Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4467/2004-7
Relator: AMÉLIA ALVES RIBEIRO
Descritores: ARRENDAMENTO
USUFRUTO
CADUCIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/26/2004
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: A caducidade do arrendamento, nos termos do art. 1051º, nº 1, al. c), do CC, em situações de morte da usufrutuária, não opera ipso jure, mas apenas quando cessa o regime da administração com base no qual foi celebrado o contrato.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

Apelante/A.: R. Silva
Apelados/RR.: M. Correia e F. Correia
Pedido: condenação dos réus a reconhecerem a caducidade do contrato de arrendamento em causa e a entregarem o locado livre e devoluto.

Alega, em síntese, que a autora é cabeça de casal da herança aberta por óbito de A. Coelho; esta foi casada, no regime de comunhão geral de bens, com C. Gomes, o qual faleceu em 5 de Março de 1963 e que, como não houve filhos desse casamento, Arlete passou a ter o usufruto do acervo herditário do marido; dessa herança fazia parte um prédio que aquela arrendou à ré em 01 de Fevereiro de 1976; tendo cessado, por morte, o usufruto de que a mesma beneficiava, nos termos da alínea c) do art.º 1051° do Código Civil, caducou o arrendamento.

Os RR. contestaram, tendo deduzido reconvenção, alegando (para além da defesa por excepção, já decidida) que a falecida Arlete não tinha o usufruto do locado mas apenas o direito ao usufruto da herança deixada por seu marido, tendo sido nessa qualidade que deu de arrendamento à ré mulher, sua sobrinha, o mesmo locado. Acrescenta que, como a locadora referiu no contrato de arrendamento de fls. 16, sempre eles, réus, tiveram a convicção de que a senhoria era proprietária, acrescentando ainda que a autora não é sequer radiciária do locado, mas apenas cabeça de casal da herança indivisa, pelo que não caducou o contrato arrendamento.
Em reconvenção, os réus pedem que, no caso de a acção proceder, a autora, na qualidade de administradora da herança indivisa, seja condenada a pagar-lhes a quantia de 3.000.000$00, como indemnização por terem de abandonar o locado em apreço.

A autora replicou.
Foi proferida sentença que julgou a acção e a reconvenção improcedentes e, por conseguinte, absolveu a A. e os RR, dos respectivos pedidos contra eles formulados.
É contra esta decisão, na parte que lhe foi desfavorável, que se insurge a recorrente, formulando as seguintes conclusões:
1ª - A A. estruturou a acção com base, entre o mais, no facto da falecida Arlete ter dado de arrendamento à R. o locado dos autos na qualidade de usufrutuária;
2ª - Os RR. impugnaram a pretensão da A. alegando, entre o mais, que desconheciam a qualidade de usufrutuária da locadora e que esta nunca lhes referiu tal facto;
3ª - A condição de usufrutuária da locadora, Arlete é, portanto, um facto controvertido;
4ª - O qual devia ter sido elencado entre os factos assentes por ser do conhecimento oficioso do Tribunal, na medida em que o usufruto resultou directamente da lei, a saber, do § único do art° 2003° do Código Civil ao tempo em vigor;
5ª - O facto da locadora ter a qualidade de usufrutuária tem decisivo interesse para a decisão da causa, atento o preceito da alínea e) do art° 1051° do C.Civil, segundo o qual o contrato de locação caduca quando cessa o direito ou findem os poderes legais de administração, com base nos quais o contrato foi celebrado;
6ª - A caducidade do arrendamento operou automaticamente, independentemente do conhecimento ou ignorância dos locatários quanto à qualidade e poderes do locador.
7ª - Diversamente do que o meritíssimo juiz entendeu, o usufruto da falecida Arlete recaía sobre todos e cada um dos bens que integravam a herança aberta por óbito de seu marido;
8ª - Sendo o usufruto um direito real, um "jus in re", é evidente que não pode existir um usufruto abstracto sobre uma herança genericamente considerada, sem que tal usufruto recaia sobre cada um dos bens móveis e imóveis que componham tal herança;
9ª - O meritíssimo juiz a quo fez um errado enquadramento da matéria que lhe estava submetida quando, desprezando a qualidade de usufrutuária da locadora, se limitou a apreciar a actuação desta como mera administradora da herança;
10ª - Tal obnubilação do aspecto mais relevante do problema está patente no trecho da douta sentença em que se diz: "Dissolvido por morte o casamento celebrado sob o regime de comunhão geral, enquanto não se efectuarem partilhas o cônjuge sobrevivo fica a administrar os bens";
11ª Aquela afirmação esquece que tendo o cônjuge sobrevivo (como no caso em apreço) o usufruto vitalício sobre os bens da herança, a partilha que eventualmente se efectuasse não poria fim aos poderes de administração da usufrutuária;
12ª- Mesmo nesta última situação a usufrutuária poderia, depois da partilha feita, continuar a dar de arrendamento prédios que tivessem sido adjudicados a qualquer herdeiro, mas sobre os quais ela, enquanto fosse viva, mantinha o usufruto;
13ª- O que antecede é suficiente para concluir que o meritíssimo juiz a quo fez uma errada qualificação jurídica da matéria de facto que lhe foi submetida e uma incorrecta interpretação e aplicação do direito;
14ª- Está assente que a A. informou a R do falecimento da locadora Aríete (alínea E) dos factos assentes); que a R. respondeu informando querer exercer o direito à celebração de novo arrendamento (alínea F) dos factos assentes) e que os RR não saíram do locado (1ª parte da alínea G) dos fados assentes);
15ª - E que a douta sentença recorrida deve ser anulada e substituída por decisão que reconheça e declare a caducidade do arrendamento dos autos, condenando os RR. ora recorridos a entregar à A. o locado, livre e devoluto, e bem assim em custas, procuradoria e no mais legal.

II. 1. As questões que cumpre resolver, recortadas nas conclusões de recurso, consistem em saber se: (a) existe omissão na matéria de facto assente, ao não ter sido elencada a circunstância de a locadora ser usufrutuária do imóvel, à data do arrendamento; (b) caducou o contrato de arrendamento celebrado entre a falecida Arlete e os RR..

II. 2. 1. Matéria de facto assente:
A) A A. é a cabeça de casal da herança aberta por óbito de Arlete.
B) A falecida Arlete foi casada em primeiras núpcias com C. Gomes, no regime de comunhão geral de bens.
C) Esse casamento veio a ser dissolvido por morte do cônjuge marido, ocorrida em 05 de Março de 1963.
D) No dia 01 de Fevereiro de 1976 a R. mulher, sobrinha da falecida Arlete, celebrou com esta um contrato de arrendamento para habitação do rés - do - chão do imóvel designado por vivenda Arlete, sito em ..., Vila Nova de Caparica e descrito na matriz sob o n.º 2233 da Freguesia da Caparica, contrato esse junto a folhas 16.
E) Por carta registada com aviso de recepção, datada de 27.09.99, os e herdeiros de Arlete, através da sua Advogada, informaram a ré do falecimento daquela, acrescentando que o seu contrato de arrendamento havia caducado, conforme documento de folhas 17.
F) Por carta registada com aviso de recepção em 20.10.99, a R. respondeu, informando querer exercer o direito à celebração de novo contrato de arrendamento, com renda condicionada.
G) Os réus não saíram do locado nem fizeram valer o direito ao novo arrendamento.

II. 2. 2. Apreciando:
Quanto à invocada omissão da matéria de facto:
Muito embora não conste expressamente da matéria de facto que a falecida Arlete era mera usufrutuária do locado quando celebrou com os RR. o contrato de arrendamento, não pode deixar de se notar que a sentença recorrida tem em conta essa realidade quando expressamente refere a fls. 71 dos autos: ... achando-se constituído um usufruto e tendo o usufrutuário, enquanto tal, celebrado contrato de arrendamento de um bem por si possuído em regime de usufruto. Mas a sentença diz mais, perante a dúvida colocada pelos RR. quando alegam que a usufrutuária não lhes deu a conhecer essa qualidade mas a de proprietária: “a caducidade do arrendamento provocada pelo termo do usufruto não depende de o arrendatário conhecer, de facto, a qualidade de mero usufrutuário da pessoa com quem contratou, e não tem qualquer relevância para tal caducidade o facto de o usufruto não estar registado na competente conservatória”.
Isto quer dizer, que a sentença considerou expressamente a circunstância de a locadora ser usufrutuária do locado, o que, do nosso ponto de vista, nem sequer era controvertido, visto que o que pode aceitar-se ter sido posto em causa pelos RR. consiste em que a usufrutuária não lhes deu a conhecer essa qualidade.
Seja como for, e do ponto de vista de facto, entende-se que não existe a apontada omissão, visto que do que se trata é de matéria de direito. Na verdade, tendo o cônjuge da falecida Arlete (com quem foi casada em comunhão geral de bens – nº 2 dos factos), falecido em 1963 (nº 3), temos que, por força do artº 2003 § único do Código Civil de Seabra, então vigente, ela era mera usufrutuária. Trata-se, pois, de um caso de usufruto ope legis e não de matéria de facto propriamente dita.
E que era irrelevante o conhecimento que os RR. tinham dessa qualidade foi também reconhecido na sentença recorrida, como resulta do trecho acima citado e na esteira da jurisprudência que indica.
Não se detecta, pois, qualquer omissão da matéria de facto.

Quanto à questão de saber se caducou o direito ao arrendamento.
Desde já se adianta que não nos merece reparo o entendimento prosseguido na sentença, fundamentalmente pelas razões que a seguir se indicam:
A caducidade do contrato de arrendamento pode ocorrer nas circunstâncias apontadas pelo artº 1051 do CC;
Está neste caso em evidência a al. c) do citado preceito na qual se diz expressamente que: o contrato de locação caduca... quando cesse o direito ou findem os poderes legais de administração com base nos quais o contrato foi celebrado;
Entre as situações a que esta alínea se refere contam-se os casos em que o arrendamento é outorgado por um usufrutuário do locado.
Como é sabido, o usufruto termina com a morte do seu titular (artºs 1443 e 1476/1/a. do CC);
É também sabido que a Doutrina e a Jurisprudência têm tido entendimentos divergentes sobre esta questão. Para uns, a morte do locador usufrutuário faz extinguir “ipso jure” o arrendamento e permite desde logo que se obtenha a entrega do prédio ... (neste sentido, RE, 03.02.87, CJ/87, I, 316 e também, Cunha de Sá, Ciência e Técnica Fiscal, 114º, 130 a 133, 146 e 158);
Porém, em sentido inverso, a RP, 21.07.83, CJ/83, 4º, 233, diz-nos que: O regime de caducidade da al. c) do nº 1 do artº 1051º do Cód. Civil, opera, não a partir da cessação dos poderes daquele que, em concreto, no uso desses poderes, deu o prédio de arrendamento, mas quando cessa, em geral, o regime de administração a que o prédio está sujeito e com base no qual se atribuíram esses poderes; o que releva é o aspecto objectivo da administração, e não o aspecto subjectivo. Neste sentido decidiu esta mesma Relação em 06.10.87, CJ/87, 4º, 141 e a RP, em 22.05.95, BMJ, 447, 561;
Está em causa um contrato de arrendamento celebrado pela usufrutuária da herança deixada por morte de seu marido, Arlete. A herança ainda se encontra por partilhar.
Não faria qualquer sentido pôr em causa o direito do locatário antes de obter uma definição clara sobre quem definitivamente assumirá a propriedade do imóvel. Não faria qualquer sentido fazer perigar o direito de habitação de acordo com as possíveis flutuações no cargo de cabeça - de - casal (como – e bem - se salienta na sentença recorrida). Como nos diz Aragão Seia, é ... a administração e não o administrador que se tem em consideração no aludido preceito da lei. ... a caducidade opera não a partir da cessação dos poderes daquele que, em concreto, no uso desses poderes deu o prédio de arrendamento, mas quando cessa, em geral, o regime de administração a que o prédio está sujeito e com base no qual se atribuíram esses poderes (Arrendamento Urbano, Anotado e Comentado, 4ª ed., Almedina, 1998, pág. 385).
Improcedem, pois, as conclusões atinentes a esta mesma questão.

III. Termos em que, de harmonia com as disposições legais citadas se nega provimento à apelação e se confirma a sentença recorrida.
Custas pela apelante, em ambas as instâncias.

Lisboa, 26-10-04

Maria Amélia Ribeiro
Arnaldo Silva
Soares Curado (voto vencido)

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DECLARAÇÃO.
Vencido.

Com o respeito devido à orientação seguida, penso que a hipótese da regra do art. 1055°, 1, cl), Código Civil, deve ser compreendida na perspectiva da extinção do direito ou dos poderes de administração em que se baseou a celebração do contrato de arrendamento. Tendo, assim, deixado de ser possível celebrar arrendamento sobre o prédio determinado a título do usufruto que se extinguiu, não faz qualquer sentido falar em persistência de poderes de administração, visto que estes arrancam de um título diverso. Decidindo-se diversamente, opera-se a sobrevivência do arrendamento contra manifesta intenção legislativa, inquestionavelmente a de o fazer cessar com a cessação do direito mediante qual foi outorgado.