Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
778/2005-6
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: DIREITOS DE AUTOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/17/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: As obras de arquitectura criadas por uma pluralidade de pessoas, organizadas por iniciativa de certo atelier (empresa) e divulgadas em seu nome, correspondem as obras colectivas, pertencendo o direito de autor ao dono do atelier.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:


I. RELATÓRIO

(A) instaurou, em 30 de Setembro de 2002, na 17.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, contra (D), (P) e (M), acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo, designadamente, que fosse reconhecido como o autor da concepção global e do projecto do hotel e dos bungalows da Balaia, do edifício Castil, da loja e da fábrica de discos Valentim de Carvalho e os RR. condenados a publicar na revista Prototypo, com o necessário relevo, a rectificação da qual conste explicitamente esse reconhecimento.
Para tanto, alegou, em síntese, a referida criação arquitectónica, sucedendo que a revista mencionada, dirigida e editada pelos dois primeiros RR., publicou, em Novembro de 2000, um extenso artigo do 3.º R. sobre o arquitecto (C), a quem atribuiu a paternidade das referidas obras.
Contestaram os RR., que, impugnando os factos, concluíram pela improcedência da acção.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 7 de Junho de 2004, a sentença, julgando-se a acção totalmente improcedente.

Inconformado, o Autor apelou da sentença e, vindo a alegar, extraiu, no essencial, as seguintes conclusões:

a) A autoria dos projectos de arquitectura relativos às obras referidas é atribuída ao apelante, mencionando-se em alguns casos o atelier (C), mas nunca apenas este.
b) No artigo publicado, a paternidade daquelas obras é atribuída apenas ao arquitecto (C).
c) As obras de arquitectura e os respectivos projectos estão compreendidos na tutela do direito de autor, na sua dupla vertente patrimonial e pessoal.
d) Considera-se autor dessas obras o criador da sua concepção global e respectivos projectos.
e) Uma obra de arquitectura em cujo processo criativo participaram várias pessoas pode qualificar-se como obra colectiva ou de obra de colaboração.
f) As obras em referência, em cuja concepção global e processo de criação o apelante teve uma participação preponderante, foram divulgadas quer em nome dele quer do atelier (C), neste último caso com referência àquele.
g) Configuram-se, assim, como obras de colaboração, qualificação mais apropriada que a de obras colectivas.
h) É, por isso, indiferente que não possa discriminar-se o contributo individual do apelante para essas obras.
i) Ao omitir-se o nome do apelante, quanto à autoria dessas obras, foi violado o seu direito à respectiva paternidade, que é inalienável, irrenunciável e imprescritível.
j) Toda a violação de um direito, nomeadamente por omissão, dá lugar à reparação do dano dela emergente.
k) In casu, essa reparação deverá consistir na rectificação do erro.

Pretende o apelante, com o provimento do recurso, a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por decisão que lhe reconheça a “participação preponderante na concepção global e no processo de criação dos projectos das obras arquitectónicas referidas” e a condenação dos RR. a “publicar na revista Prototypo, com o necessário relevo, uma rectificação da qual conste explicitamente esse reconhecimento”.

Contra-alegaram os RR., no sentido de ser negado provimento à apelação.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Neste recurso, está essencialmente em discussão a autoria da criação de certos projectos de arquitectura e a sua protecção, nomeadamente em publicações periódicas.

II. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Foram dados como provados os seguintes factos:

1. O A. é um dos mais conhecidos e prestigiosos arquitectos portugueses, sendo publicamente conhecido.
2. A sua vasta obra é admirada e estudada dentro e fora do País.
3. A sua obra e importância, na arquitectura contemporânea, é mencionada em publicações de referência, na área da arquitectura, por autores nacionais e estrangeiros.
4. O A. granjeou, na década de 80 do século XX, prestígio académico ou crítico enquanto protagonista do chamado pós-modernismo.
5. Entre as suas criações mais relevantes, podem mencionar-se os complexos habitacionais das Olaias e de Chelas, a Central de Camionagem do Areeiro, os Edifícios Satélite, D. Carlos I, Banco Nacional Ultramarino, na Av. 5 de Outubro, e as Torres das Amoreiras.
6. O hotel e os bungalows da Balaia, em Albufeira, o edifício Castil, em Lisboa, a loja e a fábrica de discos de Valentim de Carvalho, em Cascais e Paço d` Arcos, foram concebidos e projectados entre 1965 e 1972.
7. O A. teve participação preponderante na concepção global e no processo de criação dos projectos de arquitectura dessas obras.
8. Entre 1965 e 1972, o A. trabalhava no atelier do arquitecto (C), integrado na respectiva equipa.
9. No n.º 4 da revista Prototypo, referente ao mês de Novembro de 2000, que o 1.º e 2.º RR., dirigem e editam, o 3.º R. publicou, de páginas 39 a 69, um artigo sobre o arquitecto (C), em que a paternidade das obras referidas em 6. é atribuída a este último.
10. Nesse artigo, afirma-se, na página 57, que “em 1965, (C) projecta a fábrica de discos para a editora Valentim de Carvalho”, na 59, referindo-se ao conjunto da Balaia, diz-se que este “confirma a aproximação de (C) ao espírito anglo-saxónico”, na 69, nas indicações bibliográficas, indica-se o mesmo arquitecto como autor dos projectos do Hotel da Balaia, da Loja Valentim de Carvalho, em Cascais, e do Edifício Castil.
11. Esse artigo é ilustrado por imagens, na página 48, da fábrica Valentim de Carvalho e da sua construção, e na 50,52 e 54, do Hotel da Balaia.
12. Na revista “Arquitectura”, n.º 108, Lisboa, Abril de 1969, em texto indicado como sendo subscrito pelo A., é referido que o Hotel Balaia é imputado ao atelier (C) e (V), sendo o projecto de arquitectura do A. e tendo como colaborador o arquitecto (O); quanto às moradias da Balaia é referido que o arquitecto foi o A.; quanto à loja de discos de Cascais, fazendo-se menção expressa ao atelier (C), indica-se, como arquitecto, o A.; no livro “A Arte em Portugal no Século XX”, 1985, escrito por (F), num quadro cronológico de factos artísticos relativos ao ano de 1970, ficou escrito como facto relevante: “Atelier (C), proj. de (A) – Hotel Balaia (Algarve)”; relativamente ao ano de 1973, ficou escrito “Atelier (C), proj. (A), edifício Castil”, no livro “(A) – Arquitectural Works and Designs”, Londres, 1990, que teve como fonte o próprio A., as obras referidas em 6. são descritas como sendo da autoria do A.
13. O 3.º R. é doutorado em arquitectura e é autor de diversos ensaios e estudos sobre teoria e crítica de arquitectura e tem ainda exercido funções de docente em estabelecimentos universitários.

2.2. Delimitada a matéria de facto, que não vem impugnada, importa agora passar a conhecer o objecto do presente recurso, circunscrito pelas respectivas conclusões, e cuja questão jurídica emergente foi já posta em relevo.
As criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, exteriorizadas, constituem obras protegidas, incluindo-se na protecção os direitos dos respectivos autores.
O direito de autor nacional, com codificação autónoma desde 1927, começou por ser impulsionado, no século XIX, por Almeida Garrett (Jurisconsultos Portugueses do Século XIX, Volume II, pág. 195), e tem vindo a ganhar cada vez mais uma importância crescente.
As referidas criações do espírito compreendem, entre muitas, as “obras de arquitectura” e os “projectos, esboços e obras plásticas respeitantes à arquitectura”, como decorre, especificamente, do disposto nas alíneas g) e l) do n.º 1 do art.º 2.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC).
O mesmo Código define que o “autor de obra de arquitectura, de urbanismo ou design é o criador da sua concepção global e respectivo projecto” (art.º 25.º )
A obra de arquitectura, como realça o Prof. Oliveira Ascenção, corresponde a uma “realidade incorpórea, incarnada ou não na construção” (Direito Civil - Direito de Autor e Direitos Conexos, 1992, pág. 499).

Já se aludiu a quem o CDADC atribui o direito de autor da obra de arquitectura. O problema da sua paternidade, no entanto, pode surgir, quando a respectiva criação é resultado de uma pluralidade de pessoas.
Para esse efeito, a nossa lei, ao contrário de outras, como a da Alemanha, fez, então, uma importante distinção entre, por um lado, a obra de colaboração, isto é, quando é divulgada ou publicada em nome dos colaboradores ou de alguns deles, quer possam discriminar-se quer não os contributos individuais, e, por outro, a obra colectiva, ou seja, quando é organizada por iniciativa de entidade singular ou colectiva e divulgada ou publicada em seu nome (art.º 16.º, n.º 1).
Este critério de classificação, considerado até inseguro por certa doutrina, é compreensível à luz da noção de empresa, e, por isso, a obra colectiva é aquela que resulta da actividade duma empresa.
Na verdade, é a esta que a lei se reporta, quando alude à obra “organizada por iniciativa de entidade singular ou colectiva e divulgada e publicada em seu nome” (J. Oliveira Ascensão, ibidem, pág. 123).

A noção de empresa, que pode ser tomada sob diversas acepções, é entendida como um “conjunto concatenado de meios materiais e humanos, dotados de uma especial organização e de uma direcção, de modo a desenvolver uma actividade segundo regras de racionalidade económica” (A. Menezes Cordeiro, Manual de Direito Comercial, I Volume, 2001, págs. 233 e 234).
Nesta perspectiva, a empresa pode ser equiparada a uma pessoa que exerce uma actividade económica, designadamente de produção de serviços, ficando reduzida, por isso, à própria pessoa daquele que organiza e conduz a respectiva actividade (Miguel J. A. Pupo Correia, Direito Comercial, 8.ª Edição, pág. 288).
Na noção de empresa, para além da organização, da direcção e do elemento material, sobressai, também, o elemento humano, que congrega todos os seus colaboradores, desde os trabalhadores aos donos.

Depois de especificado o conceito legal de obra colectiva e determinada também a noção de entidade organizadora e divulgadora da obra em seu nome, importa agora confrontar a materialidade que emerge dos presentes autos.
Na verdade, as obras de arquitectura em causa foram concebidas e projectadas entre 1965 e 1972, no atelier do arquitecto (C), onde o apelante trabalhava, integrado na respectiva equipa, tendo o mesmo tido uma participação preponderante na sua concepção global e no processo de criação dos seus projectos de arquitectura.
Estes factos, desde logo, permitem excluir do apelante o direito de reivindicação da paternidade (exclusiva) sobre tais obras de arquitectura, pretensão que, expressamente, formulou, quando da proposição da acção.
Por outro lado, tratando-se de obras criadas por uma pluralidade de pessoas, organizadas por iniciativa do atelier do arquitecto (C), e divulgadas em seu nome, as mesmas correspondem a obras colectivas, o que, aliás, se identifica com a qualificação adiantada, desde logo na petição inicial, pelo próprio apelante.
Deste modo, o direito de autor sobre tais obras cabe ao dono do atelier (empresário), sendo irrelevante, para esse efeito, a sua própria participação no acto criador das mesmas obras (J. Oliveira Ascenção, ibidem, pág. 124).
Neste âmbito, da mesma forma que ninguém ousa retirar a Miguel Ângelo a paternidade das obras por si empreendidas, não obstante o recurso a colaboradores, também, no caso vertente, não pode permitir-se a reivindicação da paternidade das obras especificadas, a uma pessoa diferente do responsável pelo atelier que as concebeu, criou e divulgou.
Não obstante a reconhecida participação preponderante do apelante na concepção global e no processo de criação dos projectos de arquitectura das mesmas obras, não se mostra possível, contudo, discriminar a produção em que se traduziu tal participação, como bem se referiu na decisão ora impugnada.
Consequentemente, não se verificando o pressuposto enunciado no n.º 2 do art.º 19.º do CDADC, está arredada a possibilidade de ser atribuído, ao apelante, o direito de autor sobre tais obras como se de obras feitas em colaboração se tratasse.
Neste contexto, não podendo reconhecer-se, ao apelante, o direito de autor sobre as obras mencionadas, não lhe assiste o direito de reivindicar a sua paternidade, excluindo-se, por isso, que a acção pudesse ter sido julgada procedente, ainda que somente com o alcance mais restrito que se pretendeu conferir ao recurso.

Sendo assim, o artigo publicado na revista Prototypo, no mês de Novembro de 2000, sobre o arquitecto (C), não enferma de ilicitude, por alegada violação do direito de autor do apelante.

2.3. Em face de tudo quanto se deixa descrito, resta apenas concluir que, no essencial, não relevam as conclusões da apelação.
Por isso, sendo caso para confirmar a sentença recorrida, por estar em conformidade com a respectiva lei aplicável, só pode negar-se o pretendido provimento ao recurso.

2.4. O recorrente, ao ficar vencido por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art.º 446.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil.


III. DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

1) Negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

2) Condenar o recorrente no pagamento das respectivas custas.

Lisboa, 17 de Fevereiro de 2005
(Olindo dos Santos Geraldes)
(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)