Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8888/03.7TBOER.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
DENÚNCIA DE CONTRATO
EXTINÇÃO DO CONTRATO
DENÚNCIA ILÍCITA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/21/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: A denúncia ilícita do contrato pelo empreiteiro, sendo ineficaz como tal, pode, no entanto, ser vista, se as circunstâncias do caso o permitirem, como declaração de recusa categórica, clara e definitiva de cumprimento da sua prestação, equivalendo a um incumprimento definitivo da mesma.
(Sumário da responsabilidade do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

“A” intentou a presente acção contra “B” e “C” – Construção Unipessoal, Lda, pedindo a condenação destes a pagarem-lhe 165.618,98€ e juros de mora vincendos, à taxa anual de 4% desde a citação até integral pagamento.
Alegou, em síntese, que celebrou com o réu, empresário em nome individual, um contrato de empreitada com vista à construção de uma moradia. Depois de ter constituído uma sociedade comercial “B” veio a actuar sob o nome da mesma. O contrato previa um preço global, não revisível de 234.435€, acrescido de IVA. No decurso da obra o autor aprovou alterações, que constituem trabalhos a mais no montante de 155.179,98€. O autor entregou aos réus 328.939,76€. Os subempreiteiros alegam não terem sido pagos pelos serviços executados. O autor interpelou o réu para prestar contas, o que só veio a acontecer em finais de Maio de 2003. Em 19/05/2003 o réu denunciou o contrato por considerar que os trabalhos a mais já ultrapassavam em 72% o valor do contrato inicial. A invocação do art. 1215/2 do CC não é válida pois não estão em causa alterações por motivos de ordem técnica ou de violação de direitos de terceiro. Nos dias seguinte o réu continuou a executar o contrato e a exigir o pagamento das quantias relativas ao mesmo, assim como relativas a trabalhos adicionais. Os valores apresentados pelo réu são descabidos. O autor tomou a posse administrativa da obra em 30/05/2003. O réu denunciou pela 2ª vez o contrato em 05/06/2003, juntando ao primeiro argumento um outro, o constante no art. 1216 do CC. Tal argumento não procede porquanto os trabalhos a mais situam-se abaixo do limite de um 1/5 do valor da empreitada. O réu denunciou o contrato pela 3ª vez, em 17/06/2003 com os mesmos argumentos. O autor contratou dois peritos que concluíram estar a moradia executada em 60,81%. Assim, o montante até então despendido na obra prevista pelo orçamento inicial não poderia ultrapassar os 142.556,92€, reclamando o empreiteiro 195.753,23€. No que concerne os trabalhos a mais efectivamente realizados apenas seria possível cobrar 20.763,86€ – e não os 59.997,19€ reclamados. Os réus têm, assim, indevidamente na sua posse 165.618,98€, valor pelo qual deverá o autor ser indemnizado, quer a título de incumprimento, quer de enriquecimento sem causa
Os réus contestaram e deduziram pedido reconvencional. Alegaram, em síntese, que em Dezembro de 2002 o réu comunicou ao autor a criação da ré e a sua vontade de que no contrato de empreitada esta assumisse a sua posição, o que o autor aceitou. O montante dos trabalhos a mais importa em 155.179,98€ a que acresce IVA. O montante entregue pelo autor foi de 309.939,76€, IVA incluído, valor a que devem ser deduzidos 650€ referente a projecto da rede de aquecimento e plano de segurança da obra, não incluído no contrato. O restante valor corresponde a trabalhos adjudicados concluídos e/ou em fase de acabamento (247.431,80€) e pagamentos efectuados por conta dos trabalhos a mais, no total de 184.664,17€, IVA incluído (61.857,96€). Face às entregas efectuadas o autor encontrava-se em dívida em 30.474,12€ relativos a trabalhos a mais. As alterações atingem cerca de 70%. A duração prevista da obra era de 10 meses. O projecto facultado pelo autor apresenta diversas deficiências, omissões e erros que alteram totalmente as condições, não havendo qualquer direito do autor a ser indemnizado. Em reconvenção alegaram que o autor lhes deve as seguintes quantias: - 31.000€ pela paragem da obra durante 4 meses, devido à falta de elementos técnicos relativos ao projecto de execução (não incluindo IVA); - 46.753,79€, a título de lucros cessantes (não incluindo IVA); - 92.332,09€, IVA incluído, pela adjudicação de trabalhos a mais; - 55.795,53€, IVA incluído, relativo a trabalhos contratuais não concluídos. São ainda devidos ao réu 1.476,94€, acrescidos de IVA, a título de honorários pela responsabilidade e direcção técnica da obra. Conclui pela improcedência da acção e pela procedência do pedido reconvencional, devendo o autor ser condenado a pagar as referidas quantias.
O autor apresentou réplica. Alegou, em síntese, que o réu nunca lhe comunicou a vontade de a ré assumir a sua posição no contrato. O réu incluiu desde o início a responsabilidade técnica da obra como parte integrante do contrato. As verbas reclamadas pelos réus não têm qualquer suporte. Conclui pela improcedência das excepções e da reconvenção e sua absolvição do respectivo pedido.
(seguiu-se até aqui, quase na íntegra, o relatório constante da sentença recorrida)
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O despacho saneador julgou que faltava à ré personalidade judiciária e absolveu-a da instância.
Depois do julgamento, a acção foi julgada parcialmente procedente e, em consequência, condenou-se o réu a pagar ao autor 106.817,50€, IVA incluído, acrescidos de juros de mora, à taxa anual de 4% desde a citação; e o pedido reconvencional foi julgado improcedente, dele se absolvendo o autor.
O réu interpôs recurso desta sentença - para que seja revogada e substituída por outra que condene o autor no pagamento dos valores reconvencionados pelo réu (sem fazer referência ao 1º valor, de 31.000€ pela paragem da obra) -, recurso onde, depois de também pôr em causa alguns factos, termina as suas alegações do seguinte modo:
Nas conclusões 1 a 6 reproduz os factos dados como assentes de A) a F), e depois acrescenta:
“7. Ora, considerando-se o valor da totalidade da obra, o valor final da moradia em questão seria de 278.977,65€ (234.435€ + 44.542,65€) com os acréscimos dos trabalhos a mais no valor de 155.179,98€, o que totalizaria um montante final de 434.157,63€.
8. Assim, e tendo em consideração o constante dos presentes autos, dá-se como provado que o autor entregou ao réu 309.939,76€.
9. Ficariam assim por pagar 124.217,87€.”
Na conclusão 10 reproduz o facto assente em I) e depois acrescenta:
“11. No doc. junto à pi sob o n° 51, o próprio autor dá como assente que a obra está efectuada em 70%.
12. Quem demonstrou não querer cumprir a sua obrigação de pagamento integral da obra efectuada foi o autor, uma vez que tomou a posse administrativa da obra, impedindo o réu de a concluir.
13. Nestes termos, resulta claro que o incumprimento definitivo deu-se por causa imputável ao autor, equiparada pela lei à impossibilidade da prestação, nos termos do 801 do CC.”
O autor não contra-alegou.
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Questões que cumpre solucionar: se algum dos factos dados como provados deve ser alterado por força do recurso contra a decisão da matéria de facto; e depois, tendo em conta o âmbito objectivo do recurso delimitado pelas conclusões do mesmo (art. 684/3 do CPC), importará saber: se dos factos provados resulta que o autor já devia ter pago 434.157,63€ e ainda só pagou 309.939,76€, estando em dívida pela diferença entre estes valores; que valor tem o facto de o autor, no doc. junto à pi sob o n° 51, ter referido que a obra está efectuada em 70%; se o facto de o autor ter tomado a posse administrativa da obra demonstra a sua vontade de não querer cumprir a sua obrigação de pagamento integral da obra; se, disso, resulta que o incumprimento definitivo se deu por causa imputável ao autor.
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Foram considerados provados os seguintes factos (os sob alíneas vêm da especificação e os sob números vêm da resposta aos quesitos):
A) O autor adquiriu um terreno designado Lote ..., sito na Rua ..., ..., em ..., para construção de uma moradia.
B) Após aprovação do projecto de construção da moradia, o autor celebrou com o réu um contrato de empreitada nos termos que constam da proposta PO 19-B/01, de 2002/04/02 e que constitui o documento nº 1 junto com a p.i a fls. 13-26 [a folha 27 já pertence ao doc. 2; a proposta só começa a fls. 23 – rectificação e esclarecimento apostos neste acórdão].
C) O contrato celebrado entre autor e réu prevê um preço global não revisível para construção da habitação completamente acabada de 234.435€, acrescida de IVA.
D) Do valor global indicado em C) estão excluídos todos os trabalhos solicitados pelo dono da obra que não estejam contemplados no orçamento, os quais estão sujeitos a apresentação de orçamento pelo réu e prévia aprovação por escrito do autor.
E) Ao contrato identificado em B) foram feitas as alterações nos termos dos documentos n° 2 a 12 juntos com a pi no total de 155.179,98€.
F) O autor entregou ao réu quantias que totalizam 309.939,76€.
G) O réu enviou ao autor, que a recebeu, a comunicação [datada] de 19/05/2003 [por fax de 20/05/2003 – os parênteses foram colocados neste acórdão, para ter em conta elementos do documento que importam, ao abrigo do disposto nos arts. 659/3 e 713/2, ambos do CPC – também se irá transcrever, com esse fim, parcialmente o teor do documento dado por reproduzido] e que constitui o documento n° 50 da p.i (junto a fls. 103-106 e cujo teor foi dado por integralmente reproduzido), continuando a execução da obra; nessa comunicação entre o mais consta:
“Em face do exposto, e, da sua falta de disponibilidade p/se encontrar uma solução que fosse de encontro aos interesses de ambas as partes, só nos resta, lamentavelmente a solução última, isto é, formalmente denunciar o contrato de empreitada PO 19-B/01, datado de 2002/04/02 e, dos diversos adicionais complementares e, relativos à execução de vários trabalhos a mais solicitados por V. Exª, e, que fazem parte integrante do contrato inicial da empreitada.
Denúncia que é solicitada e formalizada, com base no direito que nos assiste, e, em conformidade com o nº 2 do art. 1215 do CCP, tendo como suporte justificativo, o volume de trabalhos a mais, cujo valor na presente data é de 168.804,86€, e, que representa 72% do valor do contrato de adjudicação inicial. Trabalhos a mais, que têm uma ligação directa e interdependente com os trabalhos inicialmente convencionados. Oportunamente daremos forma oficial à nossa pretensão, e, manifestada na presente comunicação.”
H) O réu enviou ao autor, que a recebeu, a comunicação de 22/05/2003 e que constitui o documento n° 52 da p.i (junto a fls. 109-110 e cujo teor foi dado por integralmente reproduzido) [tratam-se de duas folhas, uma com um quadro com 6 colunas relativas a capítulos e elementos de construção, estrutura de custos grandes grupos, trabalhos contratuais custos, % dos trabalhos executados, valor facturado e observações e 10 linhas relativas ao movimento de terras, fundações, super estrutura, alvenarias, cobertura, vãos, instalações técnicas, revestimentos, equipamentos e arranjos exteriores, estando todas os espaços preenchidos excepto os referentes ao valor facturado dos equipamentos e arranjos exteriores e às observações – o valor facturado era de 186.375,95€; a outra respeitante ao valor total dos trabalhos adicionais, também com 6 colunas relativas a descrição de trabalhos, data da proposta, valor da proposta de orçamento, trabalhos executados, valor facturado e observações, e 22 linhas relativas à descrição de trabalhos, não estando preenchidos os espaços referentes a trabalhos executados e valor facturado de tectos falsos e caixilharias e observações – o valor facturado era 73.307,07€; - parênteses acrescentado por este acórdão].
I) Em 30/05/2003, pelas 18h, na presença de “D”, tractorista e “E”, assistente técnico, o autor tomou pose da obra mediante o preenchimento e assinatura do formulário pré-impresso com a denominação "posse administrativa da obra referente à moradia sita no ..., lote ..." na qual se encontra pré-impresso "... tomada de posse administrativa da obra em referência, nomeadamente, à tiragem de fotografias a toda a obra, por forma a ser comprovado o estado em que vai ser assumida; a verificarem o relatório que vai seguir como anexo 1, que se junta; a rubricarem a primeira página de um jornal diário, por forma a comprovar o dia", que constitui o doc. n°. 55 (cujo teor foi dado por reproduzido).
J) O réu enviou ao autor, que a recebeu, a comunicação de 05/06/2003 e que constitui o documento n° 57 da p.i junto a fls. 169-170 com a epígrafe "lote ..., construção de Moradia Unifamiliar, sita na Rua ..., ..., Contrato de Empreitada Ref. PO 19-B/01, datada de 2002/04/02 e, diversos adicionais de trabalhos a mais. Denúncia do Contrato de Empreitada e dos respectivos Adicionais" e cujo teor damos por integralmente reproduzido, no qual, entre o mais o réu escreveu:
“[…] considerando o volume de trabalhos a mais, até à presente data, no valor de €155.179,98, s/IVA, somos, em conformidade com o estabelecido no nº 2 do artigo 1215º e 1216º do Código Civil, a denunciar, com efeitos imediatos, o contrato de empreitada e respectivos adicionais […]
Com base no direito que nos assiste e em conformidade com a legislação em vigor, reclamamos o pagamento da indemnização de […].
A fim de evitar a via judicial, para resolução do litígio emergente, estamos disponíveis para estabelecimento de um acordo, quanto ao valor da indemnização reclamada.
A partir desta data, todos os contactos com Vexa serão efectuados através da nossa advogada […]”.
K) O réu enviou ao [mandatário do] autor, que a recebeu, a comunicação de 17/06/2003 e que constitui o documento n° 58 da p.i junto a fls. 171-173 (cujo teor foi dado por integralmente reproduzido) [em que se propõe responder à comunicação de 09/06/2003, falando sobre a denúncia do contrato, da tentativa de acordo, de uma paragem da obra que imputa ao autor, de gastos tidos, da indemnização que pede, dos contactos do autor com os subempreiteiros, da expectativa de receber um documento do dono da obra, do facto de as obras estarem em execução sem acompanhamento por Director Técnico e Responsável pela execução, do que vai dar conhecimento à Câmara Municipal e da disponibilidade para um acordo extra-judicial – síntese feita por este acórdão].
L) A pedido do autor foi elaborado o relatório que constitui o documento nº 56 junto com a p. i denominado "relatório final - auditoria à situação de desenvolvimento dos trabalhos na data da posse administrativa (30/05/2003 sita no ..., Lote ..., em ..." e cujo teor se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais.
2. Desde o início do ano de 2003 o autor solicitou ao réu a prestação de contas relativas ao contrato.
3. Tendo-o feito por escrito pela primeira vez em 19/05/2003.
4 e 5. Um dos motivos para a tomada de posse da obra pelo autor deveu-se ao facto de o autor não concordar com as contas apresentadas pelo réu no documento identificado em G).
6. Para além da quantia identificada em F), o autor entregou ao réu outras quantias que somadas àquela atingiram 328.939,76€.
7. A quantia referida em E) incluía o valor relativo a IVA.
8. A quantia referida em F) incluía o valor relativo a IVA.
9. No relatório identificado em L) os peritos basearam-se na tabela de classificação do Instituto Nacional de Habitação para obras de custos controlados e edifícios da classe 1.4, edifícios com estrutura de betão armado de dois e três pisos, a afectação percentual dos custos para cada actividade da empreitada
10. Em 30/05/2003 a obra encontrava-se executada em 60,81%.
12. O réu executou 80% da garrafeira, cantarias, alçado norte, cantarias alçado nascente e cantarias alçado sul.
13. Não executou os tectos falsos, a abertura e tapamento de roços.
14. A rede de emergência encontra-se incluída na proposta de contrato inicial.
15. Os trabalhos identificados nos itens 38, 41, 44 48, 49, 57, 59 do relatório identificado em L) foram executados em 50%, 0%, 25%, 80%, 20%, 30%, e 0%, respectivamente.
16. Os trabalhos a que se refere o item 51 encontram-se incluídos no item 44 desse relatório.
17. Com referência às tomadas para o sistema de aspiração central (item 60) foram apenas instaladas duas tomadas adicionais.
18. Posteriormente à assinatura do contrato identificado em B), o réu assumiu a responsabilidade técnica pela execução da obra perante a Câmara Municipal de ....
22. As alterações referidas em E) atingem o valor de cerca de 55% do valor do contrato identificado em B).
29, 30, 89 e 90. Mediante levantamento topográfico foi detectada uma diferença na área do terreno face aos elementos fornecidos ao réu (o lote tem área de 827 m2 e a área indicada ao réu era de 792 m2), o que se traduziu numa alteração do projecto quanto a uma rampa de acesso e muro do lado direito.
34 e 37. Pelos motivos indicados no § anterior foi necessário remover maior quantidade de terras do que o previsto no projecto, sobretudo de um lado para o outro do terreno, e em quantidade não significativa.
39. A estrutura enterrada, abaixo da cota da soleira tinha um reduzido pé-direito em parte da área da cave.
68. O réu executou algumas alterações ao nível dos pontos de iluminação e tomadas.
70. No projecto faltava pormenorização do nicho para colocação do equipamento de protecção e corte a fornecer pela EDP, SA, quadro eléctrico geral, central telefónica e de segurança.
Factos aditados pela sentença ao abrigo do disposto no art. 659/3 do CPC e provados pelos documentos neles referidos:
M) O autor, através do seu mandatário, enviou ao réu, que a recebeu, a comunicação de 21/05/2003 e que constitui o documento n° 51 da p.i junto a fls. 107-108 com a epígrafe “Moradia ..., lote ...” e cujo teor damos por integralmente reproduzido (documento de fls. 107, não impugnado), no qual, entre o mais, está escrito:
“[…] fiquei um pouco perplexo com o seu conteúdo, uma vez que não entendo o porquê da sua razão de ser, já que existiu uma renúncia unilateral ao contrato, de acordo com o fax datado de 20 do corrente e enviado ao meu cliente.
[…] Aproveito para referir que não têm que ser enviados quaisquer comunicações relativas a trabalhos que estejam por executar, uma vez que formalmente a “C” renunciou ao contrato”.
N) Em 11/07/2003 o autor solicitou à Câmara Municipal de ... a substituição do técnico responsável pela obra (substituição do réu por “F”) (documento de fls. 381, não impugnado).
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Do recurso contra a decisão da matéria de facto
I
Sem nunca referenciar os quesitos ou os pontos de facto a que se refere, o réu, no meio das suas alegações, diz o seguinte:
“Considerou ainda o tribunal que, para além da quantia acima identificada o autor entregou outras quantias que somadas àquela atingiram 328,939,76€.
Porém, não resulta dos autos que tal tenha acontecido, pois, nem dos documentos juntos aos autos nem dos depoimentos das testemunhas em sede de audiência de julgamento tal não se pode dar como provado.
Ora, não existem nos autos, nem resultou dos depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento que o autor tivesse entregue ao réu quaisquer outras quantias para além dos mencionados 309.939,76€.”
Esta matéria tem a ver com o quesito 6, dado como provado e que tinha o seguinte teor: Para além da quantia identificada em F), o autor entregou ao réu outras quantias que somadas àquela atingiram 328.939,76€.
No despacho que decidiu a matéria de facto, a Sr.ª juíza teve o cuidado de dizer:
“para prova dos factos constantes nos quesitos infra indicados valorámos essencialmente […] os documentos de fls. 65 a 100 (quesito 6), uma vez que os cheques e transferências a que respeitam os documentos não foram impugnados e o valor da sua soma é até superior à quantia constante do quesito em causa”.
Em todo o resto do despacho são analisados os depoimentos e outros documentos, com referência aos quesitos a que serviram de base à resposta, e nenhuma outra referência é feita ao quesito 6.
É assim claro que a convicção quanto ao quesito 6 teve como suporte os documentos de fls. 65 a 100 e nada mais. Por outro lado, a soma dos documentos referidos nesta fundamentação dá, realmente, mais do que os 328.939,76€ (mesmo sem ter em conta os 650€ do doc. 18 que o réu entende que deviam ser descontados). E os documentos em causa, como se diz na fundamentação do despacho recorrido, não foram impugnados.
Assim, ao contrário do que diz o réu, dos documentos existentes nos autos resulta a prova do facto em causa, que não é contrariada por qualquer outro meio de prova.
Pelo que não há razões para alterar a resposta dada a tal quesito.
II
Continua o réu no meio do corpo das suas alegações:
“Tal como consta dos autos, bem como da matéria assente, o autor solicitou pela 1ª vez ao réu a prestação de contas em 19/05/2003, não tendo logrado [provar? – acrescento deste acórdão] que o tenha feito antes dessa data.
Esta matéria tem a ver com os quesitos 2 e 3, tendo ficado provado que:
2. Desde o início do ano de 2003 o autor solicitou ao réu a prestação de contas relativas ao contrato.
3. Tendo-o feito por escrito pela primeira vez em 19/05/2003.
Assim, ao contrário do que diz o réu, está provado algo diverso do que ele diz, sendo a afirmação que o réu faz genérica e não fundamentada e por isso inaproveitável como impugnação da resposta dada aos quesitos 2 e 3, quesitos a que o réu nem sequer referencia.
III
Continua o réu no meio das suas alegações que:
“ … a obra […] em bom rigor, nessa data [30/05/2003], já se encontrava em estado bastante avançado.
Pode-se mesmo concluir que já faltava apenas parte da fase dos acabamentos, como alias confirmou a testemunha “G” que, confrontado com as fotografias que constam dos autos (doc. 56), mencionou claramente que quando entrou, após a posse administrativa da obra, já estavam a fazer a piscina e que “a obra estava numa fase mais adiantada do que está nas fotografias” (minuto 7:50 da gravação da audiência de julgamento).
Mencionou ainda esta testemunha que efectuou apenas “o pavimento todo em madeira”, “tectos falsos” e que “entrou já na fase final dos acabamentos” (minuto 8:50 da gravação da audiência).
E mais à frente:
Mencionou ainda a referida testemunha que “fez algumas especialidades e pequenos trabalhos de apoio” (minuto 20:00 da gravação). Ora, daqui é fácil extrair-se que, se esta testemunha, que entrou na obra logo após a saída do réu, apenas efectuou poucos trabalhos na fase de acabamentos, então, resulta claro que o réu executou a obra quase na totalidade, e apenas não a concluiu porque foi forçado a abandonar a obra pelo autor.
Esta matéria tem a ver com o quesito 10 no qual se deu como provado que em 30/05/2003 a obra encontrava-se executada em 60,81%.
O despacho da decisão da matéria de facto contém a seguinte fundamentação, na parte que interessa:
“As respostas positivas basearam-se na apreciação conjunta e crítica da prova produzida, advinda designadamente depoimentos das testemunhas, que o prestaram de forma isenta e credível, essencialmente valorados relativamente aos factos de que possuem conhecimento directo:
[…]
- “G” (quesitos 12, 13, 15), por ter prestado serviços para o autor na obra dos autos, até à sua conclusão, o que iniciou após saída do réu. Referiu que quando começou a trabalhar na obra, esta estava um pouco mais adiantada do que consta nas fotografias de fls. 124 e ss, com as quais foi confrontado. Prestou os seus serviços numa fase de acabamentos (executou pavimento em madeira; pladur, etc.). Foi lá fechar janelas com tapume e nesta altura já tinha cantarias. A cave encontrava-se no estado registado nas fotografias e as cantarias também. Pensa que a garrafeira se encontrava executada a menos de 80%. O depoente executou os tectos falsos, e a abertura e tapamento de roços também foi executada após saída do réu da obra. Os muros divisórios não foram construídos pelo réu.
- “F” (quesitos 4, 5, 9, 10, 12 a 18), por ser engenheiro e ter prestado serviços na obra dos autos por conta do autor. Esclareceu que foi chamado a intervir aquando da posse administrativa; recebeu dossier do autor com elementos da posse; o autor solicitou-lhe um levantamento da obra, tanto a nível do contrato inicial como dos trabalhos a mais. Fez levantamento no local e elaborou o relatório de fls. 154 e ss. Para o efeito teve em consideração diversos elementos fornecidos pelo autor, nomeadamente os documentos de fls. 293, 109, auto de posse administrativa e respectivas fotografias de fls. 117 e ss., documentos de fls. 23, 27, 30, proposta inicial, adicionais, reclamações, mapas. Referiu que na sua avaliação tentou ser isento e por isso não deu razão a todas as reclamações do autor. A tomada de posse administrativa tinha por motivo a não-aceitação das contas e dificuldades/atrasos no pagamento por parte do réu aos subempreiteiros. Utilizou na elaboração do relatório a tabela de classificação do Instituto Nacional e Habitação para obras de custos controlados e edifícios da classe 1.4, edifícios com estrutura de betão armado de dois e três pisos e que esta não se aplica apenas a habitação social.
Referiu que há 40 anos tem experiência nesta actividade. Concluiu que o réu executou 60% da obra. Explicou alguns pormenores do relatório: atribuição da percentagem de 2,5 pela movimentação de terras teve em consideração o relevo do terreno, quando a tabela refere 0,6; estava executado 80%; os arranjos exteriores não estavam executados; estavam executados 80% dos trabalhos atinentes à garrafeira, cantarias alçados norte e nascente; normalmente a rede de emergência está incluída nas redes eléctricas e de segurança. Referiu que assumiu a direcção técnica da obra após a posse administrativa (antes tinha sido o réu).
- “H” (quesitos 2, 4, 15, 68 e 70), por ser electricista e ter prestado serviços na obra directamente quer para o autor quer para o réu. Esclareceu que depois do réu sair da obra o depoente continuou a trabalhar lá. Referiu existirem problemas com pagamentos do réu aos subempreiteiros, o que aconteceu também consigo, estando o réu ainda em dívida para consigo. Esteve presente numa reunião de subempreiteiros com o autor e réu por causa destes problemas, os quais já aconteciam desde o início de 2003. Os subempreiteiros começaram a queixar-se ao autor. Este pediu contas ao réu. Na referida reunião o réu disse que ia resolver tudo, mas não o fez. O réu saiu da obra. Confrontado com as fotografias de fls. 124 e ss. confirmou que na reunião a que se seguiu a posse administrativa a obra encontrava-se no estado que daquelas consta. Esclareceu também que o réu executou alterações quanto a apliques e tomadas e que não existia o referido no quesito 70.
[…]
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Baseámo-nos, de forma conjugada com os aludidos depoimentos, nos documentos de fls. 154 e ss., 109 e 110 (quesitos 9, 12 a 17); fls. 117 a 153 (quesitos 4, 5, 10, 12), 380 a 382 (quesito 18).
*
A testemunha “F” esclareceu de forma cabal os elementos que usou na elaboração do relatório junto a fls. 154. Pelas razões acima apontadas o seu depoimento mereceu-nos credibilidade e o relatório sustentado em critérios que foram devidamente explicitados e credíveis. Por seu turno, o réu não apresentou qualquer meio de prova susceptível de infirmar quer o depoimento quer o relatório. Com efeito, os documentos por si elaborados, desacompanhados de qualquer outro elemento probatório, não têm tal virtualidade (mormente o junto a fls. 293).”
Tendo em conta esta fundamentação, vê-se que o réu ainda diz o seguinte sobre a questão:
“[…] foi esta testemunha [“F” (Engenheiro Civil)], que elaborou o relatório encomendado pelo autor, relatório esse, que, como resulta das próprias palavras da referida testemunha foi o que lhe pareceu na sua opinião mais correcto.
Ora, nesta situação, não pode dar-se como documento probatório o referido relatório que resulta da mera opinião de um técnico que foi pago para efectuar um relatório utilizado posteriormente para intentar uma acção contra o réu.
Logo, este documento, não pode ser atendível como prova.
Assim, vejamos quanto ao relatório mencionado:
Não poderia ter o tribunal atribuído qualquer valor probatório a tal relatório uma vez que o mesmo não foi elaborado por entidade idónea e imparcial nos autos.
Tal relatório foi elaborado pelo Director Técnico da obra (o qual foi designado para tal função em 01/06/2003), tendo assim elaborado o relatório já no decorrer das suas funções na obra.
Relativamente ao próprio relatório disse a testemunha Eng. “F” no seu depoimento que houve pontos que constam do mesmo que estão no mesmo dados como não aceites pelo dono da obra mas que. na realidade foram aceites e executados.
Um desses pontos, exemplificativamente, retira-se da gravação da audiência (minuto 34) na parte referente ao depoimento da testemunha acima identificada, em que a mesma relativamente ao ponto 43 do relatório refere: “consideramos 100% concluído. Está aprovado e foi executado”.
Não obstante a entidade que elaborou o relatório saber que tal parte da obra se encontrava 100% concluído e havia sido executado pelo empreiteiro, o réu, colocou no relatório que tal não havia sido aceite pelo dono da obra.
Ora, tal afirmação da testemunha, revela que o relatório não demonstra a mínima credibilidade nem relata a realidade dos factos.
Nestes termos, não deveria portanto ter sido valorado como prova […]”
Assim, sabe-se agora que para contrariar o que consta da resposta ao quesito 10, o réu avança três tipos de argumentos:
i) Aquilo que a testemunha “G” tinha dito permitia concluir que a obra estava concluída quase na totalidade.
ii) o relatório de fls. 154 e segs contém opiniões de alguém que foi pago pelo autor para o efeito e não por uma entidade idónea e imparcial e foi elaborado já no decorrer das suas funções na obra (contratado pelo autor em substituição do réu).
iii) o relatório conteria contradições pois que a testemunha Eng. “F” disse que houve pontos que constam do mesmo que estão dados como não aceites pelo dono da obra mas que na realidade foram aceites e executados. Exemplo: o ponto 43 do relatório refere: “considera-mos 100% concluído. Está aprovado e foi executado”. E apesar disso colocou no relatório que tal não havia sido aceite pelo dono da obra.
Posto isto:
Quanto a i): não é claramente assim. Desde logo porque se é certo que esta testemunha começa por dizer algo que pode ser interpretado como que a obra estava um pouco mais adiantada do que consta nas fotografias de fls. 124 e ss, depois, mais à frente, diz, por várias formas e sobre quase tudo (10:39 a 13:30) que quando começa a ir à obra ela estava neste estado (ou seja, no estado que as fotografias documentam)… Por outro lado, ao depoimento da testemunha “G”, naquela parte, ainda se contraporia o depoimento da testemunha “H”, que prestou serviços na obra directamente quer para o autor quer para o réu, tendo lá continuado a trabalhar depois do réu sair da obra e que, confrontado com as fotografias de fls. 124 e ss, confirmou que na reunião a que se seguiu a posse administrativa a obra encontrava-se no estado que daquelas consta (12:10 a 14:01). Por fim, porque sobre a matéria é muito mais preciso e com muita mais razão de ciência o depoimento da testemunha (Eng. “F”) que foi especialmente indicada a este quesito por ter estado a averiguar a respectiva matéria.
Quanto a ii): o relatório não contém opiniões, mas antes observações e conclusões tiradas por alguém com base naquilo que viu no local e averiguou tendo em conta os documentos que identificou. Sendo esse alguém uma pessoa com mais de 40 anos de experiência e que depôs de forma a demonstrar saber aquilo que dizia. E o relatório não foi tomado como perícia, ao contrário do que o réu, com a sua argumentação, sugere, mas como um documento elaborado por uma testemunha, que depois o justificou em audiência.
Quanto a iii): o réu fala em contradições mas o único exemplo que dá delas resulta de um erro evidente do réu: o que consta do ponto 43 é o seguinte: Telheiro: Apresentada em 30/10/2002 proposta de preço para a execução do mesmo, não sendo aceite por já estar incluída na alteração da área de cobertura (ver justificação do ponto 39). E no ponto 39 diz-se: Alteração da área de coberturas: Proposta apresentada ao dono da obra em 07/08/2002 e aceite por este. A referida alteração corresponde à mudança das pérgolas existente no projecto inicial contratado pelas coberturas que se encontram edificadas. Assim sendo, considerou-se que os trabalhos se encontram executados embora o empreiteiro não reclame qualquer tipo de percentagem. Consideramos 100% concluído. E ainda constava do ponto 14: Telheiro. Não aceite valor reclamado. Inserido comentário no ponto 43. Assim, o que se passou foi: o trabalho em causa foi executado, mas a proposta do mesmo não foi aceite autonomamente, por estar já considerado incluído na proposta da alteração da área de coberta. Não há aqui qualquer contradição.
Em suma: não procede nenhum dos argumentos utilizados pelo réu contra a resposta ao quesito 10.
IV
Diz o réu:
“Também em relação à aspiração central, mencionou esta testemunha [“G”] que “estavam os roços e os tubos” (minuto 16:55 da gravação da audiência).”
Mas o réu não diz que relevo tem esta afirmação, isto é, que facto se destina a comprovar, contrário ao que foi dado como provado… sendo certo que o quesito 17 não diz nada quanto a roços (existem outros roços, referidos no quesito 13 e que são aqueles a que o despacho recorrido se refere quando faz o relato, correcto, do depoimento desta testemunha).
V
Diz o réu:
“[A testemunha “G” m]encionou ainda, relativamente às tomadas de aspiração central que “é natural as tomadas não estarem na obra, porque isso só se coloca no fim da obra” (minuto 21:10 da gravação).
Ora, relativamente à aspiração central, veio o autor alegar que o réu só colocou duas tomadas, mas resulta claro da prova testemunhal, que, na fase em que o autor tomou posse administrativa da obra não poderiam ainda lá estar as referidas tomadas.”
Esta matéria tem a ver com o quesito 17, no qual se deu como provado que com referência às tomadas para o sistema de aspiração central (item 60) foram apenas instaladas duas tomadas adicionais.
Aquilo que a testemunha diz não impede que as tomadas lá estejam – até porque o réu se esqueceu de transcrever o essencial do que ela disse sobre o assunto: Tomadas? Que eu me lembre não, mas é natural as tomadas não estarem na obra, porque isso só se coloca no fim da obra … não tenho lembrança (20:46 a 21:13) - e como constava do documento de fls. 110, do réu, a instalação das duas tomadas na instalação da aspiração central, a Sr.ª juíza considerou provado este facto, tanto mais que também no item 60 do relatório de fls. 162 consta a referência a duas tomadas.
VI
Diz o réu:
“Passando à questão da garrafeira, pode extrair-se do depoimento da testemunha “F” (Eng. civil) que, esta, quando o mesmo entrou na obra, estava executada a 80% e pode mesmo extrair-se das suas próprias palavras: “é uma constatação do que eu vi lá” (minuto 40:59 da gravação).”
Esta matéria tem a ver com o quesito 12, no qual se deu como provado que o réu executou 80% da garrafeira […].
Ou seja, o depoimento está de acordo com o facto dado como provado.
Não se vê a que propósito, pois, é que o réu invoca esta parte do depoimento…
VII
Continua a réu:
“Também relativamente ao ponto 50 do relatório, a referida testemunha [eng. “F”] afirmou que não considerou como trabalho adicional a rede de emergência, pois “normalmente” faz parte do preço global da obra.
Ora, a testemunha (minuto 36) apenas se limita a emitir simples opiniões pessoais, não se referindo a factos concretos de que tivesse conhecimento no caso em referência.
Mais, (minuto 37:44) disse mesmo a testemunha “no nosso ponto de vista”. Ora, tal relatório foi elaborado com base em pontos de vista pessoais, opiniões pessoais, e não com base nos documentos e estado em que a obra se encontrava.”
Esta matéria parece referir-se ao quesito 14 mas, como resulta do que antecede, não tem qualquer valor. Já acima foi dito o que havia a dizer sobre o relatório elaborado pela testemunha eng. “F” e sobre a questão dos pontos de vista.
VIII
Continua o réu:
“Disse ainda esta testemunha [Eng. “F”] que (minuto 42:27) o projecto inicial deu origem a um projecto de alterações e que o que estava na obra correspondia aproximadamente ao que estava no projecto de alterações.
Ora, parece-nos que o tribunal não valorou devidamente o depoimento desta testemunha, uma vez que a mesma confirmou que a obra se encontrava conforme o projecto de alterações junto aos autos e que, o relatório não foi elaborado correctamente, uma vez que até deu como não aceites pelo dono da obra partes da obra que foram aprovadas e executadas na sua totalidade.”
O réu, como sempre, não diz a que ponto de facto se refere, e desta vez não é possível descobrir qual a pretensão do réu a esse nível. Nota-se apenas a contradição de, afinal, o réu pretender que o depoimento da testemunha “F” tivesse sido ainda mais valorado.
Quanto à pretensão genérica de invocar este depoimento para desvalorizar o relatório elaborado pela própria testemunha é completamente despropositada.
IX
Diz o réu:
“Além do mais, o referido relatório dá como estando 60,81% da obra efectuada pelo réu, no entanto, no doc. junto à pi sob o n° 51, o próprio autor dá como assente que a obra está efectuada em 70%.
Assim, mais uma vez se comprova que o relatório em questão não está elaborado de forma coerente e correcta e por esse motivo não pode constituir prova atendível nos presentes autos.”
Agora o réu pretende pôr em contradição aquilo que a testemunha “F” disse e aquilo que o autor, numa carta enviada ao réu, antes do processo, disse… Sem qualquer razão. O autor já explicou a “discrepância” na réplica (arts. 20 a 22). Como não sabia avaliar com precisão o que tinha sido feito, pediu a alguém que sabia mais que o fizesse. E o resultado foi que, afinal, não estava feito 70% das obras, mas apenas 60,81%...
X
Continua o réu:
“Um dos elementos que consta dos autos, e que não foi correctamente valorado pelo tribunal, foi o embargo da obra efectuado pela Câmara Municipal de ..., pois, o referido embargo foi efectuado precisamente devido à elevada percentagem de trabalhos a mais que depois deram origem ao projecto de alterações.
Ora, parece claro que, se na obra não estivessem realizadas alterações que consubstanciassem um elevado nível de alteração na obra original, a Câmara Municipal não teria embargado a obra e exigido um projecto de alterações.
Aliás, pode facilmente ver-se no projecto de alterações que a obra foi modificada quase na sua totalidade relativamente ao projecto original.
Assim sendo, e face à prova constante dos autos, pode verificar-se que as alterações foram efectuadas na moradia pelo réu, e que o preço por tais alterações dever-lhe-ia ter sido pago pelo autor, o que não foi na sua totalidade.”
O réu, como sempre, não diz a que ponto de facto se refere esta possível impugnação, e também aqui não é possível descobrir qual a pretensão do réu a esse nível. Entretanto, note-se que o despacho recorrido não põe em causa que o réu tenha feito parte das alterações acordadas para a obra. Tanto que na resposta ao quesito 22 se diz: as alterações referidas em E) atingem o valor de cerca de 55% do valor do contrato identificado em B).
XI
Continua o réu:
“O referido relatório foi efectuado tendo como base a tabela do INH, tabela esta que é aplicada a obras de custos controlados, o que manifestamente não é o caso desta moradia.
Tal resulta do depoimento desta testemunha [Eng. “F”] (minuto 43:45 da gravação).”
Como consta do relatório em causa, os valores apurados e justificados tiveram como orientação base a tabela. Orientação não era dizer seguimento cego e único pela tabela. E basta ler o relatório na íntegra para se ver que a tabela serviu mesmo só de orientação, tendo sido adaptados valores e percentagens à situação concreta. Como nele se diz, entre o mais, foi adaptado à sua especificidade própria atendendo à situação / localização real da presente obra. E quando a mandatária do réu na pergunta formulada à testemunha mistura custo controlado e habitação social a testemunha logo esclarece que a tabela não é só para habitação social, podendo ser utilizada para a construção em geral (44:20 a 45:02), com adaptações, que explicou ter feito.
XIV
Continua o réu:
“Relativamente à movimentação de terras, mencionou a testemunha “D” (manobrador/condutor) que “removi mais terras do que estava no projecto” (minuto 4:15 da gravação).
Ora, é notório que houve desconformidades entre o que constava no projecto e o que se encontrava na obra, daí ter havido um acréscimo de movimentação de terras, o que obviamente altera o projecto inicial e aumenta os custos da obra.”
Isto relaciona-se possivelmente com os quesitos 34 e 37.
A conclusão tirada pelo réu não é imposta pelo depoimento da testemunha. E o réu nem sequer põe em causa aquilo que o despacho recorrido disse sobre o assunto, tanto mais que aquilo que invoca do depoimento da testemunha é apenas parte daquilo que o despacho recorrido tinha dito sobre ele:
“- “D” (quesitos 34 e 37), por ser condutor/manobrador e ter prestado serviços para o réu e posteriormente para o autor na obra dos autos. Esclareceu que removeu mais terra do que estava no projecto, sobretudo de um lado para o outro, o que não foi significativo.”
XV
Termina o réu:
“Também a testemunha “I” (Engenheiro Topógrafo) confirmou que “havia uma discrepância na área” (minuto 3:19 da gravação) e que “neste caso...teve influência na parte de arquitectura e projecto” (minuto 4:35).
Isto relaciona-se possivelmente com os quesitos 29, 30, 39, 89 e 90.
Mas o réu não diz que tipo de influência, nem diz a que quesito é que imputa a possível impugnação. E o réu nem sequer põe em causa aquilo que o despacho recorrido disse sobre o assunto, tanto mais que aquilo que invoca do depoimento da testemunha é apenas parte daquilo que o despacho recorrido tinha dito sobre ele:
“- “I” (quesitos 29, 30, 39, 89, 90), por ser topógrafo e ter efectuado o levantamento topográfico do terreno onde foi implantada a obra em causa nos autos. Referiu que ao proceder ao seu trabalho verificou que o terreno tinha uma área superior à que estava indicada (o terreno tem área de 827 m2 e o que havia sido indicado era 792 m2). Por esta razão foi alterado o projecto, mas apenas no tocante a uma rampa de acesso e muro do lado direito. Esclareceu ainda que o pé direito da cave tinha um desnível de 3 metros dum lado ao outro. Explicou que a diferença de área do terreno não determina necessariamente alterações.”
*
É, assim, totalmente improcedente o recurso contra a decisão da matéria de facto, pelo que os factos tidos como provados mantêm-se como tal.
*
Recurso contra a decisão da matéria de direito
I
Conclusões 1 a 9
Tendo em conta os factos dados como assentes de A) a F) (“conclusões” 1 a 6), o réu conclui (de 7 a 9) que o valor da totalidade da obra era de 434.157,63€ (incluído IVA a 19%). Como o autor teria pago 309.939,76€, estaria por pagar a diferença entre estes dois valores, que é de 124.217,87€.
Como é evidente, a conclusão a que o réu chega, nestes termos, está na dependência de se poder afirmar que a obrigação do pagamento do preço total do contrato inicial e das alterações acordadas se tinha vencido.
Como o réu não faz o mínimo esforço para o demonstrar e dos factos provados já decorre que de todos os trabalhos contratados só estão concluídos 60,81% (como resulta já da improcedência do recurso contra a decisão da matéria de facto) e que o autor já pagou muito mais do que 60,81% do que o réu diz ser o preço global (pagou 75,765%), é evidente a improcedência da pretensão do réu que resulta destes conclusões, tanto mais que o réu nem sequer invoca qualquer cláusula contratual – do contrato inicial ou dos subsequentes - que obrigasse o autor a fazer-lhe pagamentos que superassem os já feitos (que são de 328.939,76€ e não de apenas 309.939,76€, como resulta da improcedência do recurso contra a decisão da matéria de facto).
II
Conclusão 10
Trata-se da simples transcrição de um facto provado, não levantando, por isso, qualquer questão.
Conclusão 11
Trata-se de um argumento contra um ponto da matéria de facto, já analisado na parte do recurso dedicado à decisão contra a matéria de facto.
III
Conclusões 12 e 13
Das conclusões 12 e 13 resulta que o réu considera que os factos provados permitem concluir que foi o autor que impediu o réu de concluir a obra contratada, daí decorrendo um incumprimento definitivo da prestação imputável ao autor, equiparável à impossibilidade da prestação, nos termos do 801 do CC, impendendo, por isso, sobre o autor a obrigação de indemnizar o réu dos prejuízos sofridos nos termos do disposto nos arts 798, 799, 802 e 1223 do CC.
Estas conclusões têm correspondência com todo o corpo das alegações dedicadas ao Direito no recurso do réu, no qual este ainda diz que a denúncia do contrato, feita por si, não tem validade nem significou uma manifestação inequívoca, firme e definitiva de não cumprir a sua obrigação, pelo contrário (o que seria demonstrado pelo seu comportamento, ao continuar a obra depois da denúncia).
*
A sentença recorrida decidiu o contrário com base na seguinte fundamentação:
“Por fax datado de 19/05/2003 o réu comunicou ao autor a denúncia do contrato [denúncia do contrato em conformidade com o art. 1215/2 do CC – transcreve-se parte da al. g) dos factos provados].
O réu continuou os trabalhos e em 22 de Maio enviou ao autor a comunicação de fls. 109, em que apresentou percentagens e valores referentes a diversos trabalhos.
Em 30/05/2003 o autor tomou posse da obra.
Por fax de 05/06/2003 o réu comunicou ao autor [a denúncia imediata do contrato – transcreve-se parte da al. j) dos factos provados].
Não obstante o réu ter continuado a executar trabalhos após a comunicação de 19/05/2003, o réu pôs termo nessa data ao acordo estabelecido com o autor. É que apesar de por um lado afirmar que “Denúncia que é solicitada e formalizada, com base no direito que nos assiste e, em conformidade com o nº 2 do art. 1215 do CCP.” e por outro terminar “Oportunamente daremos forma oficial à nossa pretensão, e, manifestada na presente comunicação.”, tal declaração foi pelo autor recebida e entendido por este que o réu pôs fim ao contrato – é o que resulta do teor do fax [referido em M) dos factos provados: “existiu uma renúncia unilateral ao contrato, de acordo com o fax datado de 20 do corrente e enviado ao meu cliente (…) formalmente a “C” renunciou ao contrato”].
Nos termos do disposto no art. 224/1 do CC a declaração do réu tornou-se eficaz com a sua recepção pelo autor. Acresce que a “denúncia” não está sujeita a qualquer formalidade que determinasse a necessidade de ser posteriormente confirmada pela forma legalmente exigida, como parece ser o entendimento do réu. Verifica-se, aliás, que o fax remetido pelo réu datado de 05/06/2003 que se destinaria, na posição por si assumida, a cumprir a observância formal, reveste exactamente a mesma forma que a primeira comunicação (forma escrita).
Importa, pois, averiguar se assiste razão ao réu, isto é, se a denúncia por si efectuada é válida e eficaz enquanto tal.
O réu invoca, na primeira comunicação o disposto no artigo art. 1215 do CC. No fax datado de 05/06/2003, para além deste preceito, fundamenta a sua posição no art. 1216.
Apesar de a “denúncia” ter sido efectuada no fax datado de 19/05/2003, abordaremos também o segundo fundamento.
Ora, o primeiro destes preceitos tem como pressuposto da sua aplicação o facto de se tratar de alterações necessárias, em virtude de direitos de terceiro ou de regras técnicas.
Por seu turno, o art. 1216, como a sua epígrafe inculca, rege quanto às alterações exigidas pelo dono da obra, estabelecendo o respectivo regime, o qual não atribui ao empreiteiro a faculdade de denunciar o contrato.
A situação dos autos não está, manifestamente, prevista nos citados preceitos. No caso sub judice estão em causa alterações solicitadas pelo dono da obra, ora autor, e não se mostra provado que sejam decorrentes de direitos de terceiro nem de regras técnicas (o que afasta a aplicação do art 1215 do CC), alterações que foram acordadas com o réu, que para o efeito elaborou e apresentou ao autor as respectivas “propostas de orçamento” [é o que resulta dos documentos nºs 2 a 12 juntos com a p.i.- ver E) dos factos provados]. Não houve, pois, uma imposição por parte do dono da obra (não é, pois, caso de aplicação do art. 1216).
[…]
Impõe-se, assim, concluir que a denúncia efectuada não é válida enquanto tal. No entanto, comporta uma manifestação inequívoca, firme e definitiva de não cumprir a sua obrigação (execução total dos trabalhos acordados), a qual não se mostra justificada, tornando dispensável a interpelação admonitória do art. 808 do CC pelo dono da obra, para efeitos de conversão da mora em incumprimento definitivo. Manifestação que foi reforçada em 05/06/2003 e que se traduz na extinção do contrato, independentemente de não ter sido declarada a sua resolução pelo autor (neste sentido ver ac. STJ de 09/12/2008 [08A965 da base de dados do ITIJ – acrescento deste acórdão]) – o que efectivamente não ficou demonstrado ter ocorrido, pelo menos, em termos expressos. Porém, o documento junto com a p.i. sob o nº 55 [a que se alude em I) dos factos provados] evidencia essa declaração.
[…].
*
Do incumprimento pelo réu
Embora o acórdão do STJ referido pela sentença recorrida diga respeito a um caso de abandono da obra pelo empreiteiro (como vários outros que podem ser invocados no mesmo sentido; apenas por exemplo: de 06/03/2007, 07A074, e de 09/12/2010, 3803/06.9TBAVR.C1.S1, da base de dados do ITIJ) corresponde ao entendimento corrente deste tipo de situações ou similares.
O comportamento do réu, ao “denunciar” ilicitamente o contrato – com base nas normas dos arts. 1215 e 1216 do CC, que, como a sentença o demonstra, não lhe davam o direito em causa -, corresponde pelo menos a uma vontade inequívoca de extinguir o contrato, com a consequência do incumprimento definitivo da sua prestação.
É certo que, a provocar ruído nesta interpretação, existe o facto de o réu ter continuado os trabalhos [parte final do corpo da al. g) dos factos provados], mas este facto, só por si, não quer dizer nada, porque não se sabe porque é que ocorreu.
De resto, logo a seguir, o comportamento do réu demonstra que ele tinha mesmo querido denunciar o contrato, deixando de o cumprir. É que, tendo o autor, 10 dias depois da denúncia, tomado “posse” da obra, o réu, em vez de se opor a tal (no sentido de dizer: o autor com a tomada de posse da obra impede-me de continuar a trabalhar, como eu queria), o que faz é enviar uma nova comunicação de denúncia. Ou seja, o que ele faz é, no seu entender, formalizar a denúncia que já tinha feito (aceitando, como desenvolvimento natural e lógico da situação, a tomada de posse da obra pelo autor).
Assim, temos da parte do réu um comportamento inequivocamente demonstrativo da intenção de não cumprir a sua prestação, em consequência da extinção do contrato visada por esse comportamento. Comportamento que é equiparável ao incumprimento definitivo do contrato por parte do réu.
Ora, o comportamento do autor (a tomada de posse da obra) ocorreu já depois do incumprimento definitivo por parte do réu e por isso não pode ser visto, por sua vez, como incumprimento do contrato por parte do autor, mas antes, como o fez a sentença, seguindo na esteira do ac. do STJ por ela invocado, como comportamento concludente da resolução (tácita) do contrato, por parte do autor, com base no incumprimento definitivo do réu (arts. 808 e 801, ambos do CC).
*
Denúncias e resoluções ilícitas
Entretanto, note-se que as coisas podiam ser vistas de maneira diferente, sem que daí derivasse qualquer benefício para o réu.
É que, por exemplo, Romano Martinez entende que uma denúncia ilícita – aquela que se verifica quando “uma das partes denunci[a] o contra-to fora do contexto em que esta forma de cessação é admitida, nomeada-mente sem se encontrarem preenchidos os respectivos pressupostos” – por via de regra produz de imediato o efeito extintivo (Da cessação do contrato, 2ª edição, Almedina, 2006, pág. 124).
Neste entendimento, ver-se-ia a tomada de posse da obra pelo autor, não como uma resolução tácita do contrato, mas como a aceitação, por este, do efeito extintivo da denúncia ilícita.
De qualquer modo, também aqui o incumprimento definitivo do contrato era imputável ao réu, não ao autor.
*
Da declaração tácita de recusa de cumprimento
De qualquer modo, este tipo de situações (de declarações extintivas de contratos) tem sido visto antes como modo de extinção ineficaz enquanto tal (por exemplo, e com inúmeros argumentos, Paulo Mota Pinto: “a resolução sem fundamento é, pois, ineficaz”, “por não possuir fundamento e o resolvente não ser titular do correspondente direito potestativo. […] da tentativa de exercício de um direito de que se não era titular não pode resultar qualquer efeito extintivo da relação contratual”. Este autor aceita, no entanto, que isto não será assim no caso de denúncia ad libitum [= ad nutum] de contratos por tempo indeterminado [o que não é o caso dos autos] - Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Coimbra Editora, 2008, nota 4861, págs. 1674/1677).
Sendo ineficazes enquanto modo de extinção do contrato, as respectivas declarações devem, no entanto, ser analisadas, como o fez a sentença, seguindo o citado ac. do STJ, como comportamentos susceptíveis de serem, ou não, manifestações inequívocas da vontade de não cumprir. Sendo-o, são equiparadas a incumprimentos definitivos imputáveis a essa parte.
A questão tem sido analisada principalmente quanto a declarações de resolução. Como não há, quanto a esta questão, diferenças relevantes entre a denúncia e a resolução (a equiparação, para estes efeitos, é feita por Romano Martinez, obra citada, págs. 221/224), o que se diz a propósito desta pode ser aproveitado para a denúncia (até porque a denúncia dos arts. 1215 e 1216, mesmo que seja uma denúncia – Romano Martinez, obra citada, pág. 564 – não o é em sentido próprio de uma denúncia ad nutum (discricionária, sem necessidade de invocação de um motivo) de um contrato de duração indeterminada – Pedro de Albuquerque e Miguel Assis Raimundo, Direito das obrigações, Almedina, 2012, pág. 352, nota 1357).
Embora a propósito de uma hipótese que não é exactamente a dos autos, ou seja, sobre a recusa antecipada de cumprimento – nos autos a execução da obrigação já se tinha iniciado… - diz Brandão Proença: “É do entendimento comum que, em regra, a decisão do devedor é revelada de forma expressa mediante uma declaração dirigida ao credor e em que faz saber – como seu conteúdo – a vontade de não cumprir o chamado “programa contratual”. No seu desiderato de anunciar essa intenção, a declaração do devedor pode manifestar-se obliquamente com alegações de inexistência ou invalidade contratual, sob a forma de motivações subjectivas de desinteresse […] e pretensões sem justificação contratual, ou ir implícita na atitude mais radical de repúdio ou rejeição do próprio contrato, revelada através de pedidos de anulação, resolução (potenciada com um pedido indemnizatório) denúncia ou impugnação do vínculo assumido […] a tentativa de uma desvinculação ilegítima, activada por alguma dessas formas jurídicas, pode querer branquear a evidência de um acto lesivo, apresentando-se, pois, como sinal concludente de uma recusa antecipada de cumprimento […] (A hipótese da declaração (lato sensu) antecipada de incumprimento por parte do devedor, Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria, Coimbra Editora, 2003 = Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, Coimbra Editora, 2011, pág. 262):”.
Por sua vez, Romano Martinez diz: “quando o devedor declara expressamente – de modo significativo – não pretender cumprir a prestação a que está adstrito, não se torna necessário que o credor lhe estabeleça um prazo suplementar para haver incumprimento definitivo. A declaração do devedor é suficiente, por exemplo, no caso em que, sem fundamento, resolve o contrato ou afirma, de forma inequívoca, que não realizará a sua prestação” (obra citada, pág. 142).
Nuno Manuel Pinto Oliveira (Princípios de direito dos contratos, Coimbra Editora, Maio 2011, págs. 864 a 868), defende a relevância da recusa de cumprimento (podendo o credor retirar da recusa as consequências jurí-dicas em geral relacionadas com a mora qualificada (pelo preenchimento dos requisitos do art. 808/1 – por exemplo, a indemnização substitutiva da prestação […] ou a resolução do contrato […]), sob a forma de uma decla-ração categórica, clara e definitiva, mesmo que seja verbal e tácita. E lembra que os autores portugueses têm considerado que a declaração ex-pressa de resolução do contrato, quando injustificada, é – ou pode ser – uma declaração tácita de recusa de cumprimento.
Acrescenta: “O devedor que declarasse actuar o direito potestativo [de] resolver um contrato bilateral, não podendo fazê-lo, por não estarem preenchidos os requisitos da resolução […] estaria a atribuir ao seu credor o direito potestativo de o resolver. O devedor que alegasse, injustificadamente, que o seu credor não cumpriu e que quisesse resolver o contrato pelo facto de o seu credor não ter cumprido estaria a atribuir-lhe a faculdade de alegar, justificadamente, que o devedor não cumpriu.
Os exemplos anteriores devem apreciar-se com alguma reserva, advertindo-se o intérprete para que evite a tentação de cair em automatismos fáceis. Depois cita Calvão da Silva (A declaração de intenção de não cumprir, pág. 135): ‘Urge, nomeadamente, prevenir o pecado de pensar que a declaração ilegal de resolução por uma das partes contratantes constitui sem mais fundamen-to de resolução para a outra parte’”.
E conclui: “O credor só poderá considerar a declaração de recusa de cumprimento como uma declaração definitiva quando seja a última palavra […] em termos tais que a reconstituição da relação contratual originária deva considerar-se afastada ou excluída pelo princípio (da proibição) do abuso do direito”.
João Cura Mariano (Responsabilidade Contratual do Empreiteiro da Obra pelos defeitos da obra, Almedina, 2004, págs. 111 a 113) defende que na hipótese de se verificar um incumprimento definitivo das obrigações de eliminação dos defeitos ou de reconstrução, por recusa peremptória do empreiteiro em realizá-las, as consequências são as do regime do incumpri-mento das obrigações em geral, sendo evidente que esta posição vale tam-bém, por maioria de razão, para o caso de recusa de cumprimento da obrigação de fazer a própria obra.
E esta posição foi seguida por Pedro Albuquerque e Miguel Assis Raimundo, obra citada, págs. 432/433.
E, por exemplo, no acórdão do STJ de 24/10/2006, nº. 06A2341 da base de dados do ITIJ, diz-se: “sendo o direito de resolução um direito potestativo extintivo dependente de um fundamento (art. 432/1 do CC) para ser legítimo torna-se necessário que a declaração tenha a sustentá-la um fundamento legal ou convencional. Não existindo fundamento estamos perante uma recusa de cumprimento. A declaração séria de recusa de cumprimento torna desnecessária a interpelação pelo contraente adimplente.”
Ora, como se tentou acima demonstrar, no caso dos autos a declaração de denúncia foi, por parte do réu, uma manifestação categórica, clara e definitiva da vontade de extinguir o contrato e de não cumprir a obrigação.
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Da posse administrativa
Para terminar, diga-se que a figura escolhida pelo autor – a tomada de posse administrativa da obra de que fala o réu na penúltima conclusão do recurso (o qualificativo não consta dos factos provados, mas confirma-se no relatório deste acórdão) – é mais uma fonte de ruído, desta vez para a interpretação de tal conduta como comportamento concludente da resolução tácita do contrato.
É que a posse administrativa é figura que tem a ver com os contratos de empreitadas de obras públicas e que não é equivalente à resolução do contrato de empreitada de obras públicas, mas antes uma sua alternativa (como decorre dos nºs. 4 e 8 do art. 161 do regime jurídico das empreitadas de obras públicas, do Dec.-Lei 59/99, de 02/03, que era o vigente à data dos factos, mas também do disposto nos arts. 404 e 405 do actual Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Dec.-Lei 18/2008, de 29/01).
Dir-se-ia, pois, que ao tomar posse administrativa da obra, o autor não estava a resolver o contrato: visto que o autor escolheu a via da tomada da posse administrativa da obra, tê-lo-á feito por saber em que é que ela se consubstanciava, sabendo designadamente que ela não equivalia à resolução do contrato.
Apesar disso, considera-se que, em termos civis, o comportamento do dono da obra que, perante a “denúncia” do contrato pelo empreiteiro, toma a posse da obra, pode ser entendida, como o foi pela sentença recorrida, como comportamento que demonstra a vontade de acabar de vez com a relação contratual denunciada pela contraparte e de ultrapassar a situação daí decorrente.
Em qualquer caso, não seria possível ver o comportamento do autor como incumprimento do contrato, pois que já ocorria depois de uma situação equiparável ao incumprimento definitivo do contrato pela contraparte. E era apenas esta a questão que era levantada pelas conclusões do recurso do réu que estavam agora a ser apreciadas.
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(…)
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas pelo réu (sem prejuízo do concedido apoio judiciário).

Lisboa, 21 de Junho de 2012.

Pedro Martins
Sérgio Silva Almeida
Lúcia Celeste da Fonseca Sousa