Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2198/1999.L1-6
Relator: JOSÉ EDUARDO SAPATEIRO
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
SIMULAÇÃO
REQUISITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/01/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I – O contrato de compra e venda firmado em 29/02/1996 foi formal e aparentemente celebrado entre o Autor, na qualidade de pretenso comprador, e os donos do prédio, na qualidade de efectivos vendedores, quando, na verdade, foi o 1.º Réu que adquiriu o imóvel em questão, figurando o Autor como mero “testa de ferro” ou “homem de palha” (no dizer da doutrina) de seu pai e não como verdadeiro sujeito activo desse negócio, visando o Réu JOAQUIM esconder do seu cônjuge, de quem se estava a divorciar, tal situação jurídica, sonegando assim o referido andar ao acervo de bens comuns do casal a partilhar.
II – Se é fácil de descortinar a “intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração” e “intuito de enganar terceiros”, já temos sérias dificuldades em detectar um “acordo entre declarante e declaratário (acordo simulatório)”, pois estando nós em presença de um contrato de compra e venda (negócio bilateral ou plurilateral), que exige o consenso de vendedores e comprador, não é possível, em rigor e consciência, presumir que os vendedores do prédio tinham conhecimento das reais intenções do 1.º Réu ou Réus, bem como do verdadeiro papel do Autor nesse negócio, até porque a maneira como o demandado Joaquim organizou as coisas relativamente à fracção dos autos, com a elaboração em data anterior ao negócio em causa, de uma procuração irrevogável e com poderes especiais e latos, que lhe permitia um permanente controlo, acompanhamento e intervenção directa na situação do imóvel, dispensava qualquer pacto simulatório com os titulares originais do direito de propriedade sobre o mesmo.
III – A postura do 1.º Réu pode reconduzir-se antes à reserva mental prevista no artigo 244.º do Código Civil, pois foi emitida uma declaração contrária à vontade real com o intuito de enganar os vendedores e a instituição bancária que concedeu o empréstimo, mas a mesma é irrelevante, dado ignorar-se se os seus destinatários tinham conhecimento dessa divergência declaratória (se disso soubessem, a reserva mental teria os efeitos da simulação).
IV – O demandante radica o seu direito na escritura pública de compra e venda e no correspondente registo predial de tal acto de aquisição.
A presunção (ilídivel - artigo 350.º do Código Civil) constante do artigo 7.º do Código do Registo Predial, porque envolve a prova da titularidade de direitos reais sobre imóveis, matéria nevrálgica nos sistemas jurídicos ocidentais, não se satisfaz, em termos de ilisão, com quaisquer factos ou prova, como ressalta, designadamente, dos artigos 4.º, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º, 16.º e 17.º do mesmo diploma legal e 291.º do Código Civil.
O regime substantivo relativo aos direitos reais é complementado e reforçado pelo sistema e regime jurídico de natureza predial, quer na vertente da publicidade dos mencionados direitos e bens sobre que incidem, como na segurança da titularidade e comércio jurídico desses mesmos direitos, só se concebendo o afastamento da dita presunção em casos de nulidade ou anulabilidade dos respectivos factos constitutivos ou da própria inscrição registral ou em situações de melhor posse (usucapião), em que o registo em causa tem de ceder.
V – O número 2 do artigo 715.º do Código de Processo Civil é muito claro quanto ao dever do tribunal de recurso em conhecer e julgar as questões que, em virtude do sentido da sentença tomada pelo tribunal da 1.ª instância, não foram apreciadas e decididas pelo mesmo, desde que para o efeito possua os elementos necessários.
A norma acima transcrita não faz depender tal procedimento de qualquer pedido formulado nesse sentido pelo recorrente, em sede de alegações e/ou conclusões, muito embora o oportuno julgamento do pedido do Autor identificado sob a alínea c) decorra naturalmente do teor das alegações/conclusões do Apelante.
VI – Tendo sido reconhecido o direito de propriedade do Autor sobre o prédio dos autos e encontrando-se o mesmo privado da sua utilização, desde 9/04/2002 até agora – sendo certo que também esteve privado da posse sobre o mesmo, entre 10/05/1998 e 31/01/2000, tendo aí vivido, conjuntamente com o 1.º Réu, entre 29/02/1996 e a segunda data indicada, vindo a presente acção a dar entrada em juízo em 1/3/1999 –, impõe-se, de acordo com o disposto nos artigos 1305.º e 1311.º a 1315.º do Código Civil, deferir igualmente tal pedido do recorrente.
Os factos dados como provados apontam para uma posse conjunta e/ou simultânea sobre o imóvel dos autos por parte do Autor e do 1.º Réu mas não consta dos autos título jurídico que justifique a ocupação e uso exclusivo, por banda do 1.º Réu, de tal imóvel (arrendamento, comodato, etc.), por forma a obstar à procedência desse pedido do Autor.
(JES)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO

JOSÉ, solteiro, estudante, com residência em Lisboa, propôs, em 01/03/1999, a presente acção declarativa de condenação com a forma de processo ordinário, contra:
1) JOAQUIM, com residência na Amadora;
2) JOÃO, com residência na Parede, pedindo, em síntese, o seguinte:
a) Que seja declarado nulo por decisão judicial o negócio simulado entre os Réus, celebrado por Escritura Pública de 15 de Maio de 1998, no (...) Cartório Notarial de …;
b) Que seja reconhecido ao Autor o seu pleno direito de propriedade em relação à fracção autónoma designada por letra “D” que corresponde ao primeiro andar direito do prédio urbano, sito na Av.…, n.º ..., Amadora, inscrito na matriz predial urbana sob o art.º … e descrito na (...) Conservatória do Registo Predial, sob o n.º …da freguesia da …;
c) Que seja restituída ao Autor a sua casa, devendo o Autor poder habitá-la usar e fruir plenamente, como lhe compete;
d) Que seja comunicado ao Cartório Notarial de … a nulidade da escritura de compra e venda exarada a fls. ... do livro ...;
e) Que seja comunicado à Conservatória do Registo Predial a nulidade do registo, nos termos do disposto no art. 17.º do Código de Registo Predial, bem como a consequente reinscrição da referida fracção em nome do Autor.
(….)
Foi então publicada a sentença de fls. 721 a 736, datada de 8/09/2008, onde, em síntese, se decidiu o seguinte:
“Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, consequentemente, declaro nulo, por simulação, o contrato de compra e venda cujo objecto é o imóvel identificado no ponto 2) da Matéria de Facto Provada, formalizado por escritura pública, datada de 15/05/98, outorgada no Cartório Notarial de … e, em conformidade, ordeno o cancelamento do registo de transmissão do imóvel efectuado a favor de João e quaisquer outros posteriormente levados a efeito.
Custas pelo Autor e pelos Réus, na proporção de 2/3 e 1/3 respectivamente (artigo 446.º do Código de Processo Civil).
Registe e notifique.
*
O Autor, inconformado com tal decisão, veio, a fls. 740 e em 22/12/2008, interpor recurso de apelação da mesma.
(…)
Deu-se oportuno cumprimento ao disposto no artigo 715.º, número 2 do Código de Processo Civil, com a audição prévia das partes relativamente ao possível julgamento do terceiro pedido formulado pelo Autor (alínea c), tendo as mesmas vindo pronunciar-se nos moldes constantes de fls. 794 e segs. (Autor) e fls. 814 e segs. (Réus), entendendo estes, ao contrário daquele, que estás vedado a este tribunal de recurso o conhecimento e julgamento do referido pedido deduzido pelo Autor.

II – OS FACTOS

1. Em 28/12/95 o Autor outorgou a favor do seu pai, 1.º Réu, uma procuração nos termos da qual lhe confere os poderes necessários, com referência à fracção acima mencionada, para praticar os seguintes actos:
“a) Prometer comprar e comprar, pelo preço, cláusulas e demais condições que entender convenientes, pagar o preço e receber a correspondente quitação;
b) Prometer vender e/ou vender, pelo preço e demais condições que entender, receber o preço da venda e dele dar a correspondente quitação;
c) Na Conservatória do Registo Predial respectiva requerer registos provisórios e definitivos, averbamentos e cancelamentos, incluindo declarações complementares;
d) Contrair um empréstimo ao abrigo do Regime de Crédito Bonificado, junto de qualquer instituição bancária, dando de hipoteca a indicada fracção;
e) Na Repartição de Finanças respectiva proceder ao pagamento de quaisquer contribuições ou impostos, requerendo isenções, reclamando dos indevidos ou excessivos, receber títulos de anulação e as suas correspondentes importâncias, apresentar quaisquer declarações ou requerimentos;
Podendo para os fins indicados, outorgar e assinar escrituras, contratos de promessa e recibos de sinal, e requerer e assinar tudo o mais que necessário se torne.
O mandatário poderá celebrar negócio consigo próprio, nos termos do artigo 261.º do Código Civil e, substabelecer os poderes ora conferidos, uma ou mais vezes, no todo ou em parte.
A presente procuração é irrevogável, por também ser conferida no interesse do mandatário, pelo que não poderá ser revogada sem o consentimento deste, salvo ocorrendo justa causa, nem caduca por morte, interdição ou inabilitação do mandante, nos termos dos art. 265.º n.º 3 e 1175.º do Código Civil(Alínea A)
2. Por escritura pública outorgada em 29/02/96 o Autor, representado pelo 1.º Réu, através da acima referida procuração, declarou adquirir, pelo preço de Esc. 10.000.000$00, a fracção autónoma designada pela letra “D” que corresponde ao 1.º Direito do prédio urbano, sito na Amadora, inscrita na matriz predial urbana sob o art.º … e descrita na ... Conservatória do Registo Predial da … sob o n.º … da freguesia da (....) – (...), e ajustou um contrato de empréstimo com a Caixa..., para garantia do integral cumprimento das suas obrigações constituindo a favor desta instituição bancária hipoteca sobre a mesma fracção. (Alínea B)
3. O 2.º Réu, JOÃO, outorgou esta escritura na qualidade de fiador. (Alínea C)
4. A aquisição pelo Autor referida em 2., mostra-se inscrita pela Apresentação .... (Alínea D)
5. O 1.º Réu celebrou um contrato promessa de compra e venda da referida fracção com o 2.º Réu. (Alínea E)
6. Por escritura pública outorgada em 15/05/98 o Autor, representado pelo 1.º Réu através da acima referida procuração, declarou vender a fracção identificada em 2., ao 2.º Réu, que declarou comprá-la, pelo preço de Esc. 12.000.000$00, já recebido. (Alínea F)
7. Esta aquisição a favor do 2.º Réu mostra-se inscrita pela Apresentação ..... (Alínea G)
8. No dia 10/05/98, o Autor viu-se impedido de entrar na fracção em causa uma vez que havia sido mudada a fechadura da porta. (Alínea H)
9. O Autor instaurou a providência cautelar de restituição provisória da posse n.º .... que correu termos no ... Juízo, ... Secção, tendo sido proferida decisão transitada em julgado a julgar procedente a mesma. (Alínea I)
10. O tribunal procedeu à restituição da fracção ao Autor em 31/01/00. (Alínea J)
11. O 1.º Réu deduziu oposição nesses autos tendo sido proferida decisão transitada em julgado no sentido de se proceder ao levantamento da providência decretada. (Alínea L)
12. O Tribunal procedeu à entrega da fracção ao 1.º Réu em 09/04/02. (Alínea M)
13. O Autor viveu na casa referida em 2., desde a sua compra em 29/02/96, até ao momento referido em 8. (Quesito 1.º)
14. O contrato promessa a que se alude em 5., foi celebrado sem conhecimento do Autor. (Quesito 5.º)
15. O Autor não deu autorização ao referido em 6. (Quesito 6.º)
16. O 2.º Réu não quis comprar a fracção em causa. (Quesito 8.º)
17. Ele não passou a habitar a fracção em causa. (Quesito 9.º)
18. Vive na Rua do …, Parede. (Quesito 10.º)
19. O 1.º Réu, até 03/12/97, pagou as prestações relativas ao empréstimo da casa. (Quesito 13.º)
20. Nenhum dos Réus comunicou ao Banco a venda referida em 6. (Quesito 15.º)
21. O 2.º Réu não entregou ao 1.º Réu a quantia de Esc. 12.000.000$00. (Quesito 17.º)
22. O Autor não assumiu a obrigação de proceder ao pagamento do preço referido em 2. (Quesito 18.º)
23. A fracção nunca foi entregue ao Autor. (Quesito 19.º)
24. A fracção foi adquirida pelo 1.º Réu em nome do Autor. (Quesito 20.º)
25. Com recurso ao crédito também em nome do Autor. (Quesito 21.º)
26. Foi o 1.º Réu que pediu ao 2.º Réu e sua mulher para serem os fiadores (Quesito 22.º)
27. A fracção foi entregue pelos anteriores proprietários ao 1.º Réu. (Quesito 23.º)
28. O Autor trabalhou esporadicamente. (Quesito 24.º)
29. O Autor não tinha rendimentos próprios. (Quesito 25.º)
30. O referido em 24., deveu-se à situação de litígio que o 1.º Réu mantinha com a ainda então mulher e mãe do Autor. (Quesito 26.º)
31. Foi esta razão que esteve na origem da outorga da procuração a que se alude em 1. (Quesito 27.º)
32. A residência habitual do 1.º Réu, desde 29/02/96, passou a ser na fracção em causa. (Quesito 28.º)
33. Também nesta fracção passou a viver o Autor. (Quesito 29.º)
34. A escritura outorgada em 15/05/98 foi feita na própria agência da CEMG, em … (Quesito 33.º)
35. O 1.º Réu, para aquisição da fracção em causa despendeu a título de sinal e princípio de pagamento entregou ao vendedor a quantia de Esc. 1.550.000$00 (Quesito 34.º)
36. O 1.º Réu despendeu a título de condomínio, à razão de Esc. 3.000$00/mensais, a quantia de Esc. 75.000$00 (Quesito 39.º)
37. Também o 2.º Réu tem vindo a pagar as prestações ao MG resultantes do mútuo contraído em nome do Autor, desde que adquiriu a fracção ao 1.º Réu, as quais totalizam até à presente data a quantia de Esc. 1.206.016$00. (Quesito 41.º)
(…)
III – O DIREITO

É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 690.º e 684.º n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660.º n.º 2 do Código de Processo Civil).
(…)
D – OBJECTO DO RECURSO
Chegados aqui, abordemos o objecto do presente recurso, na sua vertente jurídica, para dizer que o recorrente contesta a qualificação jurídica efectuada pelo tribunal da 1.ª instância relativamente à situação subjacente ao primeiro contrato de compra e venda dos autos, pois entende que não estão reunidos todos os requisitos legais da simulação.
O instituto em questão mostra-se essencialmente previsto nos artigos 240.º a 243.º do Código Civil, que tem a seguinte redacção:
(…)
Carlos Alberto Mota Pinto em “Teoria Geral do Direito Civil”, Coimbra Editora, 1976, páginas 357 e seguintes, entende como elementos integradores do conceito de simulação, face ao teor do artigo 240.º e à orientação da doutrina tradicional, os seguintes:
“a) Intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração;
b) Acordo entre declarante e declaratário (acordo simulatório), o que evidentemente, não exclui a possibilidade de simulação nos negócios unilaterais;
c) Intuito de enganar terceiros”.
Importa também ter presente a distinção entre simulação absoluta e simulação relativa, fingindo as partes na primeira, segundo o mesmo autor, “celebrar um negócio jurídico e na realidade não querem nenhum negócio jurídico. Há apenas o negócio simulado e por detrás dele, nada mais”, ao passo que na segunda, as mesmas partes “fingem celebrar um certo negócio jurídico e na realidade querem um outro negócio jurídico de tipo ou conteúdo diverso. (…) Por detrás do negócio simulado ou aparente ou fictício ou ostensivo há um negócio dissimulado ou real ou latente ou oculto”.
Acerca da simulação relativa e das modalidades de que pode revestir, fala Mota Pinto da simulação subjectiva ou dos sujeitos e da simulação objectiva ou sobre o conteúdo do negócio, dizendo, quanto ao primeiro tipo, que “podem ser desde logo, simulados os sujeitos do negócio jurídico, mais frequentemente um apenas. (…) – consultar, também, acerca destas matérias, Pedro Pais de Vasconcelos, “Teoria Geral do Direito Civil”, 5.ª Edição, 2008, Almedina, páginas 682 e seguintes.
Ora, tendo estas noções jurídicas como pano de fundo e olhando para os factos dados como provados nos pontos 1.º, 2.º, 8.º, 13.º, 19.º, 22.º a 33.º e 37.º da factualidade dada como assente, afigura-se-nos relativamente pacífico que o contrato de compra e venda firmado em 29/02/1996 foi formal e aparentemente celebrado entre o Autor, na qualidade de pretenso comprador, e os donos do prédio, na qualidade de efectivos vendedores, quando, na verdade, foi o 1.º Réu que adquiriu o imóvel em questão, figurando o Autor como mero “testa de ferro” ou “homem de palha” (no dizer da doutrina) de seu pai e não como verdadeiro sujeito activo desse negócio, visando o Réu JOAQUIM esconder do seu cônjuge, de quem se estava a divorciar, tal situação jurídica, sonegando assim o referido andar ao acervo de bens comuns do casal a partilhar.
Encontrar-nos-emos, face a tal cenário, perante uma simulação relativa e subjectiva, conforme acima equacionada?
Se é fácil de descortinar a “intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração” e “intuito de enganar terceiros”, já temos sérias dificuldades em detectar um “acordo entre declarante e declaratário (acordo simulatório)”, pois estando nós em presença de um contrato de compra e venda (negócio bilateral ou plurilateral), que exige o consenso de vendedores e comprador, não ressalta, com suficiente nitidez da factualidade provada que tenha havido uma concertação simulatória entre os transmitentes do andar e o 1.º Réu (ou ambos os Réus), não sendo esta conclusão infirmada pelos pontos 24 e 25 da matéria de facto (inconclusivos quanto a esse aspecto) ou pela circunstância dos primeiros terem entregue o prédio ao pai do Autor e não a este último, dada a existência da procuração emitida pelo Apelante ao seu progenitor, com poderes jurídicos amplos, que legitimava, como já tinha acontecido com a própria celebração do contrato de compra e venda, essa actuação de uns e outro.
Não é possível, em rigor e consciência, presumir que os vendedores do prédio tinham conhecimento das reais intenções do 1.º Réu ou Réus, bem como do verdadeiro papel do Autor nesse negócio, até porque a maneira como o demandado JOAQUIM organizou as coisas relativamente à fracção dos autos, com a elaboração em data anterior ao negócio em causa, de uma procuração irrevogável e com poderes especiais e latos, que lhe permitia um permanente controlo, acompanhamento e intervenção directa na situação do imóvel, dispensava qualquer pacto simulatório com os titulares originais do direito de propriedade sobre o mesmo.
A postura do 1.º Réu pode reconduzir-se antes à reserva mental prevista no artigo 244.º do Código Civil, pois foi emitida uma declaração contrária à vontade real com o intuito de enganar os vendedores e a instituição bancária que concedeu o empréstimo, mas a mesma é irrelevante, dado ignorar-se se os seus destinatários tinham conhecimento dessa divergência declaratória (se disso soubessem, a reserva mental teria os efeitos da simulação).
Pensamos quase inútil referir que não nos achamos perante um negócio unilateral (quanto a tal noção, cf. Pedro Pais de Vasconcelos, obra citada, páginas 439 e seguintes) que, atendendo somente à posição simulatória do 1.º Réu (ou Réus), nos permitisse qualificar a compra e venda em análise ainda como negócio simulado, na sua modalidade relativa e subjectiva.
Negócio unilateral é a procuração emitida pelo Autor a favor do 1.º Réu (artigos 262.º e seguintes do Código Civil), podendo quanto a ela ser eventualmente equacionada uma intenção fraudulenta e simulada na sua emissão, por lhe estar subjacente uma razão e finalidade substancialmente diferente das declaradas, numa situação próxima da decidida pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08/07/2008, processo n.º 2862/2008-1, relatora: Alexandrina Branquinho, em www.dgsi.pt, dizendo o respectivo sumário, na parte que interessa: “I – Salvo prova em contrário, presumir-se-á simulado o mandato com poderes de alienação de bens quando se estabelecer, para o caso de ser revogado, uma indemnização de importância aproximada ao valor desses bens, ou quando o mandatário ficar dispensado de dar contas do preço por que os vender.”.
Tal problemática, contudo, não pode ser apreciada por este Tribunal da Relação de Lisboa, não só por extravasar, manifestamente, o objecto deste recurso (como, aliás, da própria acção, pois a génese, validade e eficácia jurídicas originárias de tal procuração não são minimamente contestadas pelas partes), como ainda porque os factos dados como provados são manifestamente insuficientes para consubstanciar tal hipotética simulação do mandato conferido pelo Autor ao 1.º Réu.
Os Réus não alegaram nem lograram provar, como lhes competia, face ao disposto, respectivamente, nos artigos 264.º, número 1 e 467.º do Código de Processo Civil e 342.º e seguintes do Código Civil, todos os factos integradores dos pressupostos dos institutos da simulação ou da reserva mensal juridicamente relevante.
Chegados aqui, tendo o tribunal recorrido se fundado na simulação do primeiro contrato de compra e venda para negar ao Autor a procedência do seu primeiro pedido, haverá que alterar a sentença nessa parte e reconhecer a titularidade do direito de propriedade na esfera jurídica do Apelante?
O demandante radica o seu direito na escritura pública de compra e venda e no correspondente registo predial de tal acto de aquisição, que, nos termos do artigo 7.º do Código do Registo Predial, faz presumir que “o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.
Definindo-se tal presunção como ilidível, nos termos do artigo 350.º, número 2 do Código Civil (cf. Luís António Carvalho Fernandes, “Lições de Direitos Reais”, 3.ª Edição, Quid Júris, páginas 122 a 124), resta-nos saber se os factos assentes e identificados sob os pontos 1.º, 2.º, 8.º, 13.º, 19.º, 22.º a 33.º e 37.º possuem a virtualidade de ilidir, em conjunto com os documentos juntos aos autos, tal presunção adveniente do registo (cf., ainda a este respeito, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 30/06/1992, processo n.º 0026901, relator: Correia de Sousa, de 29/01/1992, processo n.º 0646316, relator: Joaquim de Matos, de 24/10/1995, processo n.º 0095441, relator: Araújo Cordeiro e de 12/03/2009, processo n.º 38/06.4TBSSB.L1, relatora: Teresa Prazeres Pais, todos em www.dgsi.pt).
Acerca das presunções legais, Rui Manuel de Freitas Rangel, “O ónus da prova no processo civil”, Almedina, Janeiro de 2000, páginas 215 e seguintes afirma o seguinte (página 220): “Resulta assim, do art.º 350.º, n.º 1 do Código Civil que, havendo uma presunção legal, provar o facto que serve de base à presunção equivale a provar o facto presumido. Daí que sempre que exista uma presunção legal a favor da pretensão de alguma das partes em litígio, incumbe a essa parte apenas alegar e provar o facto que serve de base à presunção. À con­traparte incumbe, se pretender destruir a prova feita através de prova da presunção, fazer a prova do contrário ou do facto que serve de base à pre­sunção legal ou do próprio facto presumido. Se a parte contrária conseguir demonstrar uma das duas situações enumeradas, compete à parte favo­recida com a presunção legal o ónus da prova de rebater essa prova do contrário”.
A presunção constante do artigo 7.º do Código do Registo Predial, porque envolve a prova da titularidade de direitos reais sobre imóveis, matéria nevrálgica nos sistemas jurídicos ocidentais, não se satisfaz, em termos de ilisão, com quaisquer factos ou prova, como ressalta, designadamente, dos artigos 4.º, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º, 16.º e 17.º do mesmo diploma legal e 291.º do Código Civil.
Rui Rangel, obra citada, página 220, nota 344, afirma o seguinte: “no caso do artigo 7.º, do Código do Registo Predial o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe, pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo o definir. O registo definitivo do direito origina, nestes termos uma presunção de propriedade ilídivel através da prova de posse mais antiga” (refere, a propósito, o Professor Antunes Varela, em RLJ, 122.º, páginas 217 e 218 e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19/07/1968, em BMJ 179,170 e de 17/05/1968 em BMJ 177, 247).
A Dr.ª Isabel Pereira Mendes, em “Código do Registo Predial Anotado”, 1990, Almedina, página 43, em anotação ao artigo 7.º, defende que”se o facto inscrito assentar em negócio nulo ou anulável, ou se o registo enfermar, ele próprio, de nulidade (art.º 16.º) a presunção legal poderá ser afastada, a não ser que a existência de aquisição posterior, a favor de subadquirente a título oneroso e de boa fé, o impeça”. (cfr. também a mesma autora, em “Estudos sobre Registo Predial”, Almedina, Novembro de 1999, páginas 43 a 68, com especial relevância para os princípios que norteiam o nosso sistema público registral e para as implicações decorrentes da presunção do aludido artigo 7.º)
Também no sentido da ilisão da presunção do artigo 7.º do Código do Registo Predial só se poder sustentar na inexistência ou a invalidade do título de aquisição, a demonstrar em acção judicial (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/02/2007, processo n.º 8472/2006-1, relator: Carlos Moreira) ou por via da aquisição originária da propriedade, através da usucapião vão os seguintes Arestos do mesmo tribunal superior, de 4/11/2003, processo n.º 9383/2003-6, relator: Granja da Fonseca, de 8/11/2002, processo n.º 8187/2007-6, relator: Olindo Geraldes, de 13/12/2007, processo n.º 7382/2007-1, relator: João Aveiro Pereira e de 5/5/2009, processo 427/04.9TCFUN.L1-7, relator: Abrantes Geraldes, todos em www.dgsi.pt.
O regime substantivo relativo aos direitos reais é complementado e reforçado pelo sistema e regime jurídico de natureza predial, quer na vertente da publicidade dos mencionados direitos e bens sobre que incidem, como na segurança da titularidade e comércio jurídico desses mesmos direitos, só se concebendo o afastamento da dita presunção em casos de nulidade ou anulabilidade dos respectivos factos constitutivos ou da própria inscrição registral ou em situações de melhor posse (usucapião), em que o registo em causa tem de ceder.
Realce-se que o primeiro contrato de compra e venda, atendendo aos factos dados como provados, aos documentos juntos aos autos e à apreciação que fizemos de tais questões, não se mostra atingido por uma qualquer divergência bilateral ou unilateral entre a vontade real e a declarada, que acarrete a sua invalidade ou ineficácia jurídicas.
Logo, facilmente se conclui que a factualidade assente, na sua singeleza ou em conjugação com os documentos juntos aos autos, não é de molde a ilidir a presunção em causa.
Não se ignora que muitos desses factos apontam no sentido de um qualquer acordo entre o Autor e o 1.º Réu, que possibilitou a emissão da procuração e as subsequentes aquisição e contracção do mútuo, por parte do Réu JOAQUIM, em nome e representação do primeiro, bem como se verifica que este não tinha suficientes meios de subsistência nem nunca demonstrou vontade e disponibilidade para pagar o correspondente preço ao pai, sendo certo que havia um interesse pessoal do 1.º Réu em não aumentar o seu património pessoal e familiar com bens, mas esse quadro fáctico não é susceptível, em nosso entender, de afastar a presunção legal do artigo 7.º do Código do Registo Predial (até porque permite outras leituras e cenários, compatíveis com a titularidade do imóvel na pessoa do Autor).
Os pontos 24 e 25 da factualidade assente possuem um sentido algo ambíguo, sendo defensável, para além da interpretação que fazemos e que os reconduz ao que já se acha reflectido na escritura pública de compra e venda de 1996, uma outra leitura mais arrojada, que passa pela afirmação de que foi o pai do Autor que comprou o andar e obteve o correspondente crédito bancário, embora usando ficticiamente o nome do filho, mas, ainda que se aceite esse teor, alcance e sentido dos factos em análise, estes só poderiam ter relevância no âmbito de uma simulação relativa ou numa reserva mental, perdendo todo o seu impacto, a partir do momento em que qualquer desses institutos não têm reflexos jurídicos na validade e eficácia daquele negócio, como já deixámos analisado.
Face à conclusão extraída, torna-se despiciendo analisar as questões suscitadas no recurso acerca das consequências jurídicas da não declaração do direito de propriedade na esfera jurídica do Autor e do inerente vazio jurídico criado relativamente à titularidade do andar, muito embora discordemos da tese defendida, face ao que a nossa doutrina mais conceituada refere acerca dos efeitos da nulidade do negócio simulado e das circunstâncias em que o negócio dissimulado pode emergir e manter-se, no âmbito da simulação relativa (cf. autores, obras e locais citados).
O tribunal da 1.ª instância, devido à improcedência dessa pretensão do Autor, absteve-se de se pronunciar acerca do pedido do mesmo traduzido no seguinte: “c) Que seja restituída ao Autor a sua casa, devendo o Autor poder habitá-la usar e fruir plenamente, como lhe compete”.
Ora, tendo em atenção o estatuído no artigo 715.º, número 2 do Código de Processo Civil e tendo sido já dado cumprimento ao número 3 desse mesmo dispositivo legal, com a audição prévia das partes, impõe-se que este tribunal de recurso conheça dessa última pretensão do Apelante.
Os Réus defendem que está vedado a este Tribunal da Relação de Lisboa lançar mão do mecanismo adjectivo previsto no número 2 do artigo 715.º do Código de Processo Civil, mas este dispositivo legal é muito claro quanto ao dever do tribunal de recurso em conhecer e julgar as questões que, em virtude do sentido da sentença tomada pelo tribunal da 1.ª instância, não foram apreciadas e decididas pelo mesmo, desde que para o efeito possua os elementos necessários: “Se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhecerá no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.”
A norma acima transcrita não faz depender tal procedimento de qualquer pedido formulado nesse sentido pelo recorrente, em sede de alegações e/ou conclusões, muito embora o oportuno julgamento do pedido do Autor identificado sob a alínea c) decorra naturalmente do teor das alegações/conclusões do Apelante. (cf., neste sentido, Fernando Amâncio Ferreira, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 6.ª Edição, Almedina, Setembro de 2005, páginas 230 e 231, J.O. Cardona Ferreira, “Guia de Recursos em Processo Civil”, 3.ª Edição, Coimbra Editora, Junho de 2005, página 95 e “Guia de Recursos em Processo Civil – o novo regime recursório civil”, 4.ª Edição, Coimbra Editora, Novembro de 2007, página 167 e António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil – novo regime”, Almedina, Dezembro de 2007, páginas 305 e seguintes, em anotação ao artigo 715.º).
Logo, não vislumbramos qualquer nulidade ou ilegalidade na análise e decisão de tal pretensão, em sede do presente Aresto.
Pensamos que, tendo sido reconhecido o direito de propriedade do Autor sobre o prédio dos autos e encontrando-se o mesmo privado da sua utilização, desde 9/04/2002 até agora – sendo certo que também esteve privado da posse sobre o mesmo, entre 10/05/1998 e 31/01/2000 (cf. pontos de facto 8, 9, 10, 11, 12 e 33), tendo aí vivido, conjuntamente com o 1.º Réu, entre 29/02/1996 e a segunda data indicada, vindo a presente acção a dar entrada em juízo em 1/3/1999 –, impõe-se, de acordo com o disposto nos artigos 1305.º e 1311.º a 1315.º do Código Civil, deferir igualmente tal pedido do recorrente.
Dir-se-á que os factos dados como provados apontam para uma posse conjunta e/ou simultânea sobre o imóvel dos autos por parte do Autor e do 1.º Réu mas não consta dos autos título jurídico que justifique a ocupação e uso exclusivo, por banda do 1.º Réu, de tal imóvel (arrendamento, comodato, etc.), por forma a obstar à procedência desse pedido do Autor.
Sendo assim, o presente recurso de apelação tem de ser julgado procedente na sua perspectiva jurídica, com a revogação da sentença nessa parte e sua substituição pelo reconhecimento da titularidade do direito de propriedade sobre o prédio dos autos na pessoa do Autor.

IV – DECISÃO
Por todo o exposto, nos termos dos artigos 713.º e 715.º, número 2 do Código de Processo Civil, acorda-se neste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o presente recurso de apelação interposto JOSÉ e, nessa medida, revogar a sentença recorrida no que concerne à improcedência do segundo pedido formulado pelo Autor e conhecer-se do terceiro pedido deduzido, decidindo-se, consequentemente, o seguinte:
“Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, consequentemente:
a) Declaro nulo, por simulação, o contrato de compra e venda cujo objecto é o imóvel identificado no ponto 2) da Matéria de Facto Provada, formalizado por escritura pública, datada de 15/05/98, outorgada no 1.º Cartório Notarial de … e, em conformidade, ordeno o cancelamento do registo de transmissão do imóvel efectuado a favor de João e quaisquer outros posteriormente levados a efeito.
b) Reconhecer ao Autor o direito de propriedade em relação à fracção autónoma designada por letra “D” que corresponde ao primeiro andar direito do prédio urbano, sito na Amadora, inscrito na matriz predial urbana sob o art.º … e descrito na primeira Conservatória do Registo Predial da Amadora, sob o n.º …da freguesia da …;
c) Ordenar a restituição ao Autor do prédio identificado na alínea anterior, devendo o Autor poder habitá-la, usá-la e fruía-la plenamente.
Custas a cargo dos Réus (artigo 446.º do Código de Processo Civil).”
*
Custas a cargo dos Apelados.
Registe e notifique.
Lisboa, 1 de Outubro de 2009
(José Eduardo Sapateiro)
(Teresa Soares)
(Rosa Barroso)