presuntiva alegada pela ora Recorrente teria que ser julgada improcedente, pois «não tendo a Ré alegado de forma explícita o pagamento do crédito do Autor, a falta de impugnação especificada dos factos invocados por este, teremos que considerar que a Ré confessou tacitamente, ilidindo a referida presunção de prescrição.».

3. Contudo, e salvo o devido respeito, não deverá colher a posição perfilhada na douta decisão recorrida.

4. A invocação da prescrição presuntiva por parte do devedor consubstancia uma presunção de pagamento e, enquanto presunção, e de acordo com o disposto no art. 313°, n° l do Código Civil, apenas pode ser ilidida por confissão do devedor originário ou daquele a quem a dívida tiver sido transmitida por sucessão.

5. Ora, para se considerar confessada a dívida assevera, por sua vez, o artigo 314° do Código Civil, que só existem duas formas possíveis - ou o devedor tem que se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal, ou o devedor tem que praticar em juízo actos incompatíveis com a presunção do cumprimento.

6. Ora, no caso em apreço, a ora Recorrente não praticou em juízo qualquer acto incompatível com a presunção de cumprimento que expressamente invoca, na medida em que, e atentos os exemplos apontados pela doutrina e pela jurisprudência, não alegou a compensação ou pagamento em prestações, e nem tão pouco negou a originária existência do débito ou discutiu o seu montante.

7. Nessa medida, e salvo o devido respeito, o facto de a ora Recorrente não ter alegado expressamente o pagamento dos créditos invocados pelo Autor, ora Recorrido, na petição inicial, não constitui uma confissão tácita, nem permite, por si só, ilidir a presunção do pagamento e afastar a aplicação da prescrição presuntiva.

8. Em sentido convergente, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23 de Novembro de 2000, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29 de Junho de 2000 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06 de Dezembro de 1990.

    9. Na jurisprudência supra enunciada considera-se que a simples invocação da prescrição presuntiva tem já implícita a alegação do cumprimento, pelo que a alegação daquele instituto não implica a confissão tácita do incumprimento alegado pelo Autor.

   10. Desta maneira, e de acordo com a jurisprudência supra citada, o facto de a ora Recorrente não ter alegado expressamente o pagamento dos créditos invocados pelo Autor, ora Recorrido, não implica uma confissão tácita e consequentemente não origina, por si só, que se ilida a presunção de pagamento invocada no articulado de defesa.

11. Por outro lado, «Ainda que afaste a aplicação da prescrição presuntiva, o tribunal deve facultar aos réus o ensejo de provar que cumpriram a obrigação se tiverem alegado expressamente a excepção do pagamento.» (vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.05.2005, in www.dgsi.pt).

12. Assim sendo, logo se poderá concluir que o tribunal a quo não só não conferiu o direito à ora Recorrente de provar que a obrigação foi cumprida, como determinou, sem mais, que o direito do Autor, ora Recorrido, fosse imediatamente reconhecido, o que contraria não só o entendimento da jurisprudência supra citada, como o próprio princípio do contraditório consagrado no artigo 3°, n° 3 do Código de Processo Civil.

          Nestes termos e nos demais de direito aplicáveis, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida.

2.3. O recorrido contra-alegou, concluindo que a sentença recorrida não violou qualquer das normas legais referidas pela apelante, tendo feito escorreita aplicação da lei, jurisprudência e doutrina, não merecendo, por isso, censura alguma.

2.4. A única questão que importa apreciar no presente recurso consiste em saber se, no caso, se verifica a excepção da prescrição de dois anos, a que alude a al.c), do art.317º, do C.Civil.

Na sentença recorrida entendeu-se que, não tendo a ré alegado, de forma explícita, o pagamento do crédito do autor, a falta de impugnação especificada dos factos invocados por este, implicam confissão tácita, tendo, por isso, sido ilidida a presunção de pagamento. Daí que, naquela sentença, se tenha considerado reconhecido o direito do autor e, face à improcedência da invocada excepção, se tenha julgado a acção totalmente procedente.

Segundo a recorrente, para se considerar confessada a dívida só existem duas formas possíveis, previstas no art.314º, do C.Civil: ou o devedor tem que se recusar a depor ou a prestar juramento, ou o devedor tem que praticar em juízo actos incompatíveis com a presunção do cumprimento. Acrescentando que, no caso em apreço, nada disso se verificou, sendo que, o facto de não ter alegado expressamente o pagamento, não constitui uma confissão tácita, nem permite, por si só, ilidir a presunção do pagamento e afastar a aplicação da prescrição presuntiva. Aliás, refere ainda, a simples invocação da prescrição presuntiva tem já implícita a alegação do cumprimento, pelo que, não há confissão tácita do incumprimento alegado pelo autor.
Vejamos.

Por força do disposto no art.312º, do C.Civil, as prescrições de que trata a subsecção III fundam-se na presunção de cumprimento. Por outro lado, dúvidas não restam que, no caso dos autos, estamos perante créditos pelos serviços prestados no exercício de profissão liberal e pelo reembolso das despesas correspondentes. Logo, tais créditos prescrevem no prazo de dois anos, nos termos do art.317º, al.c), inserido na aludida subsecção III.

Tratando-se, como se trata, duma prescrição presuntiva, funda-se na presunção de cumprimento e destina-se, no fundo, conforme refere Antunes Varela, RLJ, Ano 103º, pág.254, a proteger o devedor contra o risco de satisfazer duas vezes dívidas de que não é usual exigir recibo ou guardá-lo durante muito tempo. Daí que não se admita que o credor contrarie a presunção de pagamento com quaisquer meios de prova, antes se exigindo que os meios de prova do não pagamento provenham do devedor (cfr. Vaz Serra, Prescrição e Caducidade, BMJ, 106º-44). Assim, para afastar tal presunção, admite a lei quer a confissão judicial, quer a extrajudicial (cfr. o art.313º, do C.Civil). Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, vol.I, 2ª ed., pág.261, «Quanto à confissão judicial, nenhuma restrição é estabelecida na lei para prova do não cumprimento, devendo assim considerar-se a matéria abrangida no ónus da impugnação especificada a que se refere o art.490º, nº1 (actual nº2) do Código de Processo Civil e excluída da ressalva contida na parte final deste preceito». É que, na verdade, o princípio consignado no nº2, do citado art.490º, exprime a ideia de que cada uma das partes está sujeita ao ónus da impugnação dos factos articulados pela parte contrária, no sentido de que ou os impugna, ou os admite como exactos, importando o silêncio quanto a esses factos confissão da veracidade deles (cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Anotado, vol.III, 4ª ed., pág.51).

Não se diga, pois, que, para se considerar confessada a dívida só existem as duas formas previstas no citado art.314º, embora haja quem entenda que a não impugnação especificada pode traduzir a prática em juízo de actos incompatíveis com a presunção de cumprimento, ou seja, a confissão tácita de que a dívida não foi paga (cfr. o Acórdão da Relação de Lisboa, de 16/6/92, C.J., Ano XVII, tomo III, 206 e o Acórdão do STJ, de 18/12/03, in www.dgsi.pt).

No caso sub judice, dúvidas não restam que a ré não alegou expressamente o pagamento dos créditos invocados pelo autor, limitando-se a invocar o decurso do prazo de prescrição de dois anos e não impugnando os factos alegados pelo autor, designadamente, os constantes do art.7º da petição inicial, onde se refere que «Não obstante a R. reconhecer dever ao A. a mencionada importância e ter sido por este interpelada a pagá-la, a verdade é que, utilizando evasivas diversas, até hoje ainda não o fez».

Ora, neste tipo de prescrições, ao contrário do que acontece nas prescrições extintivas, o decurso do prazo legal não extingue a obrigação, apenas fazendo presumir o pagamento, desta forma libertando o devedor do ónus da prova que pagou. Isto é, o verdadeiro escopo das prescrições presuntivas é libertar o devedor da prova do cumprimento. Mas não o liberta, a nosso ver, do ónus de alegar que pagou. É certo que há quem aceite que o réu não tenha de impugnar o incumprimento, por entender que a invocação da prescrição presuntiva já traz consigo, implícita, a alegação de que cumpriu (cfr. o Acórdão do STJ, de 17/11/98, C.J., Ano VI, tomo III, 121 e J. Sousa Ribeiro, Rev. Direito e Economia, Ano V-2º-402 e segs., citado naquele Acórdão, bem como, os Acórdãos da Relação de Lisboa, de 29/6/00 e de 23/11/00, in www.dgsi.pt). Só que, no caso dos autos, essa tese não pode lograr acolhimento, tendo em conta, desde logo, a alegação feita pelo autor no art.7º da petição inicial, atrás transcrita, onde se manifesta a resistência ao pedido de cumprimento e o seu protelamento, que são algo mais do que a simples alegação de incumprimento, revelando um comportamento manifestamente incompatível com o cumprimento. Na verdade, como é que pode aceitar-se que a ré cumpriu se confessou tacitamente que resistiu aos pedidos de cumprimento feitos pelo autor.

O que nos parece é que a ré, ora recorrente, confundiu prescrição extintiva com prescrição presuntiva, esquecendo que esta não foi criada para libertar o devedor do cumprimento da sua obrigação, mas, tão só, como já vimos, para o libertar do ónus de provar que pagou. Aliás, já Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol.II, pág.453, entendia que as prescrições presuntivas não eram prescrições verdadeiras, pois que, enquanto nestas, mesmo que o devedor confesse que não pagou, não deixa por isso de funcionar a prescrição, naquelas, se o devedor confessa que deve, mas não paga, é condenado da mesma maneira, não funcionando a prescrição, embora ele a invoque.

Segundo cremos, é maioritária a jurisprudência no sentido de que, quando o réu contesta uma acção de dívida terá, para se valer da prescrição presuntiva, de alegar expressa e claramente que pagou, e que, em todo o caso, sempre tal se presumiria, atenta aquela prescrição (cfr., entre outros, os Acórdãos da Relação de Lisboa, de 21/10/86, BMJ, 364º-934, da Relação do Porto, de 13/12/93, C.J., Ano XVIII, tomo V, 240 e de 2/11/95, bem como, do STJ, de 18/12/03 e de 22/4/04, estes últimos in www.dgsi.pt). E é essa também a nossa posição, que está mais de acordo com o princípio da boa fé processual.

E não se invoque o Acórdão do STJ, de 24/5/05, onde se defendeu que o tribunal deve facultar aos réus, ainda que afaste a aplicação da prescrição presuntiva, o ensejo de provar que cumpriram a obrigação se tiverem alegado expressamente a excepção do pagamento (sublinhado nosso). É que, no nosso caso, a própria ré, ora recorrente, reconhece que não alegou expressamente o pagamento dos créditos invocados pelo autor.

E também não se alegue que, ao determinar-se que o direito do autor fosse imediatamente reconhecido, se contraria o princípio do contraditório, consagrado no art.3º, nº3, do C.P.C., pois que, a ré teve todas as possibilidades de se pronunciar sobre as questões colocadas pelo autor e se o não fez foi porque não quis ou não pôde.

Haverá, deste modo, que concluir que não se verifica, no caso, a excepção da prescrição de dois anos, a que alude a al.c), do art.317º, do C.Civil, já que, se considera ilidida a presunção de cumprimento de que a ré beneficiava pelo decurso daquele prazo, ficando, assim, provada a prestação dos serviços e o seu preço, e não provado o respectivo pagamento. Isto é, devem ser considerados como admitidos por acordo, porque não especificadamente impugnados, os factos alegados pelo autor acerca da não satisfação atempada pela ré devedora dos créditos reclamados e das respectivas interpelações para cumprimento. Razão pela qual a acção não podia deixar de proceder, como procedeu.

Improcedem, assim, as conclusões da alegação da recorrente.

3 – Decisão.

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a sentença apelada.
     
Custas pela apelante.

Lisboa, 6 de Junho de 2006

(Roque Nogueira)
(Pimentel Marcos)
(Abrantes Geraldes)