Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1815/2006-1
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: SENTENÇA
FUNDAMENTAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/09/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: SENTENÇA CONFIRMADA
Sumário: 1. A decisão judicial não pode constituir um acto arbitrário, mas sim a concretização da vontade abstracta da lei a cada caso particular, consideradas as suas especificidades.
2. Assim, a imposição legal de fundamentação das decisões judiciais prende-se com a necessidade de assegurar a sindicância, v.g. através do recurso, de tal desiderato.
3. O que só não é possível de concretizar se houver total falta de fundamentação e não já fundamentação incompleta, deficiente ou errada, casos em que apenas é afectado o mérito da decisão.
4. As razões justificativas das prescrições de curto prazo do art.º 310.º do CC são a da protecção da certeza e segurança do tráfico, a conveniência de se evitarem os riscos, a nível probatório, de uma apreciação judicial a longa distância e obstar que o credor deixe acumular excessivamente os seus créditos, para proteger o devedor da onerosidade excessiva que representaria, muito mais tarde, a exigência do pagamento, procurando-se, assim, obstar a situações de ruína económica.
5. Estes fitos permitem e até exigem que o prazo de prescrição de cinco anos de tal preceito se aplique não só às prestações periodicamente renováveis, nas quais há uma pluralidade de obrigações distintas (porém emergentes de um vínculo fundamental ou relacionadas entre si) que reiteradamente se vão sucedendo no tempo, mas também às situações de uma única obrigação cujo cumprimento é efectivado em prestações fraccionadas.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA


1. Maria … deduziu embargos de executado contra Caixa … .
Invocou a excepção peremptória da prescrição da quantia dada à execução e respectivos juros, põe aplicação do artº 310º al. e) do CC.
Contestou a ré pugnando pela não aplicação de tal segmento normativo á actividade das instituições financeiras SFAC.

Foi proferido saneador–sentença que julgou procedente a invocada excepção e absolveu a embargante do pedido executivo.

2. Inconformada apelou a embargada.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

I- A sentença recorrida é nula, nos termos do disposto no art 668º, nº 1 al b) do CPC, uma vez que se limita meramente a referir, sem justificar, que o instauração de acção executiva a 09 de Janeiro de 1998 contra a embargante não pode consubstanciar interpelação, o que configura a sua falta absoluta de fundamentação.

II- E assim se violou o art 668º, nº 1 al b) do CPC.

III-
IV- Assim, não podia essa sentença ter entendido que às prestações do presente contrato de crédito ao consumo é aplicável o prazo de prescrição quinquenal previsto no art 310º, alíneas d) e e) do CC.

V- Todas as alíneas desse preceito tratam apenas de prestações periodicamente renováveis.

VI- Ao invés, o contrato de crédito ao consumo traduz uma obrigação única para a devedora, ora embargante, correspondente ao capital mutuado e aos juros remuneratórios respectivos, em que o seu reembolso seria apenas efectivado através de prestações fraccionadas no tempo.

VII- E pelo facto das prestações integrantes do contrato de crédito ao consumo se configurarem como obrigações fraccionadas ou repartidas, não podem ser enquadras no art 310º do CC.

VIII- Para além de aplicável apenas às prestações periodicamente renováveis, o fulcro do art 310º do CC reside também na salvaguarda da certeza e da segurança jurídicas.

IX- A apelante configura-se como instituição de crédito, pelo que se encontra obrigada a concretizar, em pleno, um complexo de deveres específicos e a efectivar elevados níveis de competência, mormente, nas relações negociais com cada um dos seus clientes.

X- Estes deveres e níveis de competência foram integralmente cumpridos para com a embargada e para com a operação de crédito in casu, conforme resulta do contrato celebrado por escrito e dos próprios autos.

XI- Ou seja, a salvaguarda da certeza e da segurança jurídicas foram, desde sempre e institucionalmente, assegurados e concretizados pela apelante para com a embargante.

XII- Ao art 310º do CC podem ser apenas subsumíveis os negócios, que integrem prestações periodicamente renováveis, e que sejam estabelecidos entre particulares ou entre o comerciante não bancário e um particular.

XIII- Pelo que, a qualquer título, nutre, somente, aplicação o prazo de prescrição ordinário previsto no art 309º do CC.

XIV- Deste modo, foi também violado o próprio art 310º do CC, nas suas alíneas d) e e).

3. Uma vez que, por via de regra, o teor das conclusões define o objecto do recurso, as questões essências decidendas são as seguintes:

É a sentença nula por falta de fundamentação ao decidir que a acção executiva anteriormente instaurada não operou a interpelação.

É, ou não, aplicável in casu, o disposto nas alíneas d) e e) do artº 310º do CC.

4. Uma vez não foi impugnada, a factualidade a considerar é a vertida na sentença para a qual se remete – artº 713º nº6 do CPC.

5. Apreciando:

5.1. Primeira questão.

Prescreve o artº205º, nº1 do Const. da Rep. Port.:
«As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei».

E estatui o artº158º do CPC que:

1. As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.
2. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição.

Por seu turno preceitua o artº668º, nº1, al. b) que: é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
O que, naturalmente, é extensível aos despachos – art. 666º, nº3 do CPC

A necessidade da fundamentação prende-se com a garantia do direito ao recurso e tem a ver com a legitimação da decisão judicial.
Na verdade a fundamentação permite fazer, intraprocessualmente, o reexame do processo lógico ou racional que lhe subjaz.
Ela é garantia de respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões.
Porque a decisão não é, nem pode ser, um acto arbitrário, mas a concretização da vontade abstracta da lei ao caso particular submetido à apreciação jurisdicional, as partes, «maxime» a vencida, necessitam de saber as razões das decisões que recaíram sobre as suas pretensões, designadamente para aquilatarem da viabilidade da sua impugnação.
E mesmo que da decisão não seja admissível recurso o tribunal tem de justificá-la.
É que, uma decisão vale, sob o ponto de vista doutrinal, o que valerem os seus fundamentos, pois que estes destinam-se a convencer que a decisão é conforme à lei e à justiça, o que, para além das próprias partes a sociedade, em geral, tem o direito de saber – cfr. Alberto dos Reis, Comentário, 2º, 172 e Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, 1982, 3º vol., p.96.

Mas se assim é, dos textos legais e dos ensinamentos doutrinais se retira que apenas a total e absoluta falta de fundamentação pode acarretar a nulidade.
Na verdade a lei não comina com tão severo efeito uma motivação escassa, ou, mesmo deficiente. E onde a lei não distingue não cumpre ao intérprete distinguir.
Nem tal exigência seria de fazer considerando a «ratio» ou finalidade do dever de fundamentação supra aludidos.
O que a lei pretende é evitar é a existência de uma decisão arbitrária e insindicável. Tal só acontece com a total falta de fundamentação. Se esta existe, ainda que incompleta, errada ou insuficiente tal arbítrio ou impossibilidade de impugnação já não se verificam.
O que nestes casos apenas sucede é que a própria decisão pode convencer menos, dada a debilidade ou incompletude dos seus fundamentos. Mas pode ser sempre atacável e modificável.
Assim sendo, a grande maioria da nossa jurisprudência tem-se pronunciado no sentido de que só a carência absoluta de fundamentação e não já uma motivação escassa, deficiente, medíocre, incompleta ou errada, acarreta o vício da nulidade da decisão – cfr. Entre outros, Ac. do STA de 18.11.93, BMJ, 431º, 531 e Acs. do STJ de 26.04.95, CJ(stj), 2º, 57, de 17.04.2004, de 16.12.2004 e de 03.11.2005, dgsi.pt.

No caso vertente e se bem se atentar, o Sr. Juiz «a quo» fundamentou, neste particular, o decidido, pois que, conforme se alcança do 4º parágrafo de fls.62, ele concluiu que não poderia considerar-se que a acção executiva anteriormente instaurada não tinha operado a interpelação para regularização da dívida por não haver coincidência entre as duas acções no que ao pedido exequendo concerne e, em todo o caso, porque sempre estaríamos perante uma duplicação de acções executivas
E no que tange à indicação das normas jurídicas que sustentam tal posição, ainda que as mesmas não tenham sido expressamente indicadas, tal invocação, ainda que implícita, é perfeitamente intuível, pois que reportando-se a questão à prescrição, início do seu curso e sua interrupção, outras não poderiam ser que os artºs 306 º e 323º do CC..
Não pode, pois, concluir-se que a não referência expressa a norma jurídica, tenha, «in casu» e, desde logo, também, atenta a simplicidade da questão e da sua própria abordagem pelo Sr. Juiz «a quo», força bastante para converter a decisão em arbitrária e insindicável.

Tanto basta para que tenha de improceder este fundamento do recurso.

5.2. Segunda questão.
As razões justificativas das prescrições de curto prazo do art.º 310.º do CC são a da protecção da certeza e segurança do tráfico, a conveniência de se evitarem os riscos de uma apreciação judicial a longa distância, principalmente quando se requeira a prova testemunhal dos factos e, “last but not the least”, evitar que o credor deixasse acumular excessivamente os seus créditos, para proteger o devedor da onerosidade excessiva que representaria, muito mais tarde, a exigência do pagamento, procurando-se obstar a situações de ruína económicaBaptista Machado, RLJ, 117º, 205, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, pág. 452, e Vaz Serra, Prescrição e Caducidade, BMJ, 107º, pág. 285.
Por outro lado, contrariamente ao alegado pela recorrente, nem todas as alíneas deste preceito se referem a prestações periodicamente renováveis, isto é, atinentes a dívidas periódicas em que há uma pluralidade de obrigações distintas (embora todas emergentes de um vínculo fundamental ou relacionadas entre si) que, reiteradamente se vão sucedendo no tempo.
Se bem alcançamos, nele também se incluem situações que se reportam a uma única obrigação cujo cumprimento é efectivado em prestações fraccionadas no tempo.
É o caso das previstas na alínea e) em que a obrigação é cumprida através de «quotas de amortização do capital pagáveis com os juros» e, mutatis mutandis, na al.d), no que concerne aos juros, pois que estes, pelo menos por regra, são reportados a uma realidade, normalmente atinente á colocação na disposição de uma certa soma pecuniária, assumida e definida numa singular obrigação inicial.
Assim sendo, a alínea residual (g) que se reporta a «quaisquer outras prestações periodicamente renováveis» tem de ser interpretada, em sentido lato, ainda que, quiçá, menos conforme à melhor dogmática técnico-jurídica, de sorte a considerar-se que engloba na sua previsão, também, as obrigações unitárias mas satisfeitas em prestações fraccionadas ao longo do tempo, pois que não existem razões de qualquer índole – jurídica e pratica – para operar a restrição propugnada pela recorrente, antes pelo contrário.
Efectivamente, considerando as finalidades supra referidas prosseguidas com o curto prazo de prescrição fixado neste artigo, parece-nos que as mesmas são atendíveis para os dois tipos de situações, não se vislumbrando fundamento para limitá-las aos casos de obrigações periodicamente renováveis «srticto sensu».

No caso vertente e como invoca a recorrente é certo encontrarmo-nos perante uma situação de uma única obrigação, decorrente da outorga com a recorrida de um contrato de crédito, em que foi anuído ser cumprido através de prestações mensais e sucessivas.
Porém tal factualidade subsume-se efectivamente, desde logo, na alínea e) tal como foi considerado na sentença. E, quanto aos juros peticionados, na al. d) – cfr. Neste sentido o Ac. do STJ de 04.05.1993, dgsi.pt, p.083489.
E, mesmo que assim não fosse ou não se entenda, sempre poderia ser subsumida na alínea g), atenta a interpretação que supra se expôs.

Nem sendo de acolher a tese da recorrente de que o prazo da prescrição de curto prazo do artº 310º do CC não deve aplicar-se aos casos em que no negócio intervém uma instituição de crédito, pois que estas salvaguardam a certeza e segurança que com tal prazo se pretendem atingir, por virtude dos seus deveres e competências acrescidos e institucionalmente exigidos.
Em primeiro lugar porque a lei é geral e abstracta, pelo que não limitando ela os seus destinatários, a todos vincula.
Em segundo lugar porque, como supra se referiu, a certeza e segurança não são os únicos objectivos prosseguidos com as prescrições de curto prazo.
Em terceiro lugar porque não é facto notório maior competência e seriedade das instituições financeiras, maxime quando intervêm na outorga de contratos em que, única ou essencialmente pretendem prosseguir o seu objecto social atinente à prossecução do lucro e dos seus (legítimos) interesses materiais.



5.3. Decisão.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.


Custas pela recorrente.

Lisboa, 2006.05.09

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