Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3777/2004-7
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/01/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Sumário: Abarcando o contrato de seguro danos causados por “tempestades”, nestas se incluindo a “acção directa de ventos fortes” e constando ainda da apólice que, “em caso de dúvida, competirá ao segurado fazer a prova ... de que no momento do sinistro os ventos atingiram velocidade excepcional” ... “igual ou superior a 80 kms/hora”, a seguradora é responsável pelo sinistro causado nos bens segurados decorrentes de uma situação em que ocorreram ventos fortes acompanhados de muita chuva.
Não existindo qualquer dúvida quanto à causalidade do sinistro, não é necessária que o segurado faça prova da velocidade dos ventos.
Decisão Texto Integral: I – F. LÚCIO
e
M. LÚCIO
intentaram a presente acção declarativa de condenação
contra
COMPANHIA DE SEGUROS IMPÉRIO, S.A.
Pedem a condenação da R. no pagamento da quantia de PTE 14.146.648$00, acrescida de juros que se vencerem até integral pagamento.
Alegaram que celebraram com a R. um contrato de seguro do ramo Multi-Riscos-Pac 2000, com início em 16-12-88.
Sendo proprietários de 6 pavilhões destinados à criação de pintos e frangos, tal apólice garantia os danos sofridos nos pavilhões, no âmbito das coberturas abrangidas pelo art. 3º das condições gerais, com o capital garantido de PTE 28.000.000$00.
No dia 13-12-96, verificaram-se na região condições atmosféricas muito más, com ventos muito fortes e muita chuva. Ao passar por cima de um dos pavilhões um ciclone arrancou uma parte do telhado e abateu uma das paredes. Em consequência, parte do telhado e a estrutura de suporte e uma parede ficaram destruídas, sendo afectado ainda o sistema eléctrico, tal como o motor do silo e 2 linhas de alimentação.
A A. participou o sinistro à R., tendo apresentado os orçamentos solicitados que totalizavam o valor de PTE 6.840.933$00 e sofreram ainda lucros cessantes no valor não inferior a PTE 4.500.000$00, recusando-se a R. a pagar a indemnização.
 
A R. contestou e alegou que o acidente não ocorreu devido à acção do vento, mas devido às deficientes condições de conservação do pavilhão que provocaram a queda parcial da cobertura. Além disso, os AA. não provaram que os ventos atingissem a velocidade prevista no contrato. Por outro lado, tinham deixado de explorar directamente o aviário e à data do acidente os pavilhões encontravam-se inactivos.
Quanto ao valor dos danos desconhece se o seu valor corresponde ao montante reclamado. E quanto aos lucros cessantes, a alegada morte de pintos não está contratualmente coberta, apesar de no momento da ocorrência não existirem pintos no pavilhão.

Os AA. apresentaram réplica, reafirmando que a queda do pavilhão teve como causa directa a acção do vento e da chuva.
Consideram ainda que é inválida a cláusula 2.1.1 do artigo 3º das condições gerais.

Realizado o julgamento foi proferida sentença que julgou a acção improcedente.

Apelaram os AA. e concluíram que:

a) Provou-se que no dia 13-12-96, se verificaram na região onde estão localizados os pavilhões, condições atmosféricas más, durante várias horas, que consistiram na ocorrência de ventos fortes, acompanhados de muita chuva;
b) O sinistro deu-se sob estas condições atmosféricas e, como consequência directa e imediata, o pavilhão sofreu danos no telhado e sua estrutura, devido a seu abatimento e uma parede ficou destruída.
c) A chuva provocou danos no interior do pavilhão, tendo ficado danificada uma parte do sistema eléctrico, sendo que o motor do silo sofreu danos e duas linhas de alimentação ficaram inoperativas.
d) Estes danos foram orçamentados, à data do sinistro, em 6.840.833$00, presentemente 34.122,43 €.
e) Os danos encontravam-se abrangidos no âmbito das garantias cobertas pelo contrato de seguro, tendo em conta o ponto 2 do art. 3° das Condições Gerais da apólice, sob a epígrafe "Tempestades" que postula o seguinte: “tufões, ciclones tornados e toda a acção directa de ventos fortes”.
f) Encontram-se também no âmbito das garantias os prejuízos sofridos em consequência de alagamento pela queda de chuva, desde que os agentes atmosféricos - chuva - penetrem no interior do edifício em consequência dos danos causados pelos riscos mencionados na conclusão antecedente.
g) Não faz sentido que o Mº Juiz considere que só estão cobertos pela apólice ventos cuja intensidade seja igual ou superior a 80 Km/h.
h) Cometeu, assim, uma dupla incorrecção: por um lado, considerou que a estação meteorológica mais próxima do local do sinistro - Casais da Marmeleiro, Landal - era a estação do Cabo Carvoeiro, quando através da prova testemunhal da Dra. M. foi referido que a estação meteorológica mais próxima era a situada na Ota.
i) Com base nesta estação foi emitida a certidão de 17-4-97, a pedido da Tecnoper, na qual consta a intensidade de vento com valores de 70/80 Km/h.
j) O depoimento da testemunha M. disse de forma inequívoca que se tivesse passado a certidão para o local do acidente o vento teria alcançado os 90 km/h, perante a descrição que fez das condições atmosféricas que ocorreram no dia do sinistro e em face dos elementos que dispunha sobre os valores da intensidade do vento na estação metereológica mais próxima e, também, estas condições do tempo são das mais gravosas que ocorreram em Portugal Continental, cujos efeitos são devastadores.
k) Mas se contra a prova produzida se persistisse em considerar como válida a informação do vento que consta da certidão emitida pelo INM, para a estação de cabo Carvoeiro, teria de se considerar que o valor referido de 75 km/h, atenta a descrição de que no local ocorreram valores da intensidade do vento da mesma ordem de grandeza, permitiria concluir a verificação de uma variação de mais 10 km/h, como referiu o metereologista testemunha.

Houve contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – Matéria de facto:
1. Nas suas alegações os apelantes parecem insurgir-se contra o modo como foi apreciada a prova produzida, no que respeita à concreta velocidade do vento que se teria verificado relativamente ao local onde ocorreu o sinistro.
Invocam basicamente o depoimento da testemunha M. que teria produzido declarações que conduziriam a uma diversa conclusão, em consonância com uma outra certidão dos serviços metereológicos referente a uma estação metereológica mais próxima do local.
Ocorre, porém, que a impugnação da decisão da matéria de facto está sujeita a regras rigorosas que não se mostram integralmente cumpridas
Com efeito, nos termos do art. 690º-A do CPC, quando se pretenda a modificação de tal decisão, deve o recorrente indicar quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, a par dos concretos meios de prova que conduzam ao resultado pretendido.
Para além de não se encontrar junta aos autos a referida certidão metereológica onde alegadamente a mencionada testemunha se basearia, os apelantes não indicam em concreto qual o ponto da matéria de facto que deve ser alterada e em que sentido.

2. Nestes termos, é a seguinte a matéria de facto provada:

1. Os AA. são proprietários de 6 pavilhões, situados na localidade da sua residência e que se destinam à actividade de criação de aves, concretamente, pintos e frangos – A);
2. A R. é uma empresa que se dedica à actividade seguradora – B);
3. No âmbito das suas actividades, AA. e R. celebraram um contrato de seguro titulado pela apólice n.º 2-1-37-024132/08 que teve o seu início em 16-12-88 do ramo Multi-Riscos-Pac 2000 – C);
4. Esta apólice destinava-se a garantir os danos sofridos pelos identificados pavilhões, no âmbito das coberturas abrangidas pelo art. 3º das condições gerais e de fenómenos sísmicos – D);
5. O capital garantido pela apólice era de PTE 28.000.000$00, valor atribuído aos pavilhões e respectivo recheio, com exclusão dos frangos – E);
6. No dia 13-12-96, verificaram-se na região onde estão localizados os pavilhões, condições atmosféricas más, o que provocou que um dos pavilhões ficasse sem parte do telhado e sem uma parede – F) e G);
7. Ocorreram ventos fortes, acompanhados de muita chuva – 2º;
8. Estas condições atmosféricas verificaram-se durante várias horas – 3º;
9. O sinistro deu-se sob estas condições atmosféricas – 4º;
10. Como consequência directa e imediata dos factos descritos, o identificado pavilhão sofreu os seguintes danos: o telhado e sua estrutura de suporte ficaram, parcialmente, destruídos, devido a seu abatimento; e uma parede destruída – H);
11. O pavilhão ficou sem uma parte do telhado e sem uma parede –13º;
12. O tempo estava escuro e continuou a chover – 5º e 10º;
13. A chuva provocou danos no interior do pavilhão, nomeadamente em equipamentos, situação que contribuiu para o agravamento dos prejuízos –11º e 12º;
14. Como consequência directa e imediata dos factos descritos, o identificado pavilhão sofreu os seguintes danos: uma parte do sistema eléctrico ficou danificado e incapaz de funcionar; o motor do silo sofreu danos e duas linhas de alimentação ficaram inoperativas –14º;
15. Um outro pavilhão localizado em frente do sinistrado encontra-se em más condições de conservação externa e interna – 33º;
16. Os pavilhões foram construídos em 1987 e em alvenaria – 40º.
17. Os AA. tinham deixado de explorar directamente o aviário – 34º;
18. Na data do acidente, os pavilhões encontravam-se inactivos há cerca de um mês, sendo frequentes esses períodos de inactividade no decorrer do ano  - 35º;
19. O local do sinistro está localizado numa zona de orografia acidentada – 23º;
_______
20. Em 19-12-96, a A. participou o sinistro à R., na convicção que os factos descritos se enquadravam no âmbito da cobertura da apólice supra identificada – I);
21. Por carta datada de 26-12-96,  a R. solicitou orçamentos para reparação dos danos, discriminados por materiais e mão de obra – J);
22. Em data que os AA. não podem precisar, mas seguramente no início de Janeiro de 1997, foram entregues na agência de Rio Maior os orçamentos solicitados e que totalizavam PTE 6.840.933$00 – K);
23. Os danos sofridos pelos AA. foram orçamentados, à data do sinistro, em PTE 6.840.833$00 – 29º;
24. Após a entrega dos orçamentos mencionados em 22., e decorrido algum tempo, os AA. não receberam qualquer informação da R., com vista à resolução do sinistro – 15º;
25. Técnicos e peritos da R. deslocaram-se ao local do sinistro, por várias vezes, mas não formalizaram qualquer proposta para indemnizar os AA., antes deram a entender, exactamente, o contrário – L);
26. Assim, os AA., através dos seus mandatários, interpelaram a R. no sentido de obterem informação acerca da sua posição sobre a indemnização devida e ainda não paga – M);
27. Por carta datada de 4-7-97 (fls. 26), a R. comunicou que a firma Tecnoper, mandatada para efectuar a peritagem do sinistro tinha concluído que "os danos não se encontram abrangidos pelas condições contratuais", contudo e a título excepcional tinham proposto um valor, cujo montante não é referido na mencionada carta – N), O) e P);
28. Isso mesmo é mencionado na carta da R. quando diz: “a ausência de resposta impediu ... uma tomada decisiva de opinião, no sentido da recusa do sinistro, o que acontecerá se não existir possibilidade de acordo a título excepcional” – Q);
29. As cláusulas contratuais conhecidas são as condições gerais, as condições particulares e as condições especiais da apólice – R);
30. As condições particulares para além de identificarem o segurado/tomador do seguro identificam:
O objecto do seguro - 6 pavilhões para frangos e respectivo recheio, com exclusão dos frangos.
Capital seguro - 28.000.000$00
Local do risco - Quinta da Granja, Rostos, Landal, Caldas da Rainha.
Duração - 1 ano e seguintes
Garantias - conforme artigo 3º das condições gerais e fenómenos sísmicos – S);
31. O identificado pavilhão estava incluído no objecto do seguro – T);
32. A apólice estava em vigor e respectivo prémio pago – U);
33. O Instituto de Meteorologia passou a certidão que se encontra junta a fls. 29 dos autos de onde consta, além do mais, que “na Estação Metereológica de Cabo Carvoeiro, no dia 13 de Dezembro de 1996, a quantidade de precipitação registada foi de 11,4 mm e no dia 14 foi de 1,3 mm, valores referidos a períodos de 24 horas anteriores às 9 h dos dias indicados”, que “na mesma estação e no dia 13 de Dezembro de 1996, o vento máximo instantâneo registado foi de 75 km/h” e que “de acordo com a situação metereológica geral verificada, é de admitir que na região de Caldas da Rainha – Rio Maior, as condições tenham sido semelhantes, com valores da mesma ordem de grandeza” – V);
34. Os AA., na posse da certidão e pensando que a R., face ao teor da mesma, iria ter uma atitude receptiva, enviaram-lhe, em 20-4-99 carta com cópia da referida certidão – X);
35. Como resposta, a R., em carta datada de 4-5-99 e dirigida a um dos mandatários dos AA. reiterou a posição já anteriormente assumida de recusa do sinistro – Y);
36. Das condições gerais da apólice e por remissão das condições particulares, consta o seguinte, no seu art. 3º, sob a epígrafe “Garantias do Contrato”:
O presente contrato garante a cobertura dos danos directamente causados aos bens seguros, identificados nas Condições Particulares, pela ocorrência de qualquer ou quaisquer dos seguintes riscos:
...
2. Tempestades
2.1. Garante os danos causados aos bens seguros em consequência de:
2.1.1. Tufões, ciclones, tornados e toda a acção directa de ventos fortes ou choque de objectos arremessados ou projectados pelos mesmos, sempre que a sua violência destrua ou danifique instalações, objectos ou árvores num raio de 5 kms envolventes dos bens seguros.
Em caso de dúvida, competirá ao Segurado fazer prova, por documento emitido pela estação metereológica mais próxima, que no momento do sinistro, os ventos atingiram velocidade excepcional (velocidade igual ou superior a 80 kms por hora.
...
2.1.2. Alagamento pela queda de chuva, neve ou granizo, desde que estes agentes atmosféricos penetrem no interior do edifício em consequência de danos causados pelos riscos mencionados em 2.1.1., na condição que estes danos se verifiquem nas 72 horas seguintes ao momento da destruição parcial do edifício.
...”. -  doc. fls. 59 e 60, e respostas aos quesitos 17º a 20.
III – Decidindo:
1. Sendo claro que houve um sinistro provocado pelas condições atmosféricas de vento e de chuva, de onde resultaram danos, a questão principal que se suscita no presente recurso é se, nos termos contratuais, como defende a R. e foi sustentado na sentença, a responsabilidade da seguradora depende da prova de que o vento atingiu, na estação metereológica mais próxima, velocidade igual ou superior a 80 kms/h, ou se, como defendem os apelantes, basta que se mostre provada a causalidade entre o sinistro e os ventos fortes que inequivocamente existiram.
Seguindo duas vias alternativas, a resposta é favorável à tese defendida pelos apelantes.
Note-se, aliás, que tendo os AA. mantido a sua alegação de que os ventos efectivamente verificados se enquadravam no âmbito de protecção do contrato de seguro, a R. tergiversou. Com efeito, ao contestar, alegou a inclusão no contrato de um clausulado diverso daquele que vigorava, defendendo que os AA. deveriam provar a ocorrência de vento igual ou superior a 100kms/h, quando a apólice que efectivamente vigorava apenas aludia a ventos de velocidade igual ou superior a 80 kms/h.
Neste contexto, seria estranho que, reportando-se o seguro designadamente a danos decorrentes de “tempestades” e sendo inequívoco que, como a R. reconhece nas contra-alegações de fls. 260, o sinistro decorreu da acção de ventos fortes e da muita chuva e que no Cabo Carvoeiro o vento atingiu nesse dia 75 kms/hora, a acção claudicasse apenas porque não ficou provado que o vento teve a velocidade mínima de 80 kms/h, apesar de os serviços oficiais admitirem para o local ventos da “mesma ordem de grandeza”.
Outra e mais justa solução emerge dos factos provados, levando a que R. seja responsabilizada pelos prejuízos que assumiu, em contrapartida dos prémios que auferiu.

2. A matéria de facto provada não deixa qualquer dúvida quanto ao nexo de causalidade entre o abate do telhado e da parede e as condições climatéricas que se verificaram na ocasião.
Nessa medida, estando subjacente à pretensão um contrato de seguro na modalidade de seguro “Multi-riscos” que, além do mais, envolvia as consequências de incêndios, “tempestades”, inundações ou danos por água, pareceria que, aprioristicamente, o sinistro em causa, que redundou em danos num pavilhão afecto e em determinado equipamento nele existente, não poderia deixar de estar abarcado.
Porém, a R. vem defender que tal seguro pressupõe a prova de que na estação metereológica mais próxima os ventos foram de velocidade igual ou superior a 80 kms/h, sendo insuficiente para a sua responsabilização a prova de que na Estação Metereológica do Cabo Carvoeiro a velocidade do vento foi de 75 kms/h.
Aliás, uma tal exigência parece ter sido admitida pelos segurados na fase pré-judicial, pois que perante a resposta negativa da Seguradora, com base na invocação (que se revelou incorrecta) de uma cláusula contratual que reportaria a velocidade mínima de 100 kms/h, os AA. lhe apresentaram uma certidão emitida pela referida Estação Metereológica.
Compreende-se a diligência efectuada pelos AA. numa ocasião em que pretendiam (e esperavam) que a R. lhes facultasse a indemnização dos prejuízos que haviam sofrido. Mas, em sede de apreciação jurisdicional da sua pretensão e da defesa que a R. veio deduzir, uma leitura mais cuidada do clausulado contratual não consente a interpretação em que a R. se refugiou, e refugia, no sentido de negar aos AA. o direito de indemnização.
A exigência de prova de uma determinada velocidade do vento (igual ou superior a 80 kms/h) está contratualmente prevista para o “caso de dúvida”.
Mas “dúvida” em relação a quê: quanto à velocidade do vento na região ou apenas quanto à causalidade das condições atmosféricas relativamente ao sinistro?

3. Uma tal exigência de prova, a impor a apresentação de uma declaração oficial emitida pelos serviços metereológicos da estação mais próxima, não pode resultar de uma mera divergência entre segurados e seguradora acerca da velocidade do vento.
Com efeito, o facto de numa determinada estação a medição do vento se situar a um determinado nível não impede que noutro local (v. g., no local do sinistro) determinadas condições físicas determinem que se registem, em determinado momento, ventos de velocidade superior. De outro modo, bastaria que a seguradora rejeitasse o sinistro reclamado, deixando o segurado inteiramente dependente da obtenção de um elemento que, revelando a velocidade medida num ponto oficialmente determinado, não impediria, no entanto, a ocorrência de velocidades superiores noutro local, seja devido às especiais condições orográficas, seja à confluência de factores que tenham potenciado velocidades superiores.
Aliás, no caso concreto, a medição apresentada quanto à estação de Cabo Carvoeiro revelou uma velocidade de 75 kms/h, “admitindo” a entidade que emitiu a certidão que, quanto ao local do sinistro, os valores seriam “da mesma ordem de grandeza”.[1]

4. O nosso país, felizmente, não está inserido na área onde mais se fazem sentir os efeitos de tornados e de furacões altamente devastadores.
Ainda assim, a leitura da revista “National Geographic-Portugal”, de Abril de 2004, especialmente dedicada a tais fenómenos atmosféricos, revela que “ninguém compreende inteiramente a dinâmica dos tornados, mas alguns ingredientes parecem ser essenciais para o caldeirão de bruxa do qual nascem redemoinhos de vento: ar quente e húmido junto ao solo, ar mais frio acima e ventos cisalhados (“wind shear”) que mudam de direcção e velocidade consoante a altura”. No mesmo artigo se acrescenta que sendo difícil “medir a intensidade dos ventos e a potência dos tornados, os cientistas medem-nos pelos estragos que provocam”, sendo que na escala de Fujita, “uma tempestade classificada como F 1 provoca estragos moderados e ventos de 160 km/h” (sic).
Num outro segmento da mesma publicação, relativamente a semelhantes fenómenos atmosféricos ocorridos no território de Portugal Continental, consta uma carta onde são identificados os tornados que, segundo a referida Escala de Fujita, se têm verificado nas últimas décadas, revelando que a “a maioria dos tornados em território português ocorreu entre Outubro e Dezembro, na passagem das linhas de instabilidade associadas a depressões centradas a oeste da Península” e assumindo que “dada a intensidade reduzida de muitas destas ocorrências, é possível que alguns tornados não tenham sido documentados e portanto escapem a esta compilação”.
Com interesse para o caso, são apresentados os seguintes exemplos referentes ao período de 12-12-96 a 19-12-96:
- 12-12-96 – Grau F1 centrado em Sintra;
- 13-12-96 – Grau F2 centrado em Gondomar;
- 13-12-96 – Grau F2 centrado em Santiago do Cacém;
- 19-12-96 – Grau F1 centrado em Lagoa.

5. Feitas estas considerações de ordem geral, é altura de proceder à integração da matéria de facto.
Segundo a qual no dia em que ocorreu o sinistro (13-12-96) as “condições atmosféricas eram más”, que “ocorreram ventos fortes, acompanhados de muita chuva”, o que “durou várias horas” e que tudo isso “provocou que um dos pavilhões ficasse sem parte do telhado e sem uma parede”.
Estando provado que na estação de Cabo Carvoeiro foram medidos ventos de 75 kms/h e que, perante a ausência de medidas no concreto local do sinistro, os serviços metereológicos “admitem” que no local do sinistro a velocidade do vento teria sido da “mesma ordem de grandeza”, está explicado o motivo por que ocorreu o sinistro.[2]
Por outro lado, recebeu resposta “não provado” o quesito 31º que continha alegação da R. que negava a causalidade entre a acção do vento e o sinistro, não se provando igualmente que o sinistro se tenha ficado a dever ao estado de abandono do pavilhão.
Neste contexto, justificar-se-ia que os AA. segurados tivessem de provar que na estação metereológica mais próxima fossem medidos ventos de velocidade igual ou superior a 80 km/h, se houvesse dúvidas quanto à imputação do sinistro a tal fenómeno atmosférico. Tratar-se-ia, em tal circunstância, de um passo importante para evitar a fraude em matéria de seguros e que assim explicaria a ocorrência do sinistro.
Mas não se verificando qualquer dúvida quanto à imputação do sinistro a tais fenómenos climatéricos, não faz sentido a invocação da cláusula onde se alude a ventos de velocidade superior a 80 km/h, a qual deve ser interpretada no sentido de apenas abarcar situações de dúvida quanto à causalidade.

6. Mas a solução favorável aos AA. chega-nos ainda por outra via.
A cláusula onde a R. funda a sua recusa de pagamento da indemnização é qualificada como cláusula geral.
Para além das exigências que resultam do Dec. Lei nº 446/85, de 25-10, aplicáveis a todos os proponentes de clausulados desse tipo, a seguradora estava especialmente obrigada a redigi-lo “de modo claro e perfeitamente inteligível”, nos termos do art. 8º do Dec. Lei nº 176/95, de 26-7, sobre as apólices de seguros.
Trata-se, aliás, de uma obrigação que emerge dos princípios da boa fé na formação dos contratos e que no caso mais se justificava atenta a elevada especialização da R. seguradora, em contraponto com o nível de conhecimentos da generalidade dos destinatários, ou seja, do leque de potenciais interessados na celebração de contratos de seguro semelhantes, sendo que no caso concreto, a participação do sinistro, cuja cópia consta de fls. 15, demonstra bem o grau de (i)literacia da A.[3]
A interpretação que a R. pretende extrair da referida cláusula, no contexto do concreto contrato singular em que se encontra, não pode deixar de sofrer as consequências previstas pelo art. 11º do Dec. Lei nº 446/85, para os casos de ambiguidade.
Na verdade, se acaso a R., como agora defende, pretendia limitar os riscos a sinistros decorrentes de “tempestades” caracterizadas por “ventos fortes” com uma “velocidade mínima de 80 Km/h”, não poderia apresentar uma cláusula com a redacção e com a estrutura da que consta do doc. de fls. 60, devendo antes exprimir, com inequivocidade, uma tal exigência no local apropriado (por exemplo, com a seguinte redacção: “... tufões, ciclones e toda a acção directa de ventos fortes ... com velocidade igual ou superior a 80 kms/hora”).
Agindo desta forma, possibilitaria aos eventuais aderentes a possibilidade de aceitar um tal clausulado ou de o rejeitar, optando por celebrar o seguro com uma entidade concorrente.
Porque não foi essa a redacção adoptada, nem uma outra que inequivocamente permitisse a interpretação pretendida pela R., a mencionada cláusula terá deverá ser interpretada com o sentido que lhe é atribuído por um contratante indeterminado normal.
De onde resulta, por esta segunda via, a procedência da acção na parte referente aos prejuízos imputados ao sinistro, nos termos do art. 11º do Dec. Lei nº 446/85.

IV – Conclusão:
Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida, condenando a R. no pagamento da quantia de € 34.122,43 e nos juros de mora desde a citação até cumprimento.
Custas da apelação a cargo da R. As custas da acção ficam a cargo dos AA. e da R. na proproção do decaimento.
Notifique.

Lisboa, 1-6-04

António Santos Abrantes Geraldes
Manuel Tomé Soares Gomes
Maria do Rosário Morgado

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[1] No caso, o obstáculo “descoberto” pela R. para obstar à indemnização reside apenas na diferença entre aquela velocidade e a velocidade de 80 kms/h referida na apólice de fls. 60 (depois da falência da alegação de que o contrato referiria a velocidade mínima de 100 kms/h que consta do doc. de fls. 43).
[2] Aliás, os fenómenos atmosféricos como os tornados constituem rajadas contínuas, violentas e circunscritas de vento em movimento espiral, sendo caracterizados por chuva forte mas geralmente passageira acompanhada de vento e trovoada (in Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea).
[3] Sobre a matéria cfr. Romano Martinez, “Conteúdo do Contrato de Seguro e Interpretação das Respectivas Cláusulas – Memórias”, págs. 59 a 71.