Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1063/10.6TVLSB.L1-7
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: DEPÓSITO BANCÁRIO
EXTRAVIO DE CHEQUE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – A abertura de uma conta bancária em nome de pessoa que na realidade não interveio nesse acto, sem que o banco se tenha certificado da verdadeira identidade da pessoa que abriu a conta, não é causa adequada do prejuízo resultante do depósito, nessa conta, de um cheque apresentado por quem não era seu legítimo portador e fez seu o valor respectivo.
II – O contrato de depósito bancário é um contrato de depósito irregular por força do qual o banco se torna proprietário da quantia depositada, correndo por conta do banco – que é o adquirente – o risco da perda do dinheiro por causa não imputável ao alienante – que é o depositante.
III – É imputável ao emitente de um cheque, titular da conta sacada, o extravio de um cheque seu que enviou pelo correio sem o fazer como valor declarado.
IV – Actua com manifesto desprezo por regras básicas de segurança da circulação do cheque aquele que o envia pelo correio através de carta simples, o mesmo sucedendo se se limita a colocá-lo no interior de carta selada dirigida à sua credora, com destino ao correio, perdendo-lhe depois o rasto.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
7ª SECÇÃO CÍVEL

I – A..., S.A., intentou a presente acção declarativa com processo ordinário contra B…PLC, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 47.998,63, valor que foi condenado a pagar a um seu credor, na sequência de o Banco ter pago a um terceiro o cheque que emitira para cumprimento da sua obrigação para com aquele.
O réu, contestando, pediu a sua absolvição do pedido.
Após réplica, foi proferido despacho saneador onde, em conhecimento do mérito da causa, se absolveu o réu do pedido.
Contra tal decisão apelou a autora, tendo apresentado alegações onde formula as seguintes conclusões:
I. Veio a Sentença recorrida pugnar pela inexistência “de qualquer nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano que a Autora [Recorrida] alega”, não considerando, por isso, provados os requisitos impostos pelo art.º 483.º do Código Civil para a verificação da responsabilidade extracontratual. Dispôs ainda que “da análise dos autos não resultou demonstrado qualquer facto que nos permita concluir pelo incumprimento do contrato de depósito celebrado entre autora e réu. É manifesto que o réu procedeu ao pagamento do cheque em causa porém, não ficou demonstrado que tenha violado qualquer disposição contratual ao efectuar tal pagamento”, concluindo pela total improcedência do pedido formulado pela Recorrente.
II. Contudo, não pode a Recorrente concordar com a tese do Tribunal a quo, conforme alegações antecedentes.
III. Desde logo, porque o Tribunal a quo fez uma simplista apreciação parcelar da realidade relatada pela Recorrente, ao invés de apreciar no seu todo a factualidade descrita.
IV. Ficou devidamente provada a prática de um facto ilícito pelo Recorrido, que se consubstanciou no incumprimento do dever de cuidado e diligência que impende sobre as entidades bancárias, devidamente consagrado através dos Avisos do Banco de Portugal n.º 11/2005 e 2/2007 – na medida em que não verificou, como devia, a genuinidade e autenticidade dos documentos para a abertura da conta bancária n.º …, titulada por ML., realidade essa que depois veio a ser comprovada pelo próprio Recorrido na pessoa no seu funcionário OA., director do Departamento de Auditoria Interna e Fraude.
V. Pelo que resultou provado a violação das normas daqueles diplomas legais que prevêem esse especial dever de cuidado e diligência, na medida em que o Recorrido permitiu a abertura de conta com os supra aludidos documentos falsificados.
VI. Mas também é verdade que o Recorrido não procedeu à análise prevista na al. (d) do n.º 1 do art.º 7.º e als. (a) e (b) do n.º 1 do art.º 9.º, ambos da Lei n.º 25/2008 que tem por objecto a prevenção da criminalidade ao nível económico, com especial incidência na criminalidade bancária.
VII. Análise essa que deve ser feita em função do perfil do cliente, desde já através da verificação da identidade do cliente ou seu representante quando sejam movimentados valores superiores a € 15.000,00, quando essas operações possam indiciar a prática de qualquer acto ilícito, designadamente pelo “carácter atípico ou não habitual em relação ao perfil ou actividade do cliente, valores envolvidos, frequência, (…) situação económica e financeira dos intervenientes ou meios de pagamento utilizados” (al. (c)), ou quando “haja dúvidas quanto à veracidade ou adequação dos dados de identificação dos clientes, previamente obtidos” (al. (d)), devendo ainda a entidade bancária “obter informação, quando o perfil de risco do cliente ou as características da operação o justifiquem, sobre a origem ou destino dos fundos movimentados no âmbito de uma relação de negócio ou na realização de uma transacção ocasional”, bem como “manter um acompanhamento contínuo da relação de negócio, a fim de assegurar que tais transacções são consentâneas com o conhecimento que a entidade tem das actividades e do perfil de risco do cliente” (art.º 9.º, n.º 1, als. (a) e (b)). (sublinhado nosso).
VIII. No caso em apreço, é manifesto que o Recorrido não cumpriu os deveres que lhe são legalmente impostos, não tendo feito qualquer análise do perfil do cliente, nem analisado as transacções por este feitas sob o nome de M. L. num acompanhamento contínuo da relação de negócio, atendendo aos factos dados como provados elencados supra,
IX. Permitindo, primeiro, a abertura de conta com documentos forjados e, depois, a utilização da conta bancária aberta para finalidades ilícitas – depósito de cheques desviados com recurso à falsificação de assinaturas.
X. Tal é ainda mais estranho se se atender às características do profissional da Banca médio, com experiência e formação suficientes para detectar tanto os indícios de uma falsificação de documento como para analisar o perfil do cliente, as suas capacidades financeiras, e a adequação das transacções efectuadas ao perfil.
XI. Tivesse o Recorrido observado as citadas disposições legais destinadas a conferir mais segurança aos negócios bancários, prevenindo este tipo de criminalidade, certamente que o dano da Recorrente, consubstanciado na obrigatoriedade de pagamento da quantia de € 38.452,41 acrescido de juros e custas, não se teria verificado.
XII. Existe, assim, evidente nexo causal entre o facto ilícito e o dano causado na esfera jurídica da Recorrente, contrariamente ao defendido pelo Tribunal a quo.
XIII. Desde logo, porque o resultado atingido/dano infligido está no âmbito de protecção das normas legais incumpridas pelo Recorrido, identificadas supra – o que, de acordo com a teoria da causalidade normativa, é o bastante para se comprovar a existência do nexo de causalidade exigido pelo art.º 483.º do Código Civil.
XIV. Mas esse nexo de causalidade verifica-se, também, mesmo na perspectiva da teoria da causalidade adequada – teoria que o Tribunal a quo afirma seguir de perto.
XV. É que, partindo da provada prática de actos ilícitos pelo Banco Recorrido (acima enunciados), ter-se-á que se atender a uma formulação negativa da teoria da causalidade adequada, de acordo com a qual o acto ilícito só não será adequado à produção dos danos se for de todo indiferente à sua produção.
XVI. Ora, no caso vertente, é evidente que os actos ilícitos praticados pelo Recorrido foram determinantes para a produção dos danos – razão pela qual se verifica a relação causal entre o facto e o dano, logo, o nexo de causalidade exigido pelo art.º 483.º do Código Civil.
XVII. Pelo que, existindo todos os elementos de que depende a verificação da responsabilidade extracontratual – facto, ilicitude, dano, e nexo de causalidade entre facto e dano – terão de ser retirar daí as devidas consequências legais, designadamente com a obrigatoriedade, por parte do Recorrido, de indemnizar a Recorrente dos prejuízos causados, nos termos previstos no art.º 562.º do Código Civil.
XVIII. Assim, o Recorrido é responsável pelos danos que da sua actuação, ou omissão, resultaram para a Recorrente, derivados da sua condenação do citado processo n.º 912/08.3TVLSB, devendo, por isso, indemnizar a Recorrente naquele montante.
XIX. Mas, para uma correcta apreciação dos presentes autos, haverá ainda que atender à responsabilidade do Recorrido no plano contratual.
XX. É que o contrato de depósito bancário é unanimemente considerado pela doutrina como sendo um contrato de depósito irregular, através do qual o depositário fica obrigado a restituir ao depositante, mediante solicitação, não as coisas efectivamente depositadas mas sim outras do mesmo género e quantidade, existindo um “contrato translativo do domínio sobre a coisa” em que “desaparece praticamente a obrigação de custódia da coisa”, tornando-se as coisas depositadas propriedade do depositário pelo facto da entrega (art.º 1144.º do Código Civil, ex vi art.º 1206.º do mesmo legal compêndio).
XXI. Tal tem como consequência, nos termos do disposto nos arts. 408.º e 796.º do Código Civil, a transferência do risco para o depositário, de acordo com a regra resperit domino, pelo que o perecimento ou deterioração da coisa por causa não imputável ao depositante corre por conta do depositário.
XXII. Deste modo, não se verificando qualquer actuação propiciadora de irregularidades da parte de depositante ou depositário, a responsabilidade pela integridade do depósito corre por conta do depositário, impendendo sobre o Recorrido uma presunção de culpa que este não logrou afastar.
XXIII. O Tribunal a quo não se pronunciou sobre esta questão, limitando-se a considerar a problemática do contrato de depósito numa perspectiva pura de incumprimento contratual, olvidando esta questão do risco.
XXIV. Ora, considerando que o risco corre sempre por conta do depositário, a imputação do prejuízo será sempre feita ao Recorrido, o depositário, e não à Recorrente, a depositante.
XXV. Efectivamente, tendo o Banco Recorrido pago a quem não devia, por se ter verificado a falsificação do endosso aposto no cheque em crise, será este que terá de suportar integralmente os custos inerentes à repetição do pagamento pela Recorrente à P…LDª designadamente os emergentes da sentença proferida no âmbito do processo n.º 912/08.3TVLSB.
XXVI. Não se poderá, ainda nesta sede, olvidar que houve manifesta culpa do Recorrido, na exacta medida do incumprimento dos deveres legais que lhe incumbiam, supra expostos, primeiro, ao permitir a abertura de conta nos moldes em que o fez, e depois, ao não verificar a validade da ordem de pagamento consubstanciada no cheque objecto destes autos, atendendo ao perfil do cliente e da transacção, e ao valor desta, e não verificando a identidade do depositante do cheque.
XXVII. Pelo que resulta evidente o incumprimento contratual do Recorrido, atendendo às normas legais e regulamentares aplicáveis, por um lado, e ao incumprimento culposo das obrigações inerentes ao contrato de depósito bancário, por outro.
XXVIII. O que, aliado ao facto do risco de perecimento do depósito correr por conta do Recorrido, justifica e fundamenta a procedência do pedido da ora Recorrente, no sentido da obrigação de indemnização da Recorrente pelos encargos inerentes à repetição do pagamento.
XXIX. Assim, por tudo o que ficou dito, mal esteve o Tribunal recorrido aquando da emissão da sentença em crise.
Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questões sujeitas à nossa apreciação as enunciadas pela recorrente nas suas conclusões, visto serem estas, como é sabido, que delimitam o objecto do recurso.

II – Na sentença julgaram-se provados os seguintes factos:
1 - A Autora é sociedade comercial que tem por objecto a compra e venda de imóveis, tendo, nessa qualidade, celebrado com uma sociedade denominada P…, Ldª., um contrato de empreitada para a realização de obras de reparação em apartamentos que havia adquirido para revenda.
2 - No âmbito desse contrato, a dita P..LDª. emitiu e remeteu à Autora a factura n.º 1936, datada de 17/08/2007, no valor de € 42.726,01, e com data de vencimento de 16/10/2007, respeitante a trabalhos de reparação efectuados.
3 - Para pagamento dessa factura, a Autora emitiu à ordem da dita P…LDª. um cheque, com o número …, sobre a ora Ré, no valor de €38.453,41, cuja cópia se junta como doc. 1 e se dá por integralmente reproduzida para os devidos efeitos.
4 - A Autora, por intermédio da sua funcionária F., colocou em 04/10/2007 o cheque supra identificado no interior de uma carta, selando-a com selo azul e com destino ao correio, indicando como destinatário da mesma a dita P.., Ldª., e como morada a Rua …., n.º …, Lisboa.
5 - O referido cheque foi interceptado no seu trajecto e nunca chegou ao seu destino, e a P…LDª nunca recebeu este cheque nas suas instalações.
6 - Tendo o mesmo sido descontado da conta bancária da Autora no dia 09/10/2007.
7 - Do seu verso, consta um carimbo com os dizeres “P. C., Ld.ª”, “A Gerência” e uma assinatura.
8 - No verso do cheque consta posto igualmente o seguinte “Valor Dep/Pago Benf. No BB Balcão … em 2007/10/11”.
9 - No rosto do cheque consta aposto um carimbo com a seguinte expressão “B. B. Queluz”.
10 - O carimbo aposto no verso do referido cheque e as assinaturas que dele constam não são da P., nem dos seus gerentes.
11 - O cheque em causa foi depositado numa conta n.º …, do B….PLC., titulada por MS..
12 - O valor constante do cheque em causa, pese embora o seu desconto, nunca foi recebido pela P…LDª
13 - No âmbito do processo n.º 912/08.3TVSLB, que correu seus termos na 3.ª Secção da 2.ª Vara Cível de Lisboa, interposto pela P. contra a ora Autora, a Autora foi condenada a pagar à P. o referido montante de € 38.453,41, acrescido de juros de mora desde 16/10/2007 calculados à taxa legal em vigor até efectivo e integral pagamento, por sentença proferida em 18/01/2010, e que já transitou em julgado.
14 - Estes factos são do conhecimento do Réu B…PLC.
15 - O Réu aceitou abrir uma conta bancária em nome do já referido MS., conta essa onde foi creditada, por débito da conta da Autora, a quantia de €38.453,41, por via de um cheque cruzado que foi emitido pela Autora à ordem da firma P..
16 – O verdadeiro ML não procedeu a qualquer abertura de conta no Banco Réu tendo sido alguém, com esta identidade falsificada, que abriu uma conta bancária junto do Réu, falsificou um endosso no cheque da Autora, depositou esse cheque naquela conta e, no dia seguinte, levantou em dinheiro a totalidade do valor do cheque.
17 - O cheque em causa encontrava-se endossado e foi depositado na conta de D/Ordem domiciliada no B…PLC, a fim de ser apresentado a pagamento, junto da conta bancária do seu sacador, conta essa também domiciliada no B…PLC, tendo tal depósito ocorrido em 09 de Outubro de 2007.
18 - A conta de D/Ordem nº …, titulada por MS., foi aberta junto do Banco Chamado a 14 de Agosto de 2007.
19 - Aquando da sua abertura o Banco Chamado muniu-se de fotocópia do Bilhete de Identidade, documento relacionado com o Numero de Contribuinte, Recibo de Vencimento emitido pela respectiva entidade patronal, factura da EDP como comprovativo da sua residência.
20 - Quando o depósito foi efectuado, já a citada conta existia há cerca de dois meses, e já tinha sido objecto de vários movimentos por parte do seu titular e foi alvo de movimentos a crédito, posteriores ao depósito do cheque dos Autos.
 
III – Os fundamentos e raciocínio que estiveram na base da decisão emitida foram, em síntese nossa, os seguintes:
- Tendo ficado demonstrado que o verdadeiro ML. não procedeu à abertura de qualquer conta no Banco réu, tem de concluir-se, por presunção, que o réu violou o dever previsto no art. 4º, nº 1 e 2 do Aviso nº 11/2005, uma vez que não terá certificado a verdadeira identidade do titular daquela conta de depósito bancário.
- É, pois, ilícita a conduta do Banco Réu.
- Não existe, porém, nexo de causalidade adequada entre o facto de a conta ter sido aberta sem a observação dos deveres de cuidado previstos no citado Aviso do Banco de Portugal e o prejuízo sofrido pela autora, correspondente ao valor do cheque que teve de pagar de novo à sua credora.
- E, na perspectiva da responsabilidade contratual, nada permite concluir também pelo incumprimento do contrato de depósito, por parte do réu, já que procedeu ao pagamento do cheque com endosso que não apresentava qualquer indício de suspeição, nada fazendo prever a sua falsificação.

Vejamos, pois, se as razões em contrário invocadas pela apelante são de acolher.
Na sua tese, desenvolvida ao longo das conclusões I a XII, a apelante, atribuindo ao apelado a violação dos deveres de cuidado cuja observância lhe é imposta, não só quanto à verdadeira identidade da pessoa com quem firma contratos de abertura de conta, mas também, e subsequentemente, quanto ao controle da idoneidade e legitimidade das operações que nela são realizados – avisos do Banco de Portugal nºs 11/2005 e 2/2007 e Lei nº 25/2008, esta ultima visando a prevenção da criminalidade ao nível económico – conclui, em face dos factos apurados, pela sua actuação ilícita.
Todavia, estes – essencialmente os descritos sob os nºs 15. 16. e 19 –, pela exiguidade do seu conteúdo, não permitem concluir que o Banco tenha omitido os deveres de cuidado impostos nos arts. 7º, nº 1, al. d) e 9º, nº 1, alíneas a) e b) do art. 90º da Lei nº 25.2008, visto desconhecer-se se algo, em face das aspectos circunstanciais aí definidos, indiciava que o depósito em causa poderia constituir a prática de acto ilícito e, portanto, se era exigível a adopção dos cuidados em causa.
Mas mesmo considerando, como na sentença se considerou, a partir de presunção, que o Banco apelado não se certificou da verdadeira identidade da pessoa que, fazendo-se passar por ML.., abriu a conta em nome dele, assim violando o dever previsto no art. 4º, nº 1 e 2 do Aviso nº 11/2005, e actuando ilicitamente, nunca essa conduta ilícita seria bastante para gerar, por si só e em termos de causalidade adequada, os danos sofridos pelo apelante.
Na busca de solução para o problema de saber se para a existência de obrigação de indemnizar, um dado facto foi causa de determinado dano, surgiu, a par de outras[1], a teoria da causalidade adequada, cujo pensamento fundamental, nas palavras de Antunes Varela[2], se traduz no seguinte: “para impor a alguém a obrigação de reparar o dano sofrido por outrem, não basta que o facto praticado pelo agente tenha sido, no caso concreto, condição (s.q.n.) do dano; é necessário ainda que, em abstracto ou em geral, o facto seja uma causa adequada do dano”.
Ou, no dizer de Menezes Cordeiro, [3]Esta orientação parte da ideia da condictio sine qua non: o nexo causal de determinado dano estabelece-se, naturalmente, sempre em relação a um evento que, a não ter ocorrido, levaria à inexistência do dano. (…) Simplesmente, como existirão, fatalmente, vários eventos nessa situação, trata-se de determinar qual deles, em termos de normalidade social, é adequado a produzir o dano.
         O art. 563º do Código Civil, ao estatuir que: “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.”, pretendeu consagrar a teoria da causalidade adequada, como, segundo Antunes Varela, revelam os trabalhos preparatórios do Código, fazendo-se aí um “apelo ao prognóstico objectivo que, ao tempo da lesão (ou do facto), em face das circunstâncias então reconhecíveis ou conhecidas pelo lesante, seria razoável emitir quanto à verificação do dano. A indemnização só cobrirá aqueles danos cuja verificação era lícito nessa altura prever que não ocorressem, se não fosse a lesão.[4]
         Ainda segundo o mesmo Autor “(…) para que um dano seja reparável pelo autor do facto, é necessário que o facto tenha actuado como condição do dano. Mas não basta a relação de condicionalidade concreta entre o facto e o dano. É preciso ainda que, em abstracto, o facto seja uma causa adequada (hoc sensu) desse dano.
         Esta teoria comporta duas variantes.
Segundo a formulação de sentido positivo, haverá causalidade adequada quando o dano se apresente como uma consequência normal ou típica do facto que esteve na sua origem, de sorte que a verificação do facto faça prever, como consequência normal ou natural, o dano.
E nos termos da sua vertente mais ampla – a negativa[5] –, o facto que foi condição de um certo dano, só deixará de ser a sua causa adequada se, atenta a sua natureza geral, se revelar indiferente para a verificação do dano, só o tendo provocado por virtude da ocorrência de circunstância excepcional, “sem a qual não haveria um risco, maior do que o comum, de o prejuízo se verificar. Mas circunstância anómala ou extraordinária que o agente ignore e não tenha de conhecer, à data da acção.[6]
Sendo esta última formulação da teoria da causalidade adequada que deve adoptar-se, seja porque o art. 563º a contempla – embora sem optar directamente por ela –, seja porque se revela mais criteriosa quando se está perante lesão emergente de facto ilícito [7], é de concluir, como na sentença se concluiu, pela não verificação, no caso concreto, do nexo de causalidade adequada entre a abertura de conta em causa e o dano sofrido pela autora.
É indubitável que se a conta de depósitos em causa não existisse, não poderia ter servido de veículo para o depósito e ulterior cobrança do cheque.
Mas isto não torna a existência da conta, aberta nas condições especificamente demonstradas, causa adequada dos danos sofridos pela apelante que, recorde-se, se traduziram na concreta perda do valor inscrito no cheque, cuja ordem de pagamento por si emitida reverteu em proveito do falsário que fez seu o valor respectivo.
Nas circunstâncias concretas acabou por actuar como condição do dano, mas, abstractamente considerada, não é, de modo algum, causa adequada dele.
À partida, seria até indiferente para a sua produção, o que acabou por não acontecer devido a circunstância excepcional “sem a qual não haveria um risco, maior do que o comum, de o prejuízo se verificar” - o falso endosso do cheque que permitiu o levantamento, junto do apelado, do valor do título com o inerente prejuízo da apelante.
Daí que se não possa falar em nexo de causalidade entre o acto do réu – ao contratar a abertura de conta nas enunciadas condições – e o prejuízo sofrido pela apelante, nem tenham fundamento as considerações expostas nas conclusões XIII a XVIII.

Nas subsequentes conclusões, a apelante, abordando a questão na perspectiva do contrato de depósito bancário que liga as partes, sustenta, em suma, que o apelado, ao pagar o cheque a quem não devia, sem verificar a validade da ordem de pagamento nele emitida nem a identidade do seu depositante, incumpriu o contrato, ao que acresce o facto de o risco do perecimento do depósito correr por sua conta.
Vejamos.
O depósito bancário pode definir-se como sendo um contrato de depósito irregular - arts. 407º do Código Comercial e 1205º do Código Civil -, a que são aplicáveis, na medida do possível e de acordo com o disposto no art. 1206º do C. Civil, as normas legais reguladoras do mútuo, nomeadamente o art. 1144º, nos termos do qual a coisa mutuada passa a integrar o património do mutuário que fica, concomitantemente, adstrito à obrigação contratual de devolver outro tanto ao depositante, mutuante.[8]
Por via dele, como escreve Calvão da Silva[9], “(…) o depositante troca a propriedade da soma depositada por um direito de crédito à restituição de outro tanto, com a transferência do risco a acompanhar a transmissão da propriedade (res perit domino – art. 796º, nº 1)  - logo, se roubado o dinheiro acabado de depositar, o risco é do banco, como pelo banco corre o risco de cheque falsificado.
Exactamente na mesma linha, Menezes Cordeiro afirma que o risco do que possa suceder com a conta do cliente, caso não haja culpa deste, cabe ao banqueiro, nomeadamente quando apareçam cheques falsificados, com a assinatura muito semelhante à autêntica.[10]
Mas há que ponderar ainda a convenção de cheque, relação contratual que, embora surgindo intimamente ligada a um contrato de abertura de conta, é uma convenção considerada por alguns como autónoma e que atribui ao cliente o direito de dispor dos fundos depositados através de cheques postos à sua disposição pelo banqueiro, com a obrigação de os guardar com cuidado prevenindo o seu extravio e má utilização.
Deveres acessórios emergem da convenção para o banqueiro, como sejam o de verificar com cuidado a assinatura do cliente e o de recusar o pagamento de cheques “menos claros”.[11]
Por outro lado, estando-se no domínio da responsabilidade contratual, sobre o Banco apelado, que pagou indevidamente um cheque emitido pela autora sua cliente, impende a presunção de culpa estabelecida no art. 799º, nº 1, do C. Civil, cabendo-lhe, pois, demonstrar que a falta de cumprimento se não deveu a culpa sua.
Sobre a matéria, o STJ vem-se pronunciando, sistematicamente, e desde há longos anos, no sentido de que o banco só ilide a presunção da sua culpa no pagamento de cheque falsificado se provar que tal se deveu a comportamento culposo do cliente.[12]
Aqui estamos perante a satisfação, pelo Banco apelado, a favor de pessoa que o detinha indevidamente, de uma ordem de pagamento feita pela apelante, através de cheque, em virtude de o título, colocado por uma funcionária da apelante numa carta selada, dirigida à sua credora “P..LDª.” e destinada aos correios - cfr. o facto nº 4 -, ter sido  desencaminhado em termos não concretamente apurados, e no seu verso ter sido aposto um carimbo com os dizeres “P. Lda., A Gerência” e uma assinatura, um e outra não pertencentes à P. nem a gerente desta.
O cheque, mostrando-se na sua aparência formal, endossado em branco - arts. 14º e  16º da Lei Uniforme sobre Cheques -, foi depositado, por quem o detinha, em conta bancária também aberta no apelado e por este veio a ser pago por débito na conta bancária da sua sacadora, aqui apelante.
Tem de salientar-se – como, aliás, fez a sentença – que, em termos de aparência, nenhum elemento constante do título, junto em cópia a fls. 28, apontava ou sugeria uma qualquer irregularidade que devesse pôr se sobreaviso ou fazer redobrar as cautelas por parte do Banco apelado quanto à sua aceitação e ulterior pagamento.
Os dizeres do carimbo equivaliam em absoluto à denominação da beneficiária nele inscrita e, sob o dizer “A gerência”, aparecia uma assinatura, cuja fidedignidade o Banco não estava obrigado a controlar, não se vendo, aliás, que de algum modo o pudesse fazer, já que nada mostra que tivesse ao seu dispor, para comparação, a assinatura de representante daquela sociedade P..LDª., o que sucederia na hipótese, não demonstrada, de esta ser também sua cliente.
De facto, segundo o art. 35º da Lei Uniforme sobre Cheques “O sacado que paga um cheque endossável é obrigado a verificar a regularidade da sucessão dos endossos, mas não a assinatura dos endossantes.”
Ora, a regularidade formal do endosso não suscitava dúvidas a reclamar qualquer espécie de ponderação por parte do apelado e a aferição da genuinidade da assinatura aposta era problemática fora do alcance e dos deveres de cuidado e zelo a que contratualmente estava adstrito.
As circunstâncias evidenciam, pois, que se não deveu a culpa do Banco o pagamento do cheque com endosso falso.

Vejamos se, por sua vez, a titular da conta, cliente na convenção de cheque, satisfez, também ela, os deveres de cuidado a que estava adstrita no manuseio dos cheques.
Cabia-lhe, como dissemos, zelar pela sua guarda e segurança.
O risco de extravio de tais bens ou valores leva a que o Regulamento do Serviço Público dos Correios, aprovado pelo Dec. Lei nº 176/88, de 18.05 - art. 12º, nº 1, alínea h) - e a Convenção Postal Universal (DR 1ª série A, nº 110, de 11 de Maio de 2004) – art. 25º, nº 5 - proíbam a aceitação, expedição ou distribuição de objectos pessoais que contenham notas de banco, outros títulos ou valores realizados, excepto quando expedidos como valor declarado.
E é facto notório o risco desse extravio, sendo comummente sabido que o mesmo aumenta exponencialmente quando a expedição, em violação da citada proibição, é feita através de simples carta selada, como terá acontecido nos autos.
Note-se que, em bom rigor, o alegado e demonstrado não é exactamente que a carta tenha chegado a ser entregue para expedição nos CTT, mas tão só que o cheque foi colocado, por funcionária da autora, “no interior de uma carta, selando-a com selo azul e com destino ao correio, indicando como destinatária da mesma” a P…LDª, tendo o cheque sido interceptado no seu trajecto nunca chegando ao seu destinatário.
Como quer que seja, se o tiver entregue para expedição nos CTT, através de carta simples, terá actuado com manifesto desprezo por regras básicas de segurança do título, não podendo deixar de saber que punha em flagrante risco a sua preservação e entrega ao destinatário.
Se se limitou, através da sua funcionária, a colocá-lo no interior de carta selada dirigida à sua credora, com destino ao correio, perdendo-lhe depois o rasto – o que parece ser o que resulta do facto nº 4 tal como está redigido e fora alegado –, é também manifesta a sua falta de zelo pela segurança do título, sendo que era seu dever assegurar que, depois de emitido, fosse entregue incólume na sua integridade à respectiva beneficiária.
Impõe-se, pois, concluir que a falta de cuidado e zelo elementares, por parte da apelante, foram, se não determinantes, pelo menos largamente potenciadoras da intercepção do título por terceiro que depois veio a falsificar o seu endosso e a levantá-lo na conta do sacador.
Tendo sido a actuação culposa da cliente que esteve na base do pagamento do cheque, com ordem de pagamento validamente emitida pela apelante, mas com endosso falsificado, mostra-se ilidida a presunção de culpa do Banco.

Isto leva também a que se não possa atribuir o risco do perecimento da coisa – por pagamento de título falsificado – ao Banco, visto que, segundo o disposto no nº 1 do art. 796º do C. Civil, essa atribuição pressuporia, no caso, a inexistência de culpa de depositante.
A responsabilização pela integridade do depósito impende sobre o depositário e o risco do seu perecimento corre por sua conta caso não haja actuação do depositante que propicie o surgimento de irregularidades.[13]

Soçobram, assim, as razões invocadas pela apelante, sendo de manter a sentença recorrida.

 
IV – Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da apelante.

Lisboa, 15 de Dezembro de 2011

Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho
Maria Amélia Ribeiro
Graça Amaral
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[1]  – de que são exemplo a chamada doutrina da equivalência das condições ou da condictio sine qua non, a teoria da última condição ou a da condição eficiente
[2] Em “Das Obrigações em geral”, 8ª edição, vol. I, pág. 905.
[3] Em “Direito das Obrigações”, AAFDL, 1986, 2º vol. pág. 335
[4] Mesma obra, pág. 915
[5] Devida a Enneccerus-Lehmann, conforme citação feita na mesma obra, pág. 907
[6] Ibidem e Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição pág. 406
[7] Ibidem, pág. 917
[8] Neste sentido vai a grande maioria da nossa doutrina e jurisprudência, como pode ver-se em Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 2ª edição, pág. 524 a 526, Calvão da Silva, Direito Bancário, pág. 347 a 349, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II vol. 4ª edição, pág. 862 e nos acórdãos do STJ e da Relação de Lisboa aludidos pelo primeiro dos referidos autores, na obra também citada. 
[9] Obra citada, pág. 348. 
[10] Menezes Cordeiro, local citado, pág. 525
[11] Menezes Cordeiro, ibidem, pág. 534-536
[12] A título de exemplo, enunciam-se os acórdãos do STJ de 21.05.1996, Relator Cons. Miguel Montenegro, C. J. 1996, tomo 2, pág. 82-83; de 31.03.2009, Relator Cons. Fonseca Ramos, proc. 09A197; de 7.05.2009, Relator Sebastião Póvoas, acessível no mesmo sítio, proc. 195/2000.C2.S1; de 3.12.2009, Relator Garcia Calejo, Proc. 588/09.0YFLSB; de 23.02.2010, Relator Cons. Alves Velho, Proc. 3407/07, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[13] Cfr., neste sentido, a doutrina e arestos citados.