Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3903/2003-4
Relator: GUILHERME PIRES
Descritores: TRIBUNAL DO TRABALHO
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
PROTOCOLO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/09/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: O Protocolo de Acordo sobre o Empreendimento de Cahora Bassa celebrado entre o Estado Português e a Flelimo em 14/04/1975 para que fosse vinculativo no que toca à competência internacional dos Tribunais, terá de ser publicado, o que não se verifica.
Decisão Texto Integral: Acordam no TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

  A) propôs no Tribunal do Trabalho de Lisboa acção declarativa de condenação emergente de contrato individual de trabalho, com processo comum, contra H. C. B.- HIDROELECTRICA DE CAHORA BASSA, SARL, alegando o que consta da sua petição inicial, designadamente discutindo a natureza do contrato de trabalho que a liga à Ré e impugnando o despedimento por esta decretado e pedindo a sua condenação em conformidade.

Contestou a Ré, por excepção e por impugnação.

Por excepção a R. arguiu a excepção da incompetência internacional do Tribunal do Trabalho de Lisboa para julgar o pleito. Alegou que o local da prestação do trabalho da A. era na sede da R. no Songo, em Moçambique. O
contrato de trabalho celebrado entre as partes foi-o nos termos e ao abrigo do "Protocolo de Acordo sobre o Empreendimento de Cahora Bassa" assinado em Lourenço Marques a 14 de Abril de 1975 entre o Estado Português e a Frelimo.
No art.o 12° do anexo I ao Protocolo ("Condições Básicas para a contratação do pessoal da empresa concessionária") dispõe-se que todo o litígio ou
qualquer dúvida de interpretação relacionada ou resultante da aplicação de qualquer contrato individual, serão resolvidos pelo foro da Comarca ou organização judicial equivalente a que pertença o local de trabalho onde o trabalhador, considerando o tempo total de vigência do contrato, tenha, com maior permanência, prestado o seu trabalho. Assim, uma vez que o Songo é o local onde a A. prestou o seu trabalho, o tribunal competente é o da Comarca de Tete em Moçambique. O referido Protocolo é um tratado internacional, que vigora na ordem jurídica interna de ambos os estados e na ordem jurídica internacional, e prevalece sobre as normas internas ordinárias, ou seja, sobre o disposto nos artigos 99° n° 3 do Código de Processo Civil e no art.o 11° do . Código de Processo de Trabalho.
A A. respondeu, pugnando pela improcedência da excepção arguida, na medida em que o referido Protocolo não chegou a ser publicado, pelo que não vigora na ordem interna portuguesa.
Por decisão de fls. 163 e segs. foi julgada improcedente a arguida excepção dilatória de incompetência arguida pela Ré e declarado o Tribunal do Trabalho de Lisboa competente, quanto à nacionalidade, para julgar o pleito. Inconformada com a decisão, dela recorreu a Ré, finalizando a sua alegação com as seguintes conclusões:

1. Salvo o devido respeito, que é muito, não nos parece que os tribunais do trabalho portugueses sejam competentes em razão da nacionalidade.

2. O Protocolo de Acordo sobre o Empreendimento de Cahora Bassa, assinado em Lourenço Marques no dia 14 de Abril de 1975, entre o Estado Português e a FRELLMO, é um acordo em forma simplificada, que vincula
internacionalmente o Estado Português, de acordo com o sistema de recepção plena do direito das gentes então em vigor, desde a respectiva assinatura pelo Governo, não estando sujeito a ratificação.
3.  A publicação do referido Protocolo e seus Anexos, não é condição para o mesmo vigorar na ordem interna portuguesa.
4. Pelo que, é indiscutível que o mesmo vigora na ordem jurídica interna portuguesa, enquanto norma de direito internacional constante de tratado, com um valor supra legal.
5. Assim. sendo, encontrando-se o Estado Português vinculado internacionalmente às normas do Protocolo, é, no mínimo, paradoxal, que as mesmas normas não tenham eficácia na ordem jurídica interna portuguesa.

6. Tendo em consideração que o art. 12° do Anexo I, do Protocolo de Acordo sobre o Empreendimento de Cahora Bassa, consubstancia um pacto privativo de jurisdição exclusiva, os tribunais portugueses são incompetentes para julgar uma acção resultante de um contrato de trabalho celebrado ao abrigo do mesmo, entre a então A. - que prestou o seu trabalho na sede da recorrente em Moçambique - e a então R. ­ com sede no Songo, Moçambique -, porque. enquanto norma de Direito Internacional convencional que é, prevalece sobre as normas portuguesas internas ordinárias. contrárias ao seu teor, no caso em apreço, o disposto no art. 99°, nº 2, al. c) e artº 65° A, al. c), ambos do C.P.C. e 10° e 11 o do C.P.T.
7 . Razão pela qual, a douta. sentença recorrida, ao não atender ao estipulado mio Protocolo, violou o disposto no art. 8°, nº 2 da C.R.P.

Termos em que, ... deve ser revogada a decisão recorrida quanto a competência do Tribunal do Trabalho de Lisboa e dado provimento ao Recurso.

Contra-alegou a Autora, defendendo que deve ser mantida a decisão recorrida, o Mmo Juiz a quo manteve a decisão recorrida
 Correram os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.

OS FACTOS:

Para além do já constante do anterior relatório, os autos fornecem ainda os elementos seguintes:

 - O Estado Português e a Frente de Libertação Nacional de Moçambique (Frelimo) celebraram em 14-04-1975 o Protocolo de Acordo Sobre o Empreendimento de Cahora Bassa e respectivos adicionais constantes de fls. 13 e segs dos autos.
- O referido Protocolo não chegou a ser publicado em Portugal. - Em 19 -11-83 a Autora e a Ré celebraram, por escrito, um "contrato de trabalho para trabalhador estrangeiro".
- O local de trabalho da Autora era na sede da empresa sita no Songo, Tete, República de Moçambique.
O DIREITO
O âmbito do recurso, como se sabe, define-se pelas suas conclusões (arts. 684°, n° 3 e 690°, n° 1 do CPC).
A questão que se coloca é a de saber se o Tribunal do Trabalho de Lisboa é, ou não, competente internacionalmente para o conhecimento da presente acção.
Em nosso entender, a decisão recorrida, mostra-se correctamente estruturada e cabalmente fundamentada, nela se fazendo uma cuidada análise da matéria dos autos, motivo por que este Tribunal considera dever acolher a fundamentação doutamente deduzida pelo Mmo juiz a quo.
Como refere a decisão recorrida, "o Protocolo de Acordo Sobre o Empreendimento de Cahora Bassa foi celebrado entre dois sujeitos de Direito Internacional, agindo como tais. O Estado Português reconheceu esse estatuto à Frente de Libertação Nacional de Moçambique (Frelimo), enquanto movimento de libertação nacional, não só através desse acordo mas sobretudo em 7 de Setembro de 1974, através do Acordo de Lusaca (publicado no 2° suplemento do Diário do Governo, 1ª série, de 9 de Setembro de 1974), no qual se convencionou a transferência progressiva para Moçambique dos poderes que Portugal detinha sobre aquele território.
O referido instrumento tem em vista regular a forma de exploração do Empreendimento de Cahora Bassa, criando obrigações e direitos para as duas partes, sendo certo que nele ficou consignado que o Acordo se consideraria confirmado e ratificado pelo Governo de Moçambique, na data da independência (preâmbulo do Acordo). O próprio preâmbulo da Constituição de Moçambique (publicada no Suplemento ao Boletim da República 10 série, n° 44, de 2 de Novembro de 1990) consagrou o papel da Frelimo como "legítimo representante do povo Moçambicano"
Assim, e sendo certo que a terminologia utilizada para o designar ("Protocolo de Acordo") é irrelevante, não existindo, nessa matéria, qualquer uniformização, o Protocolo tem a natureza de um verdadeiro tratado internacional.

Tal tratado foi assinado em Lourenço Marques, em 14 de Abril de 1975, pelo então Secretário de Estado da Coordenação Territorial, Dr. Jorge Sampaio, em representação do Governo Português, e pelo Dr. Joaquim Ribeiro de Carvalho, então Ministro da Coordenação Económica do Governo de Transição de Moçambique, em representação da Frelimo.
Porém, o referido Protocolo não chegou a ser publicado, pelo menos em Portugal.
É certo que na sequência da Resolução do Conselho de Ministros de 4 de Junho de 1975, o Governo Português aprovou e o Presidente da República promulgou os Dec.-Lei n° 276-B/75 e 276-C/75, ambos de 4 de Junho, publicados no 4° suplemento, n° 128, do Diário do Governo, Ia série, os quais dão execução ao Protocolo e o referem expressamente. Porém, o texto do Protocolo não é transcrito, pelo que é impossível aos interessados e aos cidadãos em geral tomarem conhecimento do seu teor.

Assim, não operou um requisito essencial à recepção das normas do Protocolo na ordem jurídica portuguesa, o da publicação, requisito esse exigido tanto pela Constituição da República Portuguesa de 1933, então em vigor nos termos da Lei n° 3/74, de 14 de Maio (parágrafo lodo art.º 4°: "As normas de direito internacional vinculativas do Estado Português vigoram na ordem interna desde que constem de tratado ou acto aprovado pela Assembleia Nacional ou pelo Governo e cujo texto seja devidamente publicado"), como pela Constituição da República Portuguesa de 1976, que entrou em vigor em 25 de Abril de 1976, cujo artº 8, n° 2 , tem o seguinte teor: "As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificados ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português".
Na versão inicial da Constituição da República Portuguesa de 1976, a falta de publicidade dos actos de eficácia externa dos órgãos de soberania implicava a inexistência jurídica do acto (nº si 1 e 4 do art.º 122°). Após a primeira revisão constitucional, aprovada pela Lei Constitucional n° 1/82, de 30 de Setembro, e desde então, a falta da publicação tem como consequência a ineficácia jurídica do acto (a partir da Lei Constitucional n° 1/97, de 20 de Setembro, nos termos do artº 119° n° 2).
O Anexo 1 do Protocolo, com a epígrafe "Condições Básicas para a Contratação do Pessoal da Empresa Concessionária", contém um art. 12°, com o seguinte teor:
"Todo o litígio ou qualquer dúvida de interpretação, relacionado ou resultante da aplicação de qualquer contrato individual, serão resolvidos pelo foro da Comarca ou organização judicial equivalente a que pertença o local de trabalho onde o trabalhador, considerando o tempo total de vigência do contrato, tenha, com maior permanência, prestado o seu trabalho".
De acordo com o referido Protocolo, uma vez que, conforme é matéria assente entre as partes, o local de trabalho da A. estava localizado em território moçambicano, os tribunais portugueses não teriam competência para julgar o pleito. Porém, sobre esta matéria há que levar em consideração o disposto nos artigos 10° e 11 º do Código de Processo do Trabalho português. O art. o 10° estabelece o seguinte: "Na competência internacional dos tribunais
Do trabalho estão incluídos os casos em que a acção pode ser proposta em Portugal, segundo as regras de competência territorial estabelecidas neste Código, ou de terem sido praticados em território português, no todo ou em parte, os factos que integram a causa de pedir na acção". Ora, a A. reside em Portugal, mais precisamente em Paço de Arcos, que se localiza na área de competência territorial deste tribunal (Dec.-Lei n° 186-A/99, de 31 de Maio), e o artº 14° n° 1 do Código de Processo do Trabalho confere competência territorial, nomeadamente, ao tribunal do lugar do domicílio do autor.
Assim, à luz das aludidas normas do Código de Processo do Trabalho, os tribunais do trabalho portugueses têm competência para julgar o presente litígio. Nos termos do artº 11° do Código de Processo do Trabalho "não podem ser invocados perante tribunais portugueses os pactos ou cláusulas que lhes retirem competência internacional atribuída ou reconhecida pela lei portuguesa, salvo se outra for a solução estabelecida em convenções internacionais." Como se viu, o Protocolo supra referido não vigora na ordem jurídica interna portuguesa, pelo que não se pode sobrepor ao referido preceito do Código de Processo do Trabalho (neste sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20.6.2000, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do STJ, ano VIII, tomo 11, pág. 279 e seguintes, citado pela A.)".
Conclui a Recorrente que "O Protocolo de Acordo sobre o Empreendimento de Cahora Bassa, assinado em Lourenço Marques no dia 14 de Abril de 7975, entre o Estado Português e a FRELIMO, é um acordo em forma simplificada, que vincula internacionalmente o Estado Português, de acordo com o sistema de recepção plena do direito das gentes então em vigor, desde a respectiva assinatura pelo Governo, não estando sujeito a ratificação.
A publicação do referido Protocolo e seus Anexos, não é condição para o mesmo vigorar na ordem interna portuguesa".

Mas não tem razão.
Como se refere no Ac. STJ supra citado, o Protocolo entre o Estado Português e a Frelimo vale com acordo vinculativo mas para ser aplicado, no que toca à competência internacional dos Tribunais, teria de ser publicado.
A publicação é entendida pela doutrina como conditio juris da eficácia de uma convenção internacional na ordem interna.

Assim, sem a publicação, tais normas não vigoram na ordem interna, mesmo que vigorem na ordem externa e vinculem o Estado.
Por outro lado, a cláusula em contrato de trabalho que atribui competência aos tribunais do local da prestação de trabalho, situando-se este em Moçambique, é inválida, já que se trata de uma cláusula contratual claramente repudiada pelos arts. 120 e 110 do CPT.
Improcedem, nestes termos, as conclusões da alegação da Recorrente.

DECISÃO:

Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso de agravo e em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Agravante.

Lisboa, 9/7/03

Guilherme Pires
Sarmento Botelho
Simão Quelhas